segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

O Condomínio da Terra de Paulo Magalhães

Este livro, escrito por um ambientalista com formação em Direito, pretende contribuir com uma solução para a crise ambiental que afecta todo o planeta. O livro tem duas orientações: uma filosófica e outra jurídica. Considerarei, sobretudo, alguns aspectos filosóficos. A substância filosófica, que serveria de fundamento às novidades que o livro apresenta, é muito discutível.

A assumpção, por parte do autor, de uma posição realista em relação ao problema da natureza da realidade (uma questão metafísica com amplas conexões epistemológicas) é um ponto fundamental na construção de toda a ideia de um condomínio Terra. É desse pressuposto que depende a premissa de que a “Biosfera é a Realidade em si”. O autor não concebe a hipótese filosófica contrária de que o mundo pode ser apenas uma ideia, ou um sonho, ou apenas uma realidade virtual (o que não quer dizer que o seja, mas as meras possibilidades sempre fizeram pensar os filósofos). Sendo que é o próprio autor que se coloca no domínio filosófico (o que não é de todo necessário para se apresentarem soluções jurídicas para problemas ambientais), seria então de esperar que ele discutisse e rebatesse algumas dos argumentos que se discutem actualmente sobre a questão da natureza da realidade. Mas tal não acontece.

O problema fundamental é o de saber se todo o conhecimento é sempre conhecimento para nós, conhecimento sempre limitado pelas nossas capacidades cognitivas e sensoriais ou se, pelo contrário, será possível conhecer a realidade em si, separada do conhecimento humano e à qual seja possível aceder de um modo que vá além da mera intuição/ crença/ fé na existência desse mundo real independente da minha percepção dele. A grande dificuldade está em demonstrar a existência do Real de uma forma que não seja dependente de um conhecimento para nós.

Em relação a este problema, o autor defende que a biosfera não deve ser entendida como uma "organização ou concepção humana". Um exemplo:

"Hoje sabemos que a natureza pensada conhece um milhão e oitocentas mil espécies, e a natureza em si, estima-se em 8 milhões." (p.17, o itálico e o negrito estão no livro, tal e qual.)

No entanto, a palavra a negrito deveria ser 'estima-se' e não 'realidade em si', precisamente porque uma estimativa não deixa de ser uma acto do nosso conhecimento, aliás uma acto do possível e não do conhecimento. O que, só por si, é muito pouco para estabelecer a existência da 'realidade em si' para lá de qualquer dúvida razoável.

Ainda em relação ao problema da realidade em si, o autor e seus mentores colocam-se numa perspectiva anti-cartesiana para quem, dizem-nos, só o pensado é real. Mas, se é consensual que a posição mecanicista da natureza defendida no séc. XVII é errada, isso não é suficiente para que a existência da 'Realidade em si' fique demonstrada. Muito menos apenas com recurso a afirmações algo contraditórias como a seguinte: "há uma percepção da sua eventual existência", ou como quando, citando Soromenho-Marques, o autor nos diz que devemos "inovar a própria realidade" (p.35). Ora, a percepção é um acto cognitivo e, assim sendo, não estamos a falar do real em si, mas sim do real para nós. A questão é a de saber se esse real em si não nos escapará sempre dadas as nossas limitações cognitivas. E “inovar a realidade” é bonito, mas o que significa no contexto da discussão filosófica? São distinções elementares, mas que parecem escapar a Paulo Magalhães.

As leis da natureza são aqui apresentadas como se fossem imutáveis e como se fossem a demonstração de que a realidade em si existe separada do sujeito. Quando o que os filósofos das ciências afirmam é que as leis da natureza são uma construção da mente humana sujeita a revisões e a falsificações como qualquer enunciado universal.

Que existe um mundo lá fora ninguém duvida (à excepção, claro, de alguns filósofos). A questão filosófica central não é a de saber se os golfinhos comunicavam, ou não, antes de nós sabermos isso. É claro que comunicavam. Como o autor afirma:

"os golfinhos não estiveram à espera que o homem começasse a decifrar a a sua linguagem para comunicarem entre si" (p.23).

A questão é que não há forma de o sabermos antes de o sabermos! Por outras palavras, o dilema clássico é: 'como é que eu sei que o meu quarto continua a existir quando eu lá não estou?' Ou, em termos ambientais: como é que eu sei que sou responsável pela crise ambiental antes das evidências científicas me mostrarem que eu o sou?

