segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Primo Levi, Se Isto é um Homem

"27 de Janeiro. Madrugada. No chão, a infame confusão de membros ressequidos, a coisa Sómogyi.
Há trabalhos mais urgentes; não podemos lavar-nos, por isso, só podemos mexer nele depois de termos cozinhado e comido. E, além disso «rien de si degoûtant que les débordements», diz justamente Charles; é preciso esvaziar o balde. Os vivos são mais exigentes; os mortos podem esperar. Começamos a trabalhar como todos os dias.
Os russos chegaram enquanto Charles e eu levávamos Sómogyi para um lugar um pouco afastado. Estava muito leve. Virámos a maca na neve cinzenta.
Charles tirou o boné. Tive pena de não ter boné.
Dos onze da Infektionsabteilung, apenas Sómogyi morreu durante os dez dias. Sertelet, Cagnolati, Tomarowski, Lakmaker e Dorget (...) morreram algums semanas mais tarde na enfermaria russa provisória de Auschwitz. Encontrei em Katowice, em Abril, Schenk e Alcalai de boa saúde. Arthur regressou felizmente à sua família, e Charles retomou a sua profissão de professor primário: trocámos longas cartas e espero poder reencontrá-lo um dia."
            Últimos parágrafos do livro de Primo Levi, Se Isto é um Homem, Público, 2002, p.190           

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