domingo, 20 de setembro de 2015

aqui no KL: ninguém se conhece a si mesmo. Quem és tu? [fala Doll o Herr Commandant]

"E quanto a Szmul, quanto aos Sonders? Ah,  quase me falta a coragem para passar isto para o papel. Sabem, nunco cesso de me espantar com o abismo da miséria moral a que certos seres humanos estão dispostos a descer...
Os Sonders executam as suas horrendas tarefas com a mais ignara indiferença. Usando grossos cintos de cabedal arrastam as peças dos duches para o Leichenkeller 1; extraem os dentes de ouro com alicates e formões e cortam o cabelo das mulheres com tesouras bem afiadas; arrancam os brincos e as alianças de casamento; depois, enchem com uma pilha a roldana (6 a 7 de cada vez), a qual é içada para fazer entrar os corpos nos fornos; por fim, moem as cinzas e o pó é levado em camiões e deitado ao rio Vístula. Como já disse, fazem tudo isto com a mais ignara insensibilidade. Parece que não se importam minimamente com o facto de as pessoas que eles desfazem serem seus camaradas de raça, seus parentes de sangue.
E os abutres do crematório alguma vez mostram a mais ligeira animação? Ach, sim: quando saúdam os evacuados na rampa e os conduzem para a sala em que os despem. Por outras palavras, eles só se animam com a traição e o embuste.  «Diz-me, qual é a tua profissão?», perguntam eles. «Engenheiro, hã? Excelente. Nós precisamos sempre de engenheiros.» Ou qualquer coisa do género: «Ernst Kahn... de Utreque? Sim, ele e a sua... Ah, sim, Kahn e a sua mulher e filhos estiveram aqui durante um mês ou dois e depois decidiram mudar-se para a estação agrícola. A número um em Stanislavov.» Quando há alguma dificuldade, os Sonders não têm o menor problema em apelar à violência; conduzem o tipo que está a causar chatices ao oficial subalterno mais próximo, o qual lida com a situação da maneira mais adequada.
Estão a ver, no caso de Szmul e dos outros Sonders, interessa-lhes que as coisas corram serena e rapidamente, porque estão impacientes por vasculharem nas roupas despidas e encontrarem qualquer coisa para beber ou fumar. Ou para comer. Eles estão sempre a comer - sempre a comer, os Sonders, a comer os restos surripiados na sala onde os prisioneiros se despem (apesar das rações relativamente generosas de que, ainda por cima, desfrutam). Sentam-se a comer a sopa em cima de uma pilha de Stucke; atolam-se até aos joelhos no pestilento prado enquanto comem um naco de presunto...
Espanta-me que eles decidam persistir, durar, deste modo. E é isso mesmo que eles decidem: alguns (não muitos) recusam categoricamente, apesar das óbvias consequências - porque também eles se tornam Geheimnistrager, portadores de segredos. Não que nenhum deles possa esperar prolongar  a sua cobarde existência por mais do que 2 ou 3 meses. Quanto a este ponto, somos muito claros e diretos: no fim de contas, a tarefa iniciatória dos Sonders é a cremação dos seus antecessores; e assim  continuará a ser. Szmul tem a dúbia distinção de ser o mais antigo cangalheiro do KL - aliás, não me admiraria se ele fosse o mais antigo cangalheiro em todo o sistema concentracionário. É virtualmente um Prominent (até os guardas o tratam com algum respeito). Szmul prossegue. Mas sabe muito bem o que é que lhes acontece - o que acontece a portadores de segredos.
Para mim, a honra não é um caso de vida ou de morte: é muito mais importante do que isso. Os sonders, muito obviamente, têm uma visão diferente. Honra? Nem traço; o desejo animal ou mesmo mineral de persistir. Existir é um hábito, um hábito que eles não conseguem largar. Ah, se eles fossem homens verdadeiros - no lugar deles, eu... Mas esperem. Nós nunca estamos no lugar de ninguém. E é verdade o que se diz, aqui no KL: ninguém se conhece a si mesmo. Quem és tu? Não sabes. Depois, vens para a Zona de Interesse e ela diz-te quem tu és.
  1 Cave dos cadáveres. (N. do E.)"

                         Martin Amis, A Zona de Interesse, Quetzal, 2015, pp. 83-85                                  

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