Paulo Magalhães pode falar do "saber que a natureza sempre soube"; da Biosfera ter sido "desde sempre globalizada e independente" (p.23); do Direito como aquele que, na criação da ideia de condomínio, "negociou com o real" (p.84) mas isso, filosoficamente falando, não são mais do que metáforas bem intencionadas. A confusão conceptual aqui presente é a não distinção entre o "sabe que existe" e o "existe separado de".

Em termos éticos, o autor coloca o ser humano num domínio perfeito e ideal onde o homem respeitaria o ambiente - o que, para quem se diz tão seguro da realidade, não deixa de ser irónico - , esquecendo que no século XX o homem destruiu toda a noção razoável de humanidade e esquecendo que se um homem não consegue respeitar outro homem, então como respeitará noções tão abstractas como a Bioesfera ou o Ambiente. Antes de destruir o ambiente o homem já se tinha destruído como homem ético. E esta destruição está tão próxima de nós que é ainda quase possível sentir, por toda a Europa, o odor de tal destruição. Em querendo colocar-se no plano filosófico da natureza humana, talvez seja condição necessária começar por reconstruir, se isso for sequer concebível ainda, a estrutura ética do humano.

Nada disto impede impede o autor de exigir o ideal de:

"uma nova consciência do estar 'em relacionamento', na sua dimensão jurídica, que se alarga para além das relações intra-espécie". (p.24)

Mas estes são pormenores filosóficos que, dirão alguns, em nada ajudam a salvar a Terra.

Vejamos então algumas das ideias inovadores que o livro apresenta pra concretizar tão almejado objectivo. O problema a partir do qual o autor constrói a sua solução é o de saber como incluir as leis da natureza nos sistemas jurídicos que regem a vida política das pessoas (veja-se p. 66 e seguintes), uma vez que o aquecimento global veio acabar em definitivo "com as fronteiras tradicionais da soberania dos estados" (p.68). A resposta está na inclusão das leis da natureza no direito natural de onde brota "o sistema jurídico da sociosfera".

A ideia inovadora é a de que assim como um indivíduo livre e soberano que viva num prédio tem de limitar a sua liberdade e a sua propriedade obedecendo às imposições ditadas pelo administrador do condomínio (terá de pagar uma montante fixado para manutenção dos espaços comuns, participar em reuniões, contribuir com dinheiro para obras de beneficiação, etc.), também o Estado livre e soberano deverá limitar a sua soberania por forma a melhorar o condomínio que é o planeta Terra (sendo os espaços comuns a Atmosfera e a Hidrosfera e, com menos garantias, a Biodiversidade). Defende-se que o modelo de privatização dos recursos ambientais pós Kioto tem algo de errado precisamente porque não se pode dividir aquilo que é uno e interdependente – a Biosfera. De nada servirá sermos poucos poluidores quando os nossos vizinhos o são em demasia, e são-no legalmente porque compraram direitos de poluição. O problema não está tanto na solução encontrada, mas sim no facto de as verbas provenientes do “uso privado de um recurso público não serem directamente empregues no melhoramento das partes comuns” (pp.124-125).


A ideia é interessante mas fica a seguinte dúvida. Como é que as verbas resultantes da necessidade de conservar o condomínio poderiam diminuir significativamente os problemas ambientais que afectam o planeta? Até que ponto o dinheiro é capaz de resolver o problema do aquecimento global? O problema não parece ser uma questão de verbas - por analogia com os prédios, uma questão de manutenção do edifício, ou de beneficiação – mas sim uma questão de formas de vida resultantes da industrialização e da depêndencia irrecuperável dos seres humanos da tecnologia. E dessas formas de vida geradoras de conforto e prazer ninguém parece estar genuinamente interessado em abdicar. Se for uma questão de verbas, como este livro sugere, isso arranja-se, mais cedo ou mais tarde. Se não for, então esta solução terá até o efeito indesejado de criar a ilusão de que, afinal, o problema está a ser resolvido pela “Assembleia de Condóminos”.

(LFB)

Sabedoria

...
"Era a arte que tocava a natureza humana, em todos os seus lados. Tocar um lado somente, o lado político, limita. Seja ele qual for, da esquerda ou da direita. Limita." (...)

