segunda-feira, 23 de junho de 2008

Três ideias liberais e uma relação contingente entre liberalismo e democracia

O constitucionalismo pressupõe, na sua construção, o liberalismo. Apresento a seguir – arriscando-me a simplificar e a uniformizar demasiado aquilo que, por natureza, é um campo de contestação[1] – uma explicitação sucinta das principais teses que caracterizam as doutrinas liberais[2].

Em primeiro lugar temos a tese do ‘atomismo individual’ (Holmes, 1993, p. xii): a sociedade é constituída por indivíduos autónomos com interesses, desejos e crenças próprios (formados em privado e muitas vezes incompatíveis com os interesses de outros indivíduos), e esses mesmos indivíduos são os únicos com direito de se prenunciar sobre os seus interesses e suas implicações. Acredita-se que os indivíduos são racionais, no sentido de poder escolher os meios para realizarem os fins que escolheram; são livres, no sentido de poderem escolher a sua própria concepção do bem; e são responsáveis pelas suas acções, no sentido de por elas responderem. Ao conjunto de indivíduos com interesses, desejos e crenças muito diversificados pode atribuir-se a designação de sociedade plural. Esta tese é, como veremos, negada, ou alterada, pela democracia deliberativa.

A 2ª tese liberal é expressa pela ideia do indivíduo anteceder a formação do social e do político; antes de mais somos indivíduos concretos e definidos, só por contingência vivemos em sociedade e participamos na tomada de decisões políticas. A política justifica-se pela necessidade de regular, por exemplo através de um conjunto de regras norteadas por uma constituição, os conflitos de interesses que possam existir dentro da sociedade plural. Para impedir que um indivíduo, ou grupo de indivíduos, tiranize os outros através da imposição da sua concepção de bem, é necessário estabelecer: (i) um conjunto de direitos que protegem os indivíduos do estado e dos outros cidadãos; (ii) um conjunto de obrigações relativas ao respeito por esses direitos; e (iii) um conjunto de deveres para com o governo que é a garantia daqueles direitos (Dryzek, 2002, p.9). Esta tese em conjunção com a primeira, pode ser usada para explicar a distância e o desinteresse político dos indivíduos nas democracias ocidentais. A constatação deste facto, pode justificar a exigência – por parte da democracia deliberativa - de uma empenhada participação política. Participação esta que seria, de certa forma, negligenciada e potenciada pelo liberalismo.

A 3ª tese liberal estabelece a primazia do direito em relação ao bem. O indivíduo ganha uma protecção de direito em relação a concepção de bem que a comunidade possa ter. Por isso, toda a imposição moral que dessa concepção derive deve ser considerada ilegítima. Em termos políticos os interesses da sociedade com um todo, ou de um grupo de indivíduos, não têm mais valor do que os interesses de um único indivíduo. Anseia-se mais pelo pluralismo político – estabelecer uma ordem política onde as diferenças morais e materiais possam coexistir; do que pelo universalismo – encontrar a verdade acerca do que é o melhor para todos. Outra forma de dizer isto – porventura mais rawlsiana (veja-se Rawls, 1996, pp. 173-176)[3] – é afirmando que se pretende encontrar condições de separação entre a política – encontrar uma concepção política de justiça que se aplique, através da estruturação das principais instituições políticas, apenas à vida política dos indivíduos e que seja aceite por todos independentemente das doutrinas inclusivas que defendam; e a moral – entendida como o conjunto das várias e incompatíveis doutrinas acerca do bem individual. Esta separação não implica que a esfera política seja moralmente neutra, pelo contrário ela inclui ideias morais liberais muito importantes, como a garantia de direitos e liberdades, a separação de poderes, a discussão e avaliação pública de ideias políticas. Quer dizer que a concepção política, embora não sendo uma doutrina inclusiva, é também normativa e tem “um ideal intrínseco” moral baseado naquelas ideias (Rawls, 1996, p.xliv).

