segunda-feira, 23 de junho de 2008

Três ideias liberais e uma relação contingente entre liberalismo e democracia

O constitucionalismo pressupõe, na sua construção, o liberalismo. Apresento a seguir – arriscando-me a simplificar e a uniformizar demasiado aquilo que, por natureza, é um campo de contestação[1] – uma explicitação sucinta das principais teses que caracterizam as doutrinas liberais[2].

Em primeiro lugar temos a tese do ‘atomismo individual’ (Holmes, 1993, p. xii): a sociedade é constituída por indivíduos autónomos com interesses, desejos e crenças próprios (formados em privado e muitas vezes incompatíveis com os interesses de outros indivíduos), e esses mesmos indivíduos são os únicos com direito de se prenunciar sobre os seus interesses e suas implicações. Acredita-se que os indivíduos são racionais, no sentido de poder escolher os meios para realizarem os fins que escolheram; são livres, no sentido de poderem escolher a sua própria concepção do bem; e são responsáveis pelas suas acções, no sentido de por elas responderem. Ao conjunto de indivíduos com interesses, desejos e crenças muito diversificados pode atribuir-se a designação de sociedade plural. Esta tese é, como veremos, negada, ou alterada, pela democracia deliberativa.

A 2ª tese liberal é expressa pela ideia do indivíduo anteceder a formação do social e do político; antes de mais somos indivíduos concretos e definidos, só por contingência vivemos em sociedade e participamos na tomada de decisões políticas. A política justifica-se pela necessidade de regular, por exemplo através de um conjunto de regras norteadas por uma constituição, os conflitos de interesses que possam existir dentro da sociedade plural. Para impedir que um indivíduo, ou grupo de indivíduos, tiranize os outros através da imposição da sua concepção de bem, é necessário estabelecer: (i) um conjunto de direitos que protegem os indivíduos do estado e dos outros cidadãos; (ii) um conjunto de obrigações relativas ao respeito por esses direitos; e (iii) um conjunto de deveres para com o governo que é a garantia daqueles direitos (Dryzek, 2002, p.9). Esta tese em conjunção com a primeira, pode ser usada para explicar a distância e o desinteresse político dos indivíduos nas democracias ocidentais. A constatação deste facto, pode justificar a exigência – por parte da democracia deliberativa - de uma empenhada participação política. Participação esta que seria, de certa forma, negligenciada e potenciada pelo liberalismo.

A 3ª tese liberal estabelece a primazia do direito em relação ao bem. O indivíduo ganha uma protecção de direito em relação a concepção de bem que a comunidade possa ter. Por isso, toda a imposição moral que dessa concepção derive deve ser considerada ilegítima. Em termos políticos os interesses da sociedade com um todo, ou de um grupo de indivíduos, não têm mais valor do que os interesses de um único indivíduo. Anseia-se mais pelo pluralismo político – estabelecer uma ordem política onde as diferenças morais e materiais possam coexistir; do que pelo universalismo – encontrar a verdade acerca do que é o melhor para todos. Outra forma de dizer isto – porventura mais rawlsiana (veja-se Rawls, 1996, pp. 173-176)[3] – é afirmando que se pretende encontrar condições de separação entre a política – encontrar uma concepção política de justiça que se aplique, através da estruturação das principais instituições políticas, apenas à vida política dos indivíduos e que seja aceite por todos independentemente das doutrinas inclusivas que defendam; e a moral – entendida como o conjunto das várias e incompatíveis doutrinas acerca do bem individual. Esta separação não implica que a esfera política seja moralmente neutra, pelo contrário ela inclui ideias morais liberais muito importantes, como a garantia de direitos e liberdades, a separação de poderes, a discussão e avaliação pública de ideias políticas. Quer dizer que a concepção política, embora não sendo uma doutrina inclusiva, é também normativa e tem “um ideal intrínseco” moral baseado naquelas ideias (Rawls, 1996, p.xliv).

Dado que nenhuma destas teses faz referência à democracia como forma de justificação e controlo do poder através de uma escolha popular feita entre cidadãos iguais, podemos facilmente afirmar que o liberalismo não tem que ser democrático e que até se pode dizer que ele surge para proteger a liberdade dos cidadãos de alguns perigos que podem resultar de maiorias democráticas opressivas. (Historicamente o liberalismo nasceu separado da democracia e só no séc. XX se introduziu o conceito de ‘democracia liberal’.)

