quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

fazer da vida um poema

"Da cintura para baixo, todos os homens são irmãos. O homem nunca conheceu a solidão senão nas regiões superiores, onde se é poeta ou louco - ou criminoso. (...) continuo a preferir a vida anárquica; ao contrário de Paul Éluard, não posso dizer que a palavra «fraternidade» me entusiasme. Nem me parece que a ideia de fraternidade tenha origem numa concepção poética da vida. Não era a ela que, de maneira alguma, Lautréament se referia, ao escrever que a poesia deve ser feita por todos. A fraternidade humana é uma ilusão permanentemente compartilhada pelos idealistas de todas as épocas e lugares: é a redução do princípio da individuação ao mínimo denominador comum de inteligibilidade. é o que leva as massas a identificarem-se com as estrelas de cinema ou com os megalómanos como Hitler ou Mussolini. é o que as impede de lerem e apreciarem , de receberem a influência e de criarem por seu turno poesia (...)
Em todas as épocas, bem como em todas as vidas dignas desse nome, verifica-se um esforço por restabelecer esse equilíbrio que é perturbado pelo poder e pela tirania que algumas grandes figuras exercem sobre nós. Esta luta é essencialmente pessoal e religiosa. Nada tem a ver com a liberdade e a justiça, que são palavras ociosas, querendo dizer ninguém sabe ao certo o quê. Tem a ver com a poesia ou, se quiserem com fazer da vida um poema. Tem a ver com a adopção de um atitude criadora perante a vida. Uma das formas mais eficazes de manifestação desta luta consiste em liquidar as influências tirânicas sobre nós exercidas pelos que já morreram. Consiste não em negar os seus exemplos, mas em absorvê-los, assimilá-los e, se for esse o caso, em ultrapassá-los. Cada homem terá que fazer isto apenas por si próprio. Não há nenhum plano praticável para a libertação universal. A tragédia que cerca a vida de quase todas as grandes figuras é esquecida na admiração que consagramos ao trabalho de tais homens. Esquecemos que os gloriosos gregos, que não paramos de admirar, trataram os seus homens de génio de um modo talvez mais vergonhoso e mais cruel do que qualquer outro povo conhecido. Esquecemos que o mistério que rodeia a vida de Shakespeare só é mistério porque os Ingleses não querem admitir que a estupidez, a incompreensão e a intolerância dos seus contemporâneos levaram Shakespeare à loucura e que este acabou os seus dias num manicómio.
A vida é banquete ou fome, como diz o velho provérbio chinês. Hoje é mais fome do que qualquer outra coisa. Sem precisarmos de recorrer aos ensinamentos de um sábio como Freud, é evidente que, em épocas de fome, os homens se comportam de maneira diferente do que na abundância. Em tempos de fome, andamos a vaguear pelas ruas com um olhar voraz. Olhamos para o nosso irmão, vemos nele um suculento naco e prontamente lhe armamos uma cilada e o devoramos. Fazemo-lo em nome da revolução. A verdade é que não tem muita importância aquilo em nome de que o fazemos. Quando os homens se tornam irmãos tornam-se também ligeiramente canibais. Na China, onde as fomes são mais frequentes e mais devastadoras, já tem acontecido as pessoas ficarem tão histéricas (por trás da famosa máscara oriental) que, quando vêem ser executado um homem, se descontrolam e riem.
A fome em que vivemos tem a peculiaridade de se verificar no meio da abundância. Trata-se mais de uma fome espiritual, poderíamos dizê-lo, do que de uma fome física. Desta feita, as pessoas não lutam pelo pão, mas pelo direito ao seu pedaço de pão, distinção que se reveste de alguma importância. O pão, em sentido figurado, está em toda a parte, mas a maior parte de nós tem fome. especialmente os poetas - poderei dizê-lo? Pergunto, porque é tradição os poetas passarem fome. É, portanto, um pouco estranho vê-los identificarem a sua fome física habitual com a fome espiritual das massas. Ou será o contrário? Seja como for, estamos hoje todos esfomeados, excepto, sem dúvida, os ricos e a burguesia presunçosa, que nunca souberam o que é passar fome, nem espiritual nem fisicamente.
Inicialmente, os homens matavam-se uns aos outros na mira imediata da pilhagem - alimentação, armas, utensílios, mulheres, etc. Tinha sentido, embora nem caridade nem compaixão. Hoje somos compassivos, caridosos e fraternos, mas continuamos a matar da mesma maneira, e matamos sem a mínima esperança de atingirmos os nossos objectivos. Matamo-nos uns aos outros em benefício dos vindouros, para que estes possam gozar de uma vida com mais abundância (Grande treta!) "

 Henry Miller, "carta aberta aos surrealistas de todo o mundo" (1959) in, O Mundo do sexo e outros textos, Dom quixote, 1987, pp. 149-151.

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