Dado que nenhuma destas teses faz referência à democracia como forma de justificação e controlo do poder através de uma escolha popular feita entre cidadãos iguais, podemos facilmente afirmar que o liberalismo não tem que ser democrático e que até se pode dizer que ele surge para proteger a liberdade dos cidadãos de alguns perigos que podem resultar de maiorias democráticas opressivas. (Historicamente o liberalismo nasceu separado da democracia e só no séc. XX se introduziu o conceito de ‘democracia liberal’.)

NOTAS:

[1] Sobre as várias diferenças e discordâncias que existem entre as doutrinas liberais veja-se a Introdução e o 1º capítulo do livro de Stephen Holmes, Passions & Constraint, Chicago U. P., 1995.
[2] Que são diferentes das sociedades liberais, por vezes a não-distinção entre sociedades liberais e doutrinas liberais tem levado ao surgimento de confusões e de críticas incorrectas. Cf. Holmes, 1993, p.xiv-xvi.

[3] Pretendo apenas apresentar três ideias liberais que suportam a democracia constitucional deliberativa liberal. Sendo que a ideia de consenso sobreponível a que recorro é apenas introduzida como um exemplo decorrente da terceira tese liberal. Ainda que eu faça referência a Rawls, não pretendo apresentar a definição da concepção liberal da justiça como equidade, nem explicar a coexistência, nas sociedades democráticas mais ou menos razoáveis, de diferentes concepções liberais acerca da justiça (cf. Rawls, 1996, p.xlviii).

referências bilbiográficas:
HOLMES, Stephen, (1993) The Anatomy of Antiliberalism, Harvard U. P.;
HOLMES, Stephen, (1995) Passions & Constraint, Chicago U. P.;
RAWLS, John, (1996, paperback edition) Political Liberalism, New York, Columbia University Press.

Luis Filipe Bettencourt (2005)

terça-feira, 17 de junho de 2008

A democracia deliberativa e a educação

1. DEMOCRACIA DELIBERATIVA: O QUE É?

A ideia fundamental da democracia deliberativa é a reciprocidade entre indivíduos livres e iguais. A tese é que, numa democracia, os cidadãos, e os seus representantes, devem apresentar, uns aos outros, justificação pelas normas a que, colectivamente, estão submetidos. Deste ponto de vista, uma democracia é deliberativa na medida em que os cidadãos e os seus representantes responsáveis oferecem uns aos outros razões moralmente defensáveis para leis que a todos obrigam, num processo contínuo de justificação mútua.

Uma democracia não deliberativa é aquela democracia que trata os seus cidadãos apenas como objecto da legislação, apenas como sujeitos passivos a governar, em vez de os encarar como cidadãos que fazem parte da governação através da aceitação ou rejeição das razões que eles e os seus representantes apresentam para justificar as leis e as políticas que a todos dizem respeito.

A democracia deliberativa sublinha a importância de uma educação pública que desenvolva, nos educandos e nos educadores, as capacidades conducentes a uma futura deliberação entre cidadãos livres e iguais.

Deste ponto de vista, uma escola será deliberativa na medida em que os seus agentes e os seus representantes responsáveis oferecem uns aos outros razões moralmente defensáveis para as regras que todos devem seguir.