NOTAS:

[1] Sobre as várias diferenças e discordâncias que existem entre as doutrinas liberais veja-se a Introdução e o 1º capítulo do livro de Stephen Holmes, Passions & Constraint, Chicago U. P., 1995.
[2] Que são diferentes das sociedades liberais, por vezes a não-distinção entre sociedades liberais e doutrinas liberais tem levado ao surgimento de confusões e de críticas incorrectas. Cf. Holmes, 1993, p.xiv-xvi.

[3] Pretendo apenas apresentar três ideias liberais que suportam a democracia constitucional deliberativa liberal. Sendo que a ideia de consenso sobreponível a que recorro é apenas introduzida como um exemplo decorrente da terceira tese liberal. Ainda que eu faça referência a Rawls, não pretendo apresentar a definição da concepção liberal da justiça como equidade, nem explicar a coexistência, nas sociedades democráticas mais ou menos razoáveis, de diferentes concepções liberais acerca da justiça (cf. Rawls, 1996, p.xlviii).

referências bilbiográficas:
HOLMES, Stephen, (1993) The Anatomy of Antiliberalism, Harvard U. P.;
HOLMES, Stephen, (1995) Passions & Constraint, Chicago U. P.;
RAWLS, John, (1996, paperback edition) Political Liberalism, New York, Columbia University Press.

Luis Filipe Bettencourt (2005)

terça-feira, 17 de junho de 2008

A democracia deliberativa e a educação

1. DEMOCRACIA DELIBERATIVA: O QUE É?

A ideia fundamental da democracia deliberativa é a reciprocidade entre indivíduos livres e iguais. A tese é que, numa democracia, os cidadãos, e os seus representantes, devem apresentar, uns aos outros, justificação pelas normas a que, colectivamente, estão submetidos. Deste ponto de vista, uma democracia é deliberativa na medida em que os cidadãos e os seus representantes responsáveis oferecem uns aos outros razões moralmente defensáveis para leis que a todos obrigam, num processo contínuo de justificação mútua.

Uma democracia não deliberativa é aquela democracia que trata os seus cidadãos apenas como objecto da legislação, apenas como sujeitos passivos a governar, em vez de os encarar como cidadãos que fazem parte da governação através da aceitação ou rejeição das razões que eles e os seus representantes apresentam para justificar as leis e as políticas que a todos dizem respeito.

A democracia deliberativa sublinha a importância de uma educação pública que desenvolva, nos educandos e nos educadores, as capacidades conducentes a uma futura deliberação entre cidadãos livres e iguais.

Deste ponto de vista, uma escola será deliberativa na medida em que os seus agentes e os seus representantes responsáveis oferecem uns aos outros razões moralmente defensáveis para as regras que todos devem seguir.