" Não há nada que não exista antes. Não há, por exemplo, nenhuma forma, nenhum desenho, por mais estranho que seja, que não exista na natureza. Toda a criação é uma recriação. É o conhecimento do conhecimento que se vai tendo e ainda do que estará na bolsa do subconsciente." (...)

"... foi a partir da máquina a vapor que se criou o capitalismo industrial; e foi o capitalismo industrial que criou a classe operária; e foi a classe operária que criou Marx; e foi através de Marx que se criou o comunismo na Rússia; e foi o comunismo que provocou a formação do fascismo, defendendo-se do comunismo."(...)

"Quem tem um livro nunca está só. Quando se está a ler, está-se a comunicar com alguém. E, além disso, é íntimo. No livro são permitidas todas as intimidades e todas as coisas públicas. Porque é um confidente. Confessa-se qualquer coisa de inconfessável. O cinema é mais público. Privado seria interdito." (...)

"Todas as idades servem para morrer." (...)


Manoel de Oliveira, entrevista ao jornal Expresso, revista Actual, de 8 de Dezembro de 2007.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Não queres ser meu assessor de imprensa?

Acordo com a notícia de que os assessores de imprensa (é mais do que um) de Carlos César ganham milhares de euros (quase quatro mil, ordenado base, claro). Um deles é um ex. director de informação da RTP Açores. Nas entrelinhas percebo também que cada secretário tem o seu assessor de imprensa. Terei percebido bem?
Para que precisa uma região ultra-periférica com pouco mais de 200 mil habitantes de vários assessores e de tão bem pagos? O que faz um assessor de imprensa? Transforma (esconde) más notícias em boas notícias? Será que existe assim tanta coisa para esconder? Ou será que faz pouco ou nada e esses postos são apenas uma forma de favorecimento descarado?
Revoltado (já tenho o dia estragado), pesquiso na internet tentando encontrar, nos sites do governo, alguma informação sobre quantos assessores existem e o que fazem. Mas nada. Os sites do governo simplesmente não abrem, ou não têm informação relevante. Estão os governantes e seus assessores, ao que parece, em Washington.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Uma data para recordar


este texto de Paul Berman (2004).

"Um amigo, deitando-se sobre o balcão, disse "afirmas que a guerra no Iraque é uma guerra antifascista. Até dizes que é uma guerra de esquerda; uma guerra de libertação. No entanto, na esquerda, poucas pessoas concordam contigo."

"Não é verdade!", disse eu. "Aparte de X, Y, Z cujos nomes ligados com a esquerda conheces bem. O que pensas de Adam Michnik da Polónia? E Vaclav Havel não conta? (...)"

Ele persistiu. "A maioria das pessoas não concorda contigo. Porque será?"

Por que é que as pessoas de esquerda não pensam como eu? Exceptuando aqueles que pensam como eu? Dou-te várias razões:

Porque Bush é um político repulsivo e as pessoas estão cegas pela repulsão que sentem (...). "[se fosse, Clinton, seria diferente? Hoje é um benfeitor... digo eu]."

Porque muitos outras pessoas inteligentes decidiram, a priori, que todos os grandes problemas políticos vêem da América. Uma atitude que há sessenta anos atrás os teria impedido de compreender o fascismo europeu. (...)

Porque muitos, na sua bondade respeitosa para com as diferenças culturais, concluíram que os Árabes, por razões imprescrutáveis que só a eles dizem respeito, gostam de viver sob didaturas grotescas e não são capazes de mais nada...[uma espécie de racismo para com os Árabes, digo eu e ele]. A antiga esquerda costumava pensar que todos, e em todo o mundo, quereriam um dia viver de acordo com os mesmos valores fundamentais e deveriam se ajudados a conseguí-lo. Hoje, num espírito de tolerância igualitária afirmam: Democracia social para a Suécia. Tirania para os Árabes... É isto uma atitude de esquerda? A esquerda, a verdadeira, costumava ser a campeã das populações minoritáriascomo os Kurdos. Mas já não o é.