2. UM CASO PRÁTICO: FUMAR, OU NÃO FUMAR, NAS ESCOLAS?

Imagine-se uma escola secundária onde alguns professores e alguns funcionários fumam cigarros na sala de fumadores, e alguns alunos fumam cigarros nos espaços exteriores da escola. Assumindo que há alguma discordância quanto a estes actos serem executados em espaços públicos educativos, como lidar com a situação? Fará algum sentido proibir simplesmente o acto? Será a questão resolúvel e justificável por decreto? Será de referendar internamente a hipotética proibição do fumo nas escolas? Será possível decidir por consenso? Como deve ser feita e gerida a aplicação da putativa solução? Como devem ser as diversas vozes ouvidas? Que influência terá a discussão na solução a adoptar?
O que fazer com o problema do tabaco nas escolas? A escola como elemento formativo fundamental deveria ser exemplar na sua proibição do uso do tabaco no espaço escolar (à semelhança do que acontece com outras substâncias nocivas, como o álcool). Todavia, uma parte interessa na matéria – os professores funcionários e alunos fumadores – defende o direito a fumar o seu cigarro. Por esta razão a simples proibição por lei – àlias já existente no nosso país – tem-se revelado ineficaz, talvez por ser pouco deliberativa, persistindo o problema de saber o que fazer. A questão tem elementos factuais: saber e divulgar os efeitos nocivos do tabaco; saber até que ponto fumar nas escolas em locais reservados para o efeito constituirá, ou não, um mau exemplo para os alunos. Mas também contém elementos morais: supondo que admitimos como razoável a existência de espaços reservados a fumadores, deverão os alunos ter o seu espaço reservado para fumarem? Se não porquê? Por serem menores? E os maiores de dezoito anos poderão fumar? E se sim onde? E se for de todo proibido fumar no espaço escolar, como resolver o problema dos fumadores inveterados? Negar-lhes a possibilidade de fumarem no local de trabalho não constituirá um atentado à liberdade e até à dignidade? O estado, e a escola como um todo, pode desejar proteger as pessoas, mas seria necessário discutir até que ponto queremos e aceitamos um estado paternalista e moralista que impõe às pessoas (aos professores e aos funcionários) comportamentos que elas não querem nem desejam para si, embora possam desejar para os outros. Não são raros os fumadores que defendem a tese do “faz o que eu digo, não faças o que faço”.
A democracia deliberativa não oferece uma solução. O que apresenta é uma forma de discutir a questão – com tempo para reflectir e de forma organizada – tentando fazer ouvir as razões de todas as partes (publicidade) e pedindo-lhes que justifiquem as suas ideias com razões que os outros possam aceitar (reciprocidade). A democracia deliberativa – uma vez que assume que as preferências das pessoas só podem ser alteradas através de um processo de deliberação mútua - não pode apresentar a resposta. A ideia é por as pessoas a pensar e a discutir, não apenas o que é melhor para si, mas o que é melhor para o grupo (neste caso a escola) como um todo. Devem, para isso, participar na tomada de decisão, na qual partilham as suas ideias, discutem em conjunto e, com alguma sorte, poderão atingir um acordo generalizado. A ideia principal é que os argumentos apresentados por cada uma das partes serão, de alguma forma, limitados pelo desejo de alcançar um acordo, o que requer que as partes recorram a princípios gerais em vez de apelarem simplesmente ao seu interesse particular. Deste modo, a discussão, e não a votação, torna-se o atributo principal das decisões democráticas. Por isso, a concepção de um espaço e de um tempo para as pessoas poderem falar e discutir em grupo sobre os assuntos que lhes dizem respeito, e antes das decisões serem tomadas, torna-se fundamental.

Luís Filipe Bettencourt (2005)

UMA DEFINIÇÃO MÍNIMA DE DEMOCRACIA.

“Por mais pós-modernas que sejam hoje as democracias, por mais difusos que sejam os direitos individuais, por mais complexa que seja a governação e o processo de tomada de decisões, por maiores que sejam as restrições impostas pela gestão da economia, há coisas que numa democracia devem permanecer eternas e imutáveis, sob pena de se viver apenas numa aparência de democracia. Deve haver eleições livres, o que pressupõe igualdade de condições à partida e real possibilidade de alternância do poder; deve haver uma fiscalização constante dos actos do poder, a qual não se esgota nem é legitimada simplesmente pelas eleições; deve haver uma justiça independente do poder político, mas não irresponsável perante os cidadãos; e deve haver uma imprensa livre, cujos atropelos e abusos têm de ser reprimidos pelo poder judicial. Isto é o "core business", o mínimo de um regime democrático. Aceitar menos que isto é resignar-se com uma democracia que é formal nos seus aspectos exteriores, mas que ignora a substância das coisas. “

Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Jornal Público, Sexta-feira, 26 de Setembro de 2003

O poder como opressão: uma introdução a Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell.