2. UM CASO PRÁTICO: FUMAR, OU NÃO FUMAR, NAS ESCOLAS?

Imagine-se uma escola secundária onde alguns professores e alguns funcionários fumam cigarros na sala de fumadores, e alguns alunos fumam cigarros nos espaços exteriores da escola. Assumindo que há alguma discordância quanto a estes actos serem executados em espaços públicos educativos, como lidar com a situação? Fará algum sentido proibir simplesmente o acto? Será a questão resolúvel e justificável por decreto? Será de referendar internamente a hipotética proibição do fumo nas escolas? Será possível decidir por consenso? Como deve ser feita e gerida a aplicação da putativa solução? Como devem ser as diversas vozes ouvidas? Que influência terá a discussão na solução a adoptar?
O que fazer com o problema do tabaco nas escolas? A escola como elemento formativo fundamental deveria ser exemplar na sua proibição do uso do tabaco no espaço escolar (à semelhança do que acontece com outras substâncias nocivas, como o álcool). Todavia, uma parte interessa na matéria – os professores funcionários e alunos fumadores – defende o direito a fumar o seu cigarro. Por esta razão a simples proibição por lei – àlias já existente no nosso país – tem-se revelado ineficaz, talvez por ser pouco deliberativa, persistindo o problema de saber o que fazer. A questão tem elementos factuais: saber e divulgar os efeitos nocivos do tabaco; saber até que ponto fumar nas escolas em locais reservados para o efeito constituirá, ou não, um mau exemplo para os alunos. Mas também contém elementos morais: supondo que admitimos como razoável a existência de espaços reservados a fumadores, deverão os alunos ter o seu espaço reservado para fumarem? Se não porquê? Por serem menores? E os maiores de dezoito anos poderão fumar? E se sim onde? E se for de todo proibido fumar no espaço escolar, como resolver o problema dos fumadores inveterados? Negar-lhes a possibilidade de fumarem no local de trabalho não constituirá um atentado à liberdade e até à dignidade? O estado, e a escola como um todo, pode desejar proteger as pessoas, mas seria necessário discutir até que ponto queremos e aceitamos um estado paternalista e moralista que impõe às pessoas (aos professores e aos funcionários) comportamentos que elas não querem nem desejam para si, embora possam desejar para os outros. Não são raros os fumadores que defendem a tese do “faz o que eu digo, não faças o que faço”.
A democracia deliberativa não oferece uma solução. O que apresenta é uma forma de discutir a questão – com tempo para reflectir e de forma organizada – tentando fazer ouvir as razões de todas as partes (publicidade) e pedindo-lhes que justifiquem as suas ideias com razões que os outros possam aceitar (reciprocidade). A democracia deliberativa – uma vez que assume que as preferências das pessoas só podem ser alteradas através de um processo de deliberação mútua - não pode apresentar a resposta. A ideia é por as pessoas a pensar e a discutir, não apenas o que é melhor para si, mas o que é melhor para o grupo (neste caso a escola) como um todo. Devem, para isso, participar na tomada de decisão, na qual partilham as suas ideias, discutem em conjunto e, com alguma sorte, poderão atingir um acordo generalizado. A ideia principal é que os argumentos apresentados por cada uma das partes serão, de alguma forma, limitados pelo desejo de alcançar um acordo, o que requer que as partes recorram a princípios gerais em vez de apelarem simplesmente ao seu interesse particular. Deste modo, a discussão, e não a votação, torna-se o atributo principal das decisões democráticas. Por isso, a concepção de um espaço e de um tempo para as pessoas poderem falar e discutir em grupo sobre os assuntos que lhes dizem respeito, e antes das decisões serem tomadas, torna-se fundamental.

Luís Filipe Bettencourt (2005)

UMA DEFINIÇÃO MÍNIMA DE DEMOCRACIA.

“Por mais pós-modernas que sejam hoje as democracias, por mais difusos que sejam os direitos individuais, por mais complexa que seja a governação e o processo de tomada de decisões, por maiores que sejam as restrições impostas pela gestão da economia, há coisas que numa democracia devem permanecer eternas e imutáveis, sob pena de se viver apenas numa aparência de democracia. Deve haver eleições livres, o que pressupõe igualdade de condições à partida e real possibilidade de alternância do poder; deve haver uma fiscalização constante dos actos do poder, a qual não se esgota nem é legitimada simplesmente pelas eleições; deve haver uma justiça independente do poder político, mas não irresponsável perante os cidadãos; e deve haver uma imprensa livre, cujos atropelos e abusos têm de ser reprimidos pelo poder judicial. Isto é o "core business", o mínimo de um regime democrático. Aceitar menos que isto é resignar-se com uma democracia que é formal nos seus aspectos exteriores, mas que ignora a substância das coisas. “

Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Jornal Público, Sexta-feira, 26 de Setembro de 2003

O poder como opressão: uma introdução a Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell.

Um dos temas que se podem desenvolver a partir da leitura desta obra é o tema da opressão injusta que o Estado totalitário exerce sobre as pessoas. Mil Novecentos e Oitenta e Quatro apresenta-se como um tríptico (à semelhança de A Metamorfose de Kafka - sobre as diferentes nuances e leitura do número 3, ver Nabokov, Aulas de Literatura, Relógio d’Água p.325). Olhando de relance para cada uma das partes poderemos anotar diferentes aspectos da opressão.
Na primeira parte, Orwell dá-nos uma visão do mundo onde Winston – a personagem principal – vive imerso e sob total controlo. Winston e os demais habitantes de Oceânia vivem quase totalmente controlados pelo telecrã; nalgumas coisas tão parecido coma a TV do nosso mundo mas que, ao contrário desta, transmite e capta imagens. O telecrã é um dos meios privilegiados para dar corpo ao Big Brother, essa figura que representa a unidade e, simultaneamente, os perigos que ela contém: “(…) uma nação de guerreiros e fanáticos marchando em frente na mais perfeita unidade, pensando todos a mesma trezentos milhões com caras iguais (Orwell, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, Antígona, 1991, p.8o)”. Winston consegue encontrar um canto do seu quarto que talvez não seja captado e aí escreve o seu diário secreto. O pensamento surge como forma de libertação, incluindo o sonho/pesadelo que na obra é outra das formas libertadoras a que Winston recorre. Ele sonha com a sua mãe e irmã, sonha com o tempo antes da guerra, sonha com um outro espaço onde tudo seria mais belo e mais verdadeiro.
As pessoas vivem controladas pelas crianças que, tendo sido desde muito cedo educadas para denunciar os crime-pensantes (a verdade, independentemente das consequências, é das crianças), estão sempre prontas a apontar um suspeito. Controlados também pelas pessoas que se encontram à sua volta. Qualquer um pode denunciar outro e, por isso, qualquer um pode ser denunciado. Aqui nunca se sabe em quem confiar. Winston dúvida de Júlia e chega a desejar matá-la. Depois ama-a e deseja nunca traí-la. Winston confia em O’Brien e pensa, sem nenhuma justificação plausível que não “secretos devaneios, baseados em sonhos” que ele é também um “conspirador político” (174). Depositando a sua confiança num camarada confessa-se, sem saber, ao seu executor (na 3ª parte O’Brien usará essas mesmas palavras de Winston para lhe mostrar que, ao contrário do que afirma, ele não é nenhum anjo, cf. pp. 177 e 271):