Porque muita gente acredita honestamente que os problemas de Israel com a Palestina representam mais do que uma disputa miserável sobre fronteiras e reconhecimento mútuo. Que os problemas de Israel são algo maior, um aspecto diabólico único do zionismo que explica o ódio e a humilhação sentida pelos muçulmanos de Marrocos à Indonésia. Na realidade muita gente sucumbiu perante fantasias anti-Semitas.... Muito se diz sobre os pecados de Israel, e muito pouco sobre os movimentos de influência fascista que causaram milhares e até milhões de mortes noutras partes do mundo muçulmano...Porque muita gente é cega perante o anti-Semitismo noutras culturas...Se abrissem os olhos poderiam ver que o partido Baath (um movimento fundado sob influência nazi em 1943 ) e os movimentos islâmicos são muito parecidos com os movimentos clássicos fascistas. Isto acaba por ser o legado fascista e totalitário que a Europa transmitiu ao mundo Muçulmano moderno.


Disse ele "E então As nações Unidas e a lei internacional não significam nada...?


Respondi, seria melhor combater o antifascismo com a aprovação da Onu. (...) Apoiar a guerra em nome do antifascismo, ou recusar a guerra em nome da lei internacional. Anti-fascismo sem a lei internacional; ou a lei internacional sem antifascismo. Uma escolha miserável, sem dúvida...

Ele disse, "Eu sou pela lei internacional e penso que traíste a esquerda. Um neocon!"

Eu disse, "Eu sou pelo derrube de tiranos, e desde quando é que derrubar o fascismo se tornou traição?".

"Mas não é Bush uma espécie de fascista?", disse ele.

"Não fazes ideia do que é fascismo." Disse eu. "Sempre pensei que a denúncia e o combate da extrema opressão eram as características principais de um coração de esquerda." Confundir sepulturas em massa, e uma população esmagada por trinta e cinco anos de Baath, com a corrupção e os favorecimentos de Bush é ridículo."(...)

Contudo, nada disto fez sentido para ele, e nada mais houve a fazer senão acenar com as nossas respectivas bebidas.

Berman, Paul, Dissent Magazine (Winter, 2004).

(Tradução livre LFB)

sábado, 14 de julho de 2007

SEBALD, Austerlitz. De que fala este livro?

O livro de Sebald constituiu uma visão não mostrada da Shoah escrita por um autor alemão, ainda que tendo vivido os últimos trinta anos da sua vida no Reino Unido. Estarmos perante um alemão talvez não seja despiciendo em relação ao facto de a obra em análise falar da Shoah sem nunca a mencionar de forma aberta. Sebald não consegue falar directamente desse horror – na realidade julga ser impossível escrever sobre os campos de concentração – o que coloca os seus livros num campo de ambiguidade criticável; de algum modo o assunto dos seus livros é sempre o “lager” do qual ele nunca fala directamente. Alguns críticos mais ferozes dizem que o autor se limita a fazer rendilhados em torno de um tema demasiado sério para isso. Uma das formas que encontrei para dar conta dessa ambiguidade foi destacar no livro certas passagens que, se retiradas do seu contexto, parecem estar a falar, ou a descrever, aspectos do “lager” quando na realidade não estão, mas afinal estão! Aparte a riqueza literária da ambiguidade, o jogo parece também transportar o fantasma do relativismo dos acontecimentos em causa. Se é possível encontrar certas passagens no livro que literalmente descrevem o “lager” mas que no contexto do livro se aplicam a outros fenómenos, não poderemos nós concluir pela importância relativa desses acontecimentos?
Por exemplo:

“… rodopio encrespado de vapor que foi recobrindo gradualmente todo o chão de pedra, tornando-se cada vez mais denso e crescendo de forma visível até que apenas metade de nós próprios emergimos dele e em breve poderia até cortar-nos a respiração.” (p.136, Modern Library, p.128 edição portuguesa)
[1]

Esta passagem poderia ser lida como uma descrição do que se passou nas câmaras de gás quando as pequenas bolinhas verdes eram lançadas pelos alemães através de buracos existentes nos telhados e caíam no chão onde estavam as vítimas indefesas, mas, na realidade, trata-se da descrição da chegada de uma neblina.

