quinta-feira, 13 de abril de 2006

A invenção da "nossa vida"

Um das causas da doença da República e dos parlamentos (nacionais e regionais) é precisamente a invenção da vida privada e as suas nuances contemporâneas. Pode ser-se presidente da Republica, presidente de uma região autónoma ou de um parlamento, pode ser-se deputado, secretário, director regional, professor, médico, ou até dirigente sindical, etc., mas não se deixa por isso de ter a "nossa vida" e esta não deixa de ser mais importante e de estar acima da nossa vida pública; embora, nestes exemplos, seja esta o sustento daquela.
Vem isto a propósito da recorrente inferiorização da classe política que se revela em actos nacionais como a falta de quórum de ontem na assembleia nacional (e falta de ética, muitos deputados assinaram mas não estiveram presentes) e em actos regionais como o episódio discutido no plenário do mês de Fevereiro, relacionado com o facto de alguns deputados terem sido acusados por outros de não fazerem nada; até se poderia dizer que a discussão foi acerca do facto de nada haver para se fazer no parlamento regional. Houve um deputado que respondeu – como que a corroborar a ideia aqui esboçada – que se era para não fazer nada ele tinha coisas mais importantes para fazer em sua casa! O problema é que todos temos a nossa vida e esta tornou-se mais interessante (porque nos dá mais prazer) e mais viciante (porque exige muitas compras) do que qualquer assunto público, até mais importante do que a aprovação de leis em assembleia nacional.
Os gregos clássicos – que pensaram profundamente a democracia – tinham parte desse problema resolvido porque entregavam as questões da economia privada às mulheres e aos escravos ('economia' significa etimologicamente as leis da casa) e porque ligavam o ideal democrático à liberdade exigindo que qualquer homem que se quisesse dedicar ao serviço da polis (a vida virtuosa por excelência) fosse livre o suficiente para isso; quer dizer, tivesse liberdade política para participar nas decisões colectivas, mas também que tivesse liberdade privada, que pudesse viver como quisesse. Aí era o exercício da cidadania activa que conferia direitos políticos; se não se fosse capaz de exercer a cidadania (como se julgava ser o caso das mulheres e dos escravos) não se era simplesmente cidadão. Em muitos aspectos somos mais romanos (foi a Roma, e não à Atenas democrática, que os revolucionários republicanos do século XVII foram buscar inspiração política para acabar com os monarquias) do que gregos, e conseguimos alargar a cidadania ao ponto de já não sabermos bem o que ela significa. Tal como os romanos, procuramos estabelecer regras de equilíbrio entre os governantes (a classe dos senadores) e os governados (o populus) mas, de alguma maneira, perdemos a confiança nos políticos. Aqui surge um problema fundamental: o que fazer quando os cidadãos de uma republica democrática deixaram de confiar naqueles que foram escolhidos para serem os dirigentes da nossa vida comum?

(LFB)

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