“(…) somos inimigos do Partido. Não acreditamos nos princípios do SOCING. Somos crimepensantes. E também somos adúlteros. Conto-te isto para ficarmos à tua mercê. Se quiseres que aprofundemos o compromisso, estamos ao teu dispor.” (175)

Num dos momentos mais irónicos do livro:

“Estão dispostos a enganar, falsificar, fazer chantagem, corromper o espírito das crianças, distribuir drogas que provoquem dependência, fomentar a prostituição, espalhar doenças venéreas… a fazer tudo o que seja susceptível de desmoralizar e enfraquecer o poder político?”

A resposta de Winston é sim. E está pronto para muito mais, desde maltratar crianças até à mutilação do corpo e ao suicídio; ambos estão prontos para tudo. Até, se tal for necessário, obter uma nova identidade. O leitor não poderá deixar de se interrogar sobre o que distingue então Winston do seu carrasco. A diferença está em que um é capaz de fazer tudo para manipular e controlar as pessoas (o poder pelo poder) e Winston é capaz de fazer tudo para acabar com o partido (o poder pela liberdade). São iguais, do ponto de vista das consequências, Do ponto de vista dos ideais não podemos, tal como Winston não pode, aceitar o totalitarismo. Compreendemos até que se possam realizar crimes para cumprir esse objectivo maior. Haver gente, como Winston e Júlia, capaz de realizar todos esses actos transmite-nos alguma segurança, pois significa a afirmação de que, em vez da resignação silenciosa, a luta contra o grande ditador é sempre possível. Felizmente, na vida real e no livro, nem todos são colaboradores. Winston e Júlia só não estão dispostos a separarem-se definitivamente. Júlia é muito mais assertiva na sua resposta. O amor como uma das poucas coisas autênticas a que ambos se podem agarrar. No fim da história caberá a cada leitor saber até que ponto é esse sentimento autêntico. Controlados também pelo passado, pela ausência de memórias fidedignas; todo o passado é completa e diariamente alterado para servir os propósitos do partido. Controlados pela guerra constante. Controlados pela própria língua que, em fase de substituição pela novilingua, deixará de ser uma forma de riqueza e diversidade. A novilingua, limitando o número de palavras, controla e limita a possibilidade de certos pensamentos serem sequer concebidos. Haverá alguma forma de sair dessa prisão?
Na primeira parte é-nos também dada uma visão estratificada da sociedade. Uma sociedade dividida em três grupos: o partido interno – os seus membros viviam melhor do que os outros, vestiam castanho e eram responsáveis privilegiados. Eram, por exemplo, os únicos que podiam desligar, ainda que só por alguns minutos, o telecrã. O partido, composto por funcionários que vestiam de azul e que mantinham a grande máquina torturante em funcionamento. E, por último, os proles que vivem à margem do partido. Vivem na pobreza e na ignorância, é esta a forma que o partido tem de os controlar. Winston chega a acreditar que a salvação só poderá estar nos proles, só eles poderão rebelar-se contra as forças agonizantes da sociedade totalitária. Não é nada claro que assim seja até porque é um prole que denuncia Winston e Julia à polícia do pensamento. A fome e a ignorância sempre geraram bons colaboradores.