Outra passagem:

“… um campo, de cor verde-veneno, mais atrás um complexo petroquímico já meio devorado pela ferrugem, de cujas torres e chaminés saem nuvens de fumo branco, como deve ter acontecido sem cessar e há muitos anos.” (186, 174)

Ou ainda o sonho no qual Austerlitz vê:

“… altas chaminés encimadas por penachos imóveis de fumo branco recortadas contra as cores doentias que raiavam o céu ocidental.” (203, 189)

Talvez até por causa do nevoeiro em que o tema está envolto, as primeiras imagens do livro nos forneçam algumas pistas acerca do labirinto para onde somos lançados ao iniciar a leitura. Falando na primeira pessoa, o narrador recorda uma das suas viagens a Antuérpia e o modo como uma dor de cabeça e pensamentos inquietantes o fizeram refugiar-se no zoo da cidade tendo, por fim, visitado o Nocturama (um parte do jardim ocupada por animais para quem o dia é noite e a noite é dia). Este conceito, por si só, com as suas ligações à escuridão, à ilusão, ao espectáculo que é viver e ver, bastaria para introduzir alguns dos temas a destacar. Mas paremos nas quatro primeiras imagens. Que estatuto têm as imagens (fotografias, desenhos, plantas, fotogramas) nos livros de Sebald? Serão apenas ilustrações? Muitas sê-lo-ão. Mas outras, como as quatro primeiras, parecem funcionar como um elemento textual – a imagem como texto, como narrativa não separada do texto, como não simplesmente ilustrativa – que permite libertar no leitor, em forma de sortilégio, outras ligações, significados, memórias, conhecimentos, interrogações, etc, que de outro modo não aconteceriam. Essas primeiras imagens, suscitadas pelo nocturama, fazem emergir a dificuldade de falar de certos temas precisamente porque eles estão presos no passado mas, simultaneamente, e ligando com os olhos grandes dos animais nocturnos devemos, para descobrir quem somos, perscrutar esse passado escuro:

“… olhos excepcionalmente grandes e esse olhar fixo, inquiridor que se encontra em determinados pintores e filósofos que, com recurso apenas à pura observação e ao puro pensamento, procuram penetrar as trevas que nos cercam .” (p.4-5, 6-7)
Repare-se como a semelhança entre os dois pares de olhos dos humanos (Wittgenstein – os olhos deste filósofo servem-me também para recordar a frase que tudo tem a ver com o conteúdo deste livro: “acerca daquilo que não se pode falar, tem que se ficar em silêncio") e os dois pares de olhos dos animais só é dada através do nosso olhar sobre as fotografias dos olhos deles e como a força e a riqueza da analogia acontece quando essa visão se liga com a sugestão de “penetrar as trevas que nos cercam”.
O tema é, pois, o humano do pós-holocausto que, como os viajantes involuntários dos comboios da Europa nazi – veja-se como o narrador chega de comboio à estação de Antuérpia e é “tomado de um mal-estar” – não sabe onde está, quem é ou para onde vai.



[1] A edição portuguesa serviu de texto comparativo para as traduções aqui apresentadas, embora contenha alguns erros de tradução e uma revisão apressada. É o caso da expressão alemã “das arsanische grauen” que parece ser uma invenção do autor e que, em inglês, aparece como “arsanical horror” (p. 63) enquanto em português surge, erradamente, como “terror de Ars” (sic, p.60) o que remeteria para a região de Ars e, hipoteticamente para o cura de Ars constituindo uma leitura demasiado forçada da expressão “arsanische” que parece ter uma mais evidente ligação com o termo “arsénico” e não com o termo “Ars”. Para além disso, as imagens são de má qualidade comparativamente com a edição inglesa e surgem muitas vezes demasiado afastadas da página em que o autor as sugere ou descreve.


(LFB)

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Psicofisiologia

Paixões = estados emocionais patológicos/doentios; de intensidade exagerada; pouco adaptativos.

D.O.

sábado, 2 de junho de 2007

O futuro de uma ilusão


Vinte e sete anos após a publicação de A Interpretação dos Sonhos – obra, considerada por muitos como uma das mais influentes do século XX – Freud propõe algo não menos prodigioso: uma visão sobre o passado, presente e futuro da civilização.
E não o faz sem antes alertar para os perigos que todo o homem enfrenta perante tal empreendimento: a perigosa influência nas suas posições das suas expectativas, experiências
de vida e temperamento, bem como a dificuldade de se distanciar do presente em que está inevitavelmente imerso de modo a delinear de forma mais objectiva os seus argumentos.

Começa então por definir civilização como “tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima da sua condição animal e difere da vida dos [restantes] animais”, i.e., as conquistas do homem sobre a natureza no sentido de controlá-la extrair dela riqueza e ainda as normas que foi construindo de modo a “regular” as relações humanas, especialmente no que toca à distribuição da riqueza disponível. Apesar de considerar grandiosas as conquistas humanas sobre a natureza, Freud revela-se mais pessimista no que concerne aos assuntos humanos: defende que, devido ao predomínio das disposições instintivas sobre o intelecto, todo o indivíduo é virtualmente um inimigo da civilização pelo que esta apenas se mantém com base na coerção. Isto conduz inevitavelmente a estados de privação e de insatisfação, sobretudo das massas (mais oprimidas).

Mas como poderá a civilização compensá-las por tal sofrimento? Através dos ideais, da arte e da religião. Os primeiros porque permitem uma espécie de satisfação narcísica quando o indivíduo compara a sua cultura (que considera superior) às demais. A arte, embora acessível apenas às minorias, por proporcionar a sublimação dos impulsos e consolidar sentimentos de identificação com a cultura. E a religião, que considerada pelo autor como “o mais importante [e valorizado] inventário psíquico de uma civilização”, constitui-se como o principal foco da presente obra. É no confronto com um opositor (personagem que cria de modo a proporcionar uma acesa discussão) que Freud se compromete a responder, entre outras, à pergunta Qual o valor das Ideias Religiosas? Dedica-se primeiramente à explicação da origem de Deus com base na interacção entre as necessidades/desejos da civilização – humanização da natureza, atribuindo-lhe um sistema de significações humanas para melhor poder compreendê-la e “influenciá-la”; fazer face ao destino cruel de privações e sobretudo à angústia da inevitável morte e ainda “vigiar os preceitos da civilização” – e necessidades/desejos de natureza mais individual – transferir conflitos da infância (ligados ao complexo edipiano) para a vida adulta com uma solução universalmente aceite: a figura paterna, protectora, amada e temida revela-se na figura do Pai, cuja força imensa é temida, mas que protege contra os perigos do mundo.

Embora apresentadas ao indivíduo como revelações transmitidas por Deus ao longo das gerações (ignorando qualquer aspecto histórico da sua evolução), para Freud o seu “valor civilizacional real” não deriva da sua santidade, mas sim do seu papel enquanto importantes vias para a coerção dos instintos primordiais (ex: incesto, assassínio), formando, portanto, um importante sistema de “regras-veículo” da civilização. O nível moral dos seus membros corresponde ao ponto até ao qual as regras são interiorizadas. Contudo, Freud define-as como ilusões, uma vez que não sendo produto de raciocínio sistemático e/ou de verificação empírica, resultam – exclusivamente - dos mais antigos e prementes desejos da humanidade, advindo daí a sua força. Argumenta que, apesar da impossibilidade de serem refutadas ou confirmadas, são talvez os predicados civilizacionais mais decisivos na definição da relação humana com o mundo e ao mesmo tempo mais contraditórios e menos comprovados, não tendo qualquer fundamento racional e que, portanto, se não forem comparáveis a delírios, representam para a civilização pelo menos um “problema psicológico grave”.

E qual a solução para o problema? Dado a essência proibitiva da doutrina religiosa, reprimindo os instintos, mas ao mesmo tempo impedindo que dúvidas se levantem acerca dos seus axiomas, a educação religiosa precoce (dominante na época), conduzirá segundo o autor, a um futuro intelecto débil, uma vez que as ideias são transmitidas numa idade em que a criança não é capaz de reflectir adequadamente acerca do que lhe é apresentado. Não obstante admitir a possibilidade de estar ele próprio a perseguir uma ilusão ( “talvez o efeito da proibição religiosa no pensamento não seja tão grave, talvez a natureza humana pudesse ter evoluído no memos sentido”), Freud propõe uma educação não religiosa (principal objectivo da obra). É verdade: o individuo terá de enfrentar uma situação difícil, terá de admitir para si todo o seu angustiante desamparo, mas o “homem não pode ser criança para sempre” terá de fazer melhor uso dos seus recursos – sobretudo dos intelectuais, terá de “chamar à terra” todos os pressupostos civilizacionais e despojá-los de toda a santidade; mas não estará completamente desamparado: a Ciência, com base no intelecto humano e na experiência, pode conseguir um certo conhecimento da realidade que por sua vez conferirá ao homem maior poder na organização da sua vida.

Apesar do imenso número de questões por responder, dos problemas (epistemológicos, metodológicos…) que possam surgir, as suas numerosas conquistas não são uma ilusão. Para Freud, a ciência afigura-se portanto como o caminho no qual a civilização poderá alcançar o “estado psicológico ideal”: a primazia do intelecto sobre os instintos.


D.O.

quinta-feira, 17 de maio de 2007

A esquerda e a América

Bernard -Henri lévi (BHL), mimetizando a viajem que Alexis de Tocqueville fez em 1831/32 e que deu origem ao livro A democracia na América, fez aquilo que qualquer homem político deveria fazer: viajou pela América, observou, falou com os americanos e escreveu sobre a experiência. O resultado é o livro American Vertigo (que eu não li, baseio este texto apenas na entrevista que BHL deu ao Ípsilon de 4 de Maio).
BHL defende que todos os clichés que a esquerda europeia exibe à boca cheia sobre a América são falsos, ou então que as coisas são muitos mais complexas do que o anti-americanismo nos quer fazer crer. Vindas de um intelectual da esquerda francesa vale a pena reter algumas das suas muito discutíveis ideias:

1) catalogar a América de imperialista é uma ideia a rever (os imperialismo estiveram sempre na Europa, e foi contra eles que a nação americana se revoltou. O peso da tradição imperialista é uma coisa dos países europeus e não da América);

2) a América tem um sistema de saúde e de segurança social que é "uma mistura de público e privado";

3) a segregação racial nos estados do sul é, em grande parte, uma coisa do passado;

4) A América é materialista mas "é provavelmente o país mais religioso do mundo";

5) Guantánamo "é inadmissível (...) mas não é o Gulag", este significou "dezenas de milhões de mortos aquele algumas centenas de prisioneiros sem direitos, em alguns casos torturados";

6) a democracia liberal é boa para todos e é preciso derrubar os ditadores, o que faltou à América no Iraque foi "um consenso Internacional, aliados no terreno e um plano de reconstrução";

7) "O anti-americanismo é uma ideia [com origens] na extrema direita" europeia; é uma ideia fascista contra uma nação democrática; é grave que a esquerda actual o queira introduzir nos seus programas políticos porque transporta consigo os perigos do nacionalismo fascista baseado na "raça" e no "sangue";

8) A luta contra o terrorismo islâmico é uma luta política contra o fascismo de origem ideológica europeia e não uma luta religiosa (é simplista pensar que o terrorismo existe porque os terroristas, orientados por gente cheia de dinheiro, passam fome e são dominados pelo imperialismo americano).

(LFB)

sábado, 21 de abril de 2007

View of Antwerp with the Frozen Schelde by Lucas van Valckenborch

Adicionar legenda


Por sugestão de uma passagem do livro Austerlitz de W. G. Sebald (pp.13-14, Modern library), sobretudo relacionada com o pormenor da queda da senhora de vestido amarelo.

domingo, 1 de abril de 2007

tudo a evitar, se puder

Vi, por acaso ("prefiro não o fazer", mas não pude evitar), uns minutos da telenovela da TVI subsidiada por Carlos César com dinheiro público. Mas parece-me que vi o essencial. Actores que fazem um grande esforço para parecerem gente rica e séria. Não me apercebi do enredo, nem isso me interessa, mas vi uns a fazerem de empresários em S. Miguel. Por várias vezes, ouvi-os dizer uns aos outros: - Agora vou para Lisboa. - Agora vou a Lisboa. (sempre são seiscentas passagens!). E o "nosso" (como é tratado nalguns meios solidários) Zeca Medeiros no papel de actor de telenovela da TVI.

(LFB)

domingo, 25 de março de 2007

(LE)
Cuidado!
Não se confunda uma instituição de fins educativos com outra de fins puramente lucrativos.

sábado, 17 de março de 2007

E o problema nem sequer é se a programação da TVI é, em geral, recomendável. Eu acho que não é. No entanto, cada qual que escolha o que melhor lhe aprouver e a melhor forma de ocupar os seus tempos de ócio. Nas sociedades democráticas defende-se que cada um deve poder escolher uma concepção do bem e orientar-se por ela. O problema maior é se é aceitável aplicar dinheiros públicos em estações de TV privadas para que estas realizem telenovelas. Mesmo que daí venham lucros - o que no caso nem está garantido; quem garante que por causa de uma telenovela os hotéis açorianos vão deixar de estar às moscas? Para além disso, há muitas outras coisas que dariam muito dinheiro à região e nas quais não se investem dinheiros públicos, pelo menos descaradamente. Precisamente por serem imorais. Mas César e o seu governo parecem ter perdido toda a noção de moralidade política; trocaram-na pela economia.

(LFB)

quinta-feira, 15 de março de 2007

De uma ida ao novo bloco da Universidade dos Açores no Pico da Urze num ambiente TVI.

Em direcção a um conferência, proferida por Comandante de Fragata, sobre métodos de calcular a longitude nos séculos XVII e XVIII, passagem por corredores apertados e altos completamente forrados de azulejos 15 por 15 laranja vivo, e por escadarias e espaços de transição com paredes verde alface. No anfiteatro as cadeiras como objecto de tortura - é mais para ver do que para sentar e ouvir. Ou então, e mais provável, é não ter havido dinheiro para comprar cadeiras minimamente confortáveis. Sabe-se que o orçamento para a construção deste novo edifício foi cortado e que a obra foi sendo, por falta de dinheiro, adiada. Quanto às cores, elas denunciam a pobreza estética que muitos edifícios públicos novos insistem em exibir. Quem terá escolhido aquelas cores? E porquê? Será que algum arquitecto consegue justificar a compatibilidade entre um ambiente TVI (imediatista, agressivo, primário, atraente ao olhar passageiro, mas repulsivo ao olhar permanente, rapidamente degradável) e um ambiente académico (mediato, razoável, tendencialmente neutro, duradouro)? Ou terá sido um gesto político, mesmo que inconsciente, de dar um ar atraente a uma coisa nova, que rapidamente deixará de o ser? O mundo das aparências...

Carlos César, por decisão sua, dá 500 mil euros e 600 passagens na Sata à TVI e à "ilha dos amores" e considera a estação uma referência. Supõe-se que com esta afirmação César signifique apenas que esse é o canal que tem mais audiência em sua casa, tal como na casa da maioria dos portugueses. Assim como também é público que o canal preferido da mulher de Cavaco Silva é o Odisseia. A justificação de que o retorno será maior do que o investimento não é o que está em causa. A política não é só sobre dinheiro. Muito menos a política educativa que é vinculada através da televisão. Ao apoiar a TVI e ao referenciá-la como uma boa televisão, César diz aos açorianos que ver esse canal é bom. Mas é bom para quê e para quem?

(LFB)

domingo, 11 de fevereiro de 2007

  1. Gonçalo M. Tavares, Um Homem: Klaus Klump, p.117

    "(...) Os conhecimentos ouvem-se, mas para agir a capacidade de audição é praticamente desprezável. Porque agir é estar próximo das coisas e ouvir é estar afastado das coisas. Alguém que apenas ouve nunca será considerado um intruso no mundo, a Natureza não se sentirá ameaçada. Quem ouve poderá acumular conhecimentos, mas essa acumulação não lutará com a natureza. Esta resiste bem à inteligência, ao raciocínio e à memória do Homem: todas estas qualidades intelectuais são assuntos que dizem respeito exclusivamente ao mundo da cidade, e o que ameaça a natureza são as acções: os momentos em que os humanos abandonam a audição, e mesmo a linguagem do discurso, e passam a querer falar com o sentido do tacto: o único que pode alterar as coisas. Se os homens, mantendo a sua inteligência incorrupta, fossem seres imóveis, incapazes de qualquer movimento, seriam ainda hoje menos poderosos do que um único metro quadrado de terra espontâneo. Poderiam possuir um grau de aperfeiçoamento no pensamento abstracto, matemático e lógico, mas não deixariam de ser uma espécie secundária ao lado das outras: as possuidoras de movimento. Qualquer cão mesquinho mijaria nas pernas de um homem altamente inteligênte mas imóvel. (...)"