sábado, 14 de julho de 2007

SEBALD, Austerlitz. De que fala este livro?

O livro de Sebald constituiu uma visão não mostrada da Shoah escrita por um autor alemão, ainda que tendo vivido os últimos trinta anos da sua vida no Reino Unido. Estarmos perante um alemão talvez não seja despiciendo em relação ao facto de a obra em análise falar da Shoah sem nunca a mencionar de forma aberta. Sebald não consegue falar directamente desse horror – na realidade julga ser impossível escrever sobre os campos de concentração – o que coloca os seus livros num campo de ambiguidade criticável; de algum modo o assunto dos seus livros é sempre o “lager” do qual ele nunca fala directamente. Alguns críticos mais ferozes dizem que o autor se limita a fazer rendilhados em torno de um tema demasiado sério para isso. Uma das formas que encontrei para dar conta dessa ambiguidade foi destacar no livro certas passagens que, se retiradas do seu contexto, parecem estar a falar, ou a descrever, aspectos do “lager” quando na realidade não estão, mas afinal estão! Aparte a riqueza literária da ambiguidade, o jogo parece também transportar o fantasma do relativismo dos acontecimentos em causa. Se é possível encontrar certas passagens no livro que literalmente descrevem o “lager” mas que no contexto do livro se aplicam a outros fenómenos, não poderemos nós concluir pela importância relativa desses acontecimentos?
Por exemplo:

“… rodopio encrespado de vapor que foi recobrindo gradualmente todo o chão de pedra, tornando-se cada vez mais denso e crescendo de forma visível até que apenas metade de nós próprios emergimos dele e em breve poderia até cortar-nos a respiração.” (p.136, Modern Library, p.128 edição portuguesa)
[1]

Esta passagem poderia ser lida como uma descrição do que se passou nas câmaras de gás quando as pequenas bolinhas verdes eram lançadas pelos alemães através de buracos existentes nos telhados e caíam no chão onde estavam as vítimas indefesas, mas, na realidade, trata-se da descrição da chegada de uma neblina.

Outra passagem:

“… um campo, de cor verde-veneno, mais atrás um complexo petroquímico já meio devorado pela ferrugem, de cujas torres e chaminés saem nuvens de fumo branco, como deve ter acontecido sem cessar e há muitos anos.” (186, 174)

Ou ainda o sonho no qual Austerlitz vê:

“… altas chaminés encimadas por penachos imóveis de fumo branco recortadas contra as cores doentias que raiavam o céu ocidental.” (203, 189)

Talvez até por causa do nevoeiro em que o tema está envolto, as primeiras imagens do livro nos forneçam algumas pistas acerca do labirinto para onde somos lançados ao iniciar a leitura. Falando na primeira pessoa, o narrador recorda uma das suas viagens a Antuérpia e o modo como uma dor de cabeça e pensamentos inquietantes o fizeram refugiar-se no zoo da cidade tendo, por fim, visitado o Nocturama (um parte do jardim ocupada por animais para quem o dia é noite e a noite é dia). Este conceito, por si só, com as suas ligações à escuridão, à ilusão, ao espectáculo que é viver e ver, bastaria para introduzir alguns dos temas a destacar. Mas paremos nas quatro primeiras imagens. Que estatuto têm as imagens (fotografias, desenhos, plantas, fotogramas) nos livros de Sebald? Serão apenas ilustrações? Muitas sê-lo-ão. Mas outras, como as quatro primeiras, parecem funcionar como um elemento textual – a imagem como texto, como narrativa não separada do texto, como não simplesmente ilustrativa – que permite libertar no leitor, em forma de sortilégio, outras ligações, significados, memórias, conhecimentos, interrogações, etc, que de outro modo não aconteceriam. Essas primeiras imagens, suscitadas pelo nocturama, fazem emergir a dificuldade de falar de certos temas precisamente porque eles estão presos no passado mas, simultaneamente, e ligando com os olhos grandes dos animais nocturnos devemos, para descobrir quem somos, perscrutar esse passado escuro:

“… olhos excepcionalmente grandes e esse olhar fixo, inquiridor que se encontra em determinados pintores e filósofos que, com recurso apenas à pura observação e ao puro pensamento, procuram penetrar as trevas que nos cercam .” (p.4-5, 6-7)
Repare-se como a semelhança entre os dois pares de olhos dos humanos (Wittgenstein – os olhos deste filósofo servem-me também para recordar a frase que tudo tem a ver com o conteúdo deste livro: “acerca daquilo que não se pode falar, tem que se ficar em silêncio") e os dois pares de olhos dos animais só é dada através do nosso olhar sobre as fotografias dos olhos deles e como a força e a riqueza da analogia acontece quando essa visão se liga com a sugestão de “penetrar as trevas que nos cercam”.
O tema é, pois, o humano do pós-holocausto que, como os viajantes involuntários dos comboios da Europa nazi – veja-se como o narrador chega de comboio à estação de Antuérpia e é “tomado de um mal-estar” – não sabe onde está, quem é ou para onde vai.



[1] A edição portuguesa serviu de texto comparativo para as traduções aqui apresentadas, embora contenha alguns erros de tradução e uma revisão apressada. É o caso da expressão alemã “das arsanische grauen” que parece ser uma invenção do autor e que, em inglês, aparece como “arsanical horror” (p. 63) enquanto em português surge, erradamente, como “terror de Ars” (sic, p.60) o que remeteria para a região de Ars e, hipoteticamente para o cura de Ars constituindo uma leitura demasiado forçada da expressão “arsanische” que parece ter uma mais evidente ligação com o termo “arsénico” e não com o termo “Ars”. Para além disso, as imagens são de má qualidade comparativamente com a edição inglesa e surgem muitas vezes demasiado afastadas da página em que o autor as sugere ou descreve.


(LFB)