A segunda parte, em contraste total com a primeira, acontece sob o signo da luz, da beleza, da esperança e do sonho/realidade. Da escuridão, da fealdade, da resignação e da irrealidade – num certo sentido, tudo é irreal em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, ou não será? – passamos para a luz. Através da descoberta do amor, amante e amado são levados a acreditar que a única verdade possível está nos sentimentos, no coração, nos instintos mais básicos que o Partido tão veementemente tenta suprimir. O amor parental não é permitido – os filhos são separados dos pais; e existe uma forte repressão sexual (só a prostituição é tolerada por ser uma forma de escape e ao mesmo tempo uma forma de descobrir quem tem problemas com os seus instintos). É nos capítulos centrais da 2ª parte que o leitor é levado, por um lado, a crer que alguma saída há-de ser possível para Winston e Julia e que alguma saída há-de ser possível para a própria situação em que cada um de nós, efémeros leitores, se encontra; por muito boa que seja, terá sempre algo de irreal, de manipulado e de opressivo. Veja-se, para substanciar a crença na saída, o capítulo 8, onde sabemos que “estamos sós” (174) o que não deixa de ser surpreendente vindo de O´Brien, o homem em quem eles depositam confiança e onde se afirma que “a nossa única vida autêntica está no futuro” (181).
Por outro lado, o leitor é também colocado perante a pior hipótese: a de não haver saída. No capítulo 5, várias hipóteses são colocadas perante o acto de liberdade que ambos desejam realizar – o de se encontrarem secretamente, negando deste modo todos os postulados da sociedade tal como ela foi apresentada na primeira parte. Júlia acaba por dizer: “o que me interessa somos nós” (161); tese subjectivista que em qualquer tempo e em qualquer situação encontrará sempre os seus seguidores. A ideia de que “só os sentimentos contam” deixa os filósofos estarrecidos de tão crentes que são no poder da razão, na universalidade da verdade e na contingência dos sentidos. Nestas páginas centrais do livro há uma inversão de categorias – o irreal e fugidio torna-se o mais real e duradouro. Enquanto o mundo que os rodeia e as suas categorias foram já transformados na maior das farsas, os sonhos de Winston tornam-se realidade; o que de mais verdadeiro há na sua história pessoal. Contudo, ele sabe – são também os seus sonhos o veículo dessa revelação –e confessa-o a Júlia, que perante situações de miséria extrema, como as resultantes da fome e da guerra como as que ele enquanto criança teve que suportar, é o egoísmo que vem ao de cima – quer seja o egoísmo que o leva a roubar a única comida disponível que a mãe tinha para dar à irmã moribunda, quer seja o egoísmo de não suportar mais a dor da tortura do quarto 101.

Na terceira e última parte é a questão da liberdade interior – desde o início o refúgio de Winston - que é posta em causa. Tendo sido traídos por O’Brien, o que se segue é a tortura (em todos os sentido) como forma última de opressão. A morte seria um bem demasiado grande para poder ser oferecida, sem mais nem menos. Primeiro a limpeza, a purificação mental e, por fim, a negação da mais ínfima liberdade de pensamento. Depois de várias sessões, mas antes da ida ao quarto 101, Winston reconhece que 2+2 tanto pode ser 4 como 5 ou 3. Não há verdades absolutas. Essa é a primeira vitória sobre a liberdade de pensar. No entanto, Winston sonha (sempre o sonho como veículo da libertação) com uma bala que entra pelo seu cérebro e engendra, para esse momento que há-de chegar, a forma de morrer livre:

“Percebeu pela primeira vez que, a querer guardar um segredo, se via obrigado a escondê-lo até de si próprio. (…) daí em diante não lhe bastaria os pensamentos certos, os sonhos certos; tornava-se imperioso mostrar também os sentimentos certos, os sonhos certos. E entretanto guardar o ódio bem fechado dentro de si, como um corpo sólido que fizesse parte da sua pessoa e no entanto não estivesse em contacto com o resto de si, como uma espécie de quisto. (…)” (281/2)

Só “dez segundos” antes da bala atingir o seu cérebro é que ele “operaria uma revolta no seu interior” e libertaria o seu ódio: “Morrer a odiá-los: eis a liberdade.” (282). Depois de se submeter à vontade do Partido e esperando a morte Winston sente que, apesar de ter confessado tudo sobre a sua amada, não a traiu porque nunca deixou de a amar. Mas depois do quarto 101 – “o pior do mundo - continuou O’Brien – varia de indivíduo para indivíduo” (284) - ficamos na dúvida se a liberdade de amar Julia e a liberdade de fazer despertar o ódio antes de morte, coisas tão íntimas e tão difíceis de controlar, serão ainda uma possibilidade para Winston. O sinal de que algo foi ultrapassado no interior de Winston é dado pela traição ao amor que, como já vimos, tinha sido apresentado como real: “façam isto à Julia! Façam isto à Julia! A mim não!” (289) Depois disto podia-se dizer que foi o medo que nos fez dizer tal coisa. Que foi uma mentira feita para salvar a pele. Mas tal disfarce não funcionaria com O’Brien. “Algo morrera dentro dele: queimado, cauterizado” (291) E, no último encontro com Julia:

“- Só queremos saber de nós próprios – repetiu ele.
- Depois disso, jamais sentimos o mesmo por essa outra pessoa.
- Não – disse ele, já não sentimos o mesmo
” (293)

Vence o egoísmo? Será a afirmação final de Winston: “Amava o grande irmão” (298), uma farsa? Ou será antes a prova de que Winston foi finalmente vencido? Como interpretar as “duas lágrimas” que Winston verte antes de afirmar o seu amor ao grande irmão? São a prova do amor? Ou o sentimento derivado da consciência de que perdeu a sua luta? Dado que no final Winston, num “sonho feliz”, vê a desejada bala penetrar-lhe o cérebro mas em vez de ódio o que vemos é amor ao grande irmão, a minha leitura é de que os bons perderam. Mas as conclusões a retirar ficam a cargo de cada leitor que deverá ler as últimas páginas do livro com redobrada atenção.


Luis Filipe Bettencourt (Maio de 2008)

O culto de Che, por Paul Berman

"O culto de Che Guevara é algo digno de nota na frieza moral do nosso tempo. Che foi um totalitário. Não conseguiu nada mais do que o desastre. Muitos dos primeiros lideres da revolução Cubana favoreciam uma direcção democrática ou social democrática para a nova Cuba. Mas Che era um defensor da facção dura pro-soviética e a sua facção ganhou. Che presidiu aos primeiros esquadrões da morte da revolução Cubana. Ele fundou o sistema dos "campos de trabalho" em Cuba - o mesmo sistema que, por fim, serviu para encarcerar homossexuais, dissidentes e vítimas do SIDA. Conseguir matar-se e matar muitas outras pessoas era algo central na imaginação de Che. No famoso ensaio onde apelou para "dois, três, muitos Vietnames", também falou de martírio e conseguiu escrever uma série de frases arrepiantes: "O ódio como um elemento de luta; ódio inquebrável pelo inimigo que transporta um ser humano para lá das suas limitações naturais tornando-o numa máquina de espalhar a morte que seja efectiva, violenta, selectiva e de sangue frio. É nisto que os nossos soldados se devem tornar..." - e por aí adiante. Che foi morto na Bolívia em 1967, liderando um movimento de guerrilha que não conseguiu recrutar um único camponês boliviano. Mesmo assim conseguiu inspirar dezenas de milhar de latino-americanos de classe média a sair das universidades e a organizar movimentos de guerrilha insurgentes. Estas insurgências também não conduziram a nada, a não ser à morte de dezenas de milhar de pessoas e ao atraso da causa democrática na américa latina - uma tragédia em grande escala.

O presente culto de Che - as t-shirts, os bares, os posters - conseguiu obscurecer essa terrível realidade. (...) Che foi um inimigo da liberdade e, mesmo assim, foi erigido como um símbolo da liberdade. Ajudou a estabelecer, em Cuba, um sistema social injusto e foi erigido como um símbolo de justiça social. Defendeu a antiga rigidez do pensamento latino-americano, numa versão marxista-leninista, e tem sido celebrado como um livre-pensador e como um rebelde. (...)

Berman, Paul, The Cult of Che Don't applaud The Motorcycle Diaries, (2004) in http://www.slate.com/ (tr. de LFB, Junho de 2008)


PS: Este obscuro culto a Che nas palavras de Hugo Chavés é assim: "Che viveu como Cristo e morreu como Cristo".

Tudo muito recentemente numa entrevista (rtp1) onde discursos inacreditáveis e algumas falsidades foram proferidas perante a passividade do entrevistador Mário Soares (um 'espiritualista laico', nas palavras do próprio).


(LFB)