Um dos temas que se podem desenvolver a partir da leitura desta obra é o tema da opressão injusta que o Estado totalitário exerce sobre as pessoas. Mil Novecentos e Oitenta e Quatro apresenta-se como um tríptico (à semelhança de A Metamorfose de Kafka - sobre as diferentes nuances e leitura do número 3, ver Nabokov, Aulas de Literatura, Relógio d’Água p.325). Olhando de relance para cada uma das partes poderemos anotar diferentes aspectos da opressão.
Na primeira parte, Orwell dá-nos uma visão do mundo onde Winston – a personagem principal – vive imerso e sob total controlo. Winston e os demais habitantes de Oceânia vivem quase totalmente controlados pelo telecrã; nalgumas coisas tão parecido coma a TV do nosso mundo mas que, ao contrário desta, transmite e capta imagens. O telecrã é um dos meios privilegiados para dar corpo ao Big Brother, essa figura que representa a unidade e, simultaneamente, os perigos que ela contém: “(…) uma nação de guerreiros e fanáticos marchando em frente na mais perfeita unidade, pensando todos a mesma trezentos milhões com caras iguais (Orwell, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, Antígona, 1991, p.8o)”. Winston consegue encontrar um canto do seu quarto que talvez não seja captado e aí escreve o seu diário secreto. O pensamento surge como forma de libertação, incluindo o sonho/pesadelo que na obra é outra das formas libertadoras a que Winston recorre. Ele sonha com a sua mãe e irmã, sonha com o tempo antes da guerra, sonha com um outro espaço onde tudo seria mais belo e mais verdadeiro.
As pessoas vivem controladas pelas crianças que, tendo sido desde muito cedo educadas para denunciar os crime-pensantes (a verdade, independentemente das consequências, é das crianças), estão sempre prontas a apontar um suspeito. Controlados também pelas pessoas que se encontram à sua volta. Qualquer um pode denunciar outro e, por isso, qualquer um pode ser denunciado. Aqui nunca se sabe em quem confiar. Winston dúvida de Júlia e chega a desejar matá-la. Depois ama-a e deseja nunca traí-la. Winston confia em O’Brien e pensa, sem nenhuma justificação plausível que não “secretos devaneios, baseados em sonhos” que ele é também um “conspirador político” (174). Depositando a sua confiança num camarada confessa-se, sem saber, ao seu executor (na 3ª parte O’Brien usará essas mesmas palavras de Winston para lhe mostrar que, ao contrário do que afirma, ele não é nenhum anjo, cf. pp. 177 e 271):

“(…) somos inimigos do Partido. Não acreditamos nos princípios do SOCING. Somos crimepensantes. E também somos adúlteros. Conto-te isto para ficarmos à tua mercê. Se quiseres que aprofundemos o compromisso, estamos ao teu dispor.” (175)

Num dos momentos mais irónicos do livro:

“Estão dispostos a enganar, falsificar, fazer chantagem, corromper o espírito das crianças, distribuir drogas que provoquem dependência, fomentar a prostituição, espalhar doenças venéreas… a fazer tudo o que seja susceptível de desmoralizar e enfraquecer o poder político?”

A resposta de Winston é sim. E está pronto para muito mais, desde maltratar crianças até à mutilação do corpo e ao suicídio; ambos estão prontos para tudo. Até, se tal for necessário, obter uma nova identidade. O leitor não poderá deixar de se interrogar sobre o que distingue então Winston do seu carrasco. A diferença está em que um é capaz de fazer tudo para manipular e controlar as pessoas (o poder pelo poder) e Winston é capaz de fazer tudo para acabar com o partido (o poder pela liberdade). São iguais, do ponto de vista das consequências, Do ponto de vista dos ideais não podemos, tal como Winston não pode, aceitar o totalitarismo. Compreendemos até que se possam realizar crimes para cumprir esse objectivo maior. Haver gente, como Winston e Júlia, capaz de realizar todos esses actos transmite-nos alguma segurança, pois significa a afirmação de que, em vez da resignação silenciosa, a luta contra o grande ditador é sempre possível. Felizmente, na vida real e no livro, nem todos são colaboradores. Winston e Júlia só não estão dispostos a separarem-se definitivamente. Júlia é muito mais assertiva na sua resposta. O amor como uma das poucas coisas autênticas a que ambos se podem agarrar. No fim da história caberá a cada leitor saber até que ponto é esse sentimento autêntico. Controlados também pelo passado, pela ausência de memórias fidedignas; todo o passado é completa e diariamente alterado para servir os propósitos do partido. Controlados pela guerra constante. Controlados pela própria língua que, em fase de substituição pela novilingua, deixará de ser uma forma de riqueza e diversidade. A novilingua, limitando o número de palavras, controla e limita a possibilidade de certos pensamentos serem sequer concebidos. Haverá alguma forma de sair dessa prisão?
Na primeira parte é-nos também dada uma visão estratificada da sociedade. Uma sociedade dividida em três grupos: o partido interno – os seus membros viviam melhor do que os outros, vestiam castanho e eram responsáveis privilegiados. Eram, por exemplo, os únicos que podiam desligar, ainda que só por alguns minutos, o telecrã. O partido, composto por funcionários que vestiam de azul e que mantinham a grande máquina torturante em funcionamento. E, por último, os proles que vivem à margem do partido. Vivem na pobreza e na ignorância, é esta a forma que o partido tem de os controlar. Winston chega a acreditar que a salvação só poderá estar nos proles, só eles poderão rebelar-se contra as forças agonizantes da sociedade totalitária. Não é nada claro que assim seja até porque é um prole que denuncia Winston e Julia à polícia do pensamento. A fome e a ignorância sempre geraram bons colaboradores.

A segunda parte, em contraste total com a primeira, acontece sob o signo da luz, da beleza, da esperança e do sonho/realidade. Da escuridão, da fealdade, da resignação e da irrealidade – num certo sentido, tudo é irreal em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, ou não será? – passamos para a luz. Através da descoberta do amor, amante e amado são levados a acreditar que a única verdade possível está nos sentimentos, no coração, nos instintos mais básicos que o Partido tão veementemente tenta suprimir. O amor parental não é permitido – os filhos são separados dos pais; e existe uma forte repressão sexual (só a prostituição é tolerada por ser uma forma de escape e ao mesmo tempo uma forma de descobrir quem tem problemas com os seus instintos). É nos capítulos centrais da 2ª parte que o leitor é levado, por um lado, a crer que alguma saída há-de ser possível para Winston e Julia e que alguma saída há-de ser possível para a própria situação em que cada um de nós, efémeros leitores, se encontra; por muito boa que seja, terá sempre algo de irreal, de manipulado e de opressivo. Veja-se, para substanciar a crença na saída, o capítulo 8, onde sabemos que “estamos sós” (174) o que não deixa de ser surpreendente vindo de O´Brien, o homem em quem eles depositam confiança e onde se afirma que “a nossa única vida autêntica está no futuro” (181).
Por outro lado, o leitor é também colocado perante a pior hipótese: a de não haver saída. No capítulo 5, várias hipóteses são colocadas perante o acto de liberdade que ambos desejam realizar – o de se encontrarem secretamente, negando deste modo todos os postulados da sociedade tal como ela foi apresentada na primeira parte. Júlia acaba por dizer: “o que me interessa somos nós” (161); tese subjectivista que em qualquer tempo e em qualquer situação encontrará sempre os seus seguidores. A ideia de que “só os sentimentos contam” deixa os filósofos estarrecidos de tão crentes que são no poder da razão, na universalidade da verdade e na contingência dos sentidos. Nestas páginas centrