terça-feira, 1 de novembro de 2011

Dulce Maria Cardoso

"(...) Só damos valor ao que não temos?
Ou isso ou uma coisa mais grave que é procurar fontes de infelicidade. Talvez tenhamos alguma vocação para isso. Se estivermos muito bem com o presente, não há mais nada a acrescentar. Na verdade, o bem-estar - e depois podemos falar da felicidade e de outros conceitos - é quase o antipensamento, e também quase a antivida. Tinha uma ideia mitificada da metrópole porque havia de tudo e era tudo melhor na metrópole. Coisas absurdas. Nós tínhamos as férias da escola de acordo com as da metrópole. Portanto, lá no tempo da cacimbo - com o tempo mais fresco - estávamos em casa, e no tempo quente estávamos nas aulas. Era tudo muito absurdo. Havia pessoas com alcatifa em casa, com lareira. Continuavam a fazer feijoadas, as pessoas ficavam todas encarnadas. Imitávamos a metrópole mas também tínhamos a sensação de que éramos portugueses de segunda.
(...)
Os retornados eram pessoas com mais espírito de iniciativa?
Não era tanto a iniciativa, pelos casos que depois fui conhecendo. Era mais o desespero, a fome. A fome desinquieta e desassossega muito.
A fome é uma força motriz?
Exatamente. Mais do que qualquer outra ideia. Depois temos a mania de romantizar. «Ah, a aventura.» Não é nada disso. São mesmo filhos para alimentar. Quando viemos para cá, é claro que a vida correu bem às pessoas que lá pertenciam aos serviços do Estado. Mas essa realidade não a conheço bem porque foram as pessoas que não ficaram nos hotéis. Para os retornados que conheço, de que posso falar e que foram os mais injustiçados, não foi assim. Os bem-sucedidos seriam bem-sucedidos em qualquer parte do mundo porque eram pessoas muito fortes e capazes. A maior parte não foi muito bem-sucedida, só que dos fracos não reza a história.
(...)
Vê-se mais como testemunha ou como interveniente, enquanto escritora?
Testemunha. Não gosto muito de ser protagonista.
Quando usei a expressão «interveniente» era no sentido de ser alguém que com essa proposta de reflexão pretende mexer de alguma forma no que a rodeia.
Não no sentido de o mudar. Quer dizer, vai-se mudando sempre. Cada ato nosso muda qualquer coisa. Acho, basicamente, que a história da civilização é a história da luta entre o bem e o mal. É a coisa maior que nos distingue. E depois temos este problema grave: o bem é antipensamento. Ou seja, não é dramático, não se consegue fazer o raio de uma ficção só com o bem porque é altamente monótono. Portanto, o mal aparece-nos com a sedução toda e aquilo é fantástico. Toda a nossa organização social são milénios a tentar proteger-nos do mal. O «não matarás», «não roubarás» e essas coisas todas são apenas uma maneira de vivermos em conjunto protegidos do mal que sabemos que há em nós. É aquela velha frase de S. Paulo: «Perdoa-me por não fazer o bem que quero mas o mal que não quero.» Por isso, é interessante pensar que se retirássemos o mal do mundo não tínhamos nada. Não tínhamos arte, romances, não tínhamos civilização sequer, como a concebemos.
Isso justifica um elogio do mal, quanto mais não seja pela necessidade cultural que temos dele.
Sim, não podemos prescindir dele. Eu, uma otimista, acho que haverá um dia em que poderemos prescindir dele, das suas formas mais puras pelo menos.
(...)
Há aqui uma homenagem e há também isto: o império, que teve cinco séculos, ruiu. Foi assustador ver o bicho em movimento. Aquela velha máxima que diz que nada se ganha, nada se perde, tudo se transforma, e que gostamos tanto de aplicar à matéria, nas coisas afetivas e sociais não funciona. Perdem-se coisas e ganham-se coisas.
(...)
Correu mal porque era já tarde demais, e depois porque não houve vontade política para que corresse melhor.
Não houve vontade política por parte dos protagonistas políticos da altura?
Exatamente. E quando digo isto nem falo dos colonos brancos. Estou a falar dos que ficaram. Deixámos um país já em guerra entre os movimentos de libertação. Nós, Estado português, favorecemos uma parte. Demos a independência a um. Que ainda lá está. Aquilo foi tão bem dado que nunca mais saiu de lá. Ao menos deixámos uma coisa duradoura. Agora, consigo perceber o racismo que havia lá e muitos negam. Mas só me interessa pensar nestas coisas fazendo uma ponte com o presente. É relativamente fácil prendermo-nos àquilo que já não podemos mudar e criticar, culpar, quando neste momento estão a acontecer coisas muito semelhantes, embora não da mesma magnitude. Embora se possa dizer que a morte de um homem é tão trágica como a morte de cem milhões. Pode dizer-se que isto é uma versão lírica. Estamos viciados numa questão de escala. Neste momento Portugal passa por uma situação muito semelhante.
Está a falar de impor sacrifícios a um grupo social em nome de uma mudança histórica qualquer?
Sim. Em nome de um objectivo. Não pode ser. Cada um de nós vale a mesma coisa. Nós não somos peças de uma engrenagem em que uns vão para carne picada para salvar os outros. Não se pode dizer que há democracia enquanto existir sequer esse conceito ou essa possibilidade. Vamos ter um cartão de pobre, não é?
É o tipo de assistencialismo que lhe faz recordar o assistencialismo do IARN?
Sim. Era terrível. Havia retornados que preferiam ter fome a apresentarem-se com o cartão.
Isso é muito sensível, no seu romance, sobretudo na questão das roupas.
Sim. Havia aquela coisa de que os pobres não têm de ter gosto, não têm de parecer bem, precisam é de estar tapados. A pessoa em situação de pobreza fica sem necessidade alguma: de poder escolher o que come, de poder vestir-se. Continuamos a fazer o mesmo.
(...)
Voltou a Angola?
Não. E não penso voltar.
É uma recusa?
É, por várias razões. Já pareço aqueles políticos que têm sempre várias razões. Por um lado, acho perigoso mexer numa série de memórias.
Perigoso para a sua saúde pessoal?
Sim. Não sei como reagiria. Em termos pessoais não me interessam picos de emoção. Canalizo tudo para o que escrevo e depois gosto de uma coisa mais apaziguada. Mas é também porque o regime de Angola não é um regime aconselhável. Custa-me - para dizer o mínimo - perceber que Angola se tornou uma oportunidade de dinheiro e que toda a gente esteja contente porque vem para cá dinheiro angolano. Aquele dinheiro é criminoso. Temos de ter consciência disso. Não é uma sorte eles estarem a investir em Portugal, é uma vergonha. Isto tem de ser dito. Só pobres sem qualquer dignidade - como nos tornámos - podem achar isto bem. O Presidente de Angola está sempre nas listas dos homens mais corruptos do mundo. E nós fazemos negócios com ele e dizemos que é uma sorte? Mas em que raio de povo nos tornámos? Nós não somos isto. Os portugueses não são isto, o que é outra coisa.
(...)"

Entrevista de Carlos Vaz Marques a Dulce Maria Cardoso, revista Ler, número 106, Outubro 2011, pp. 29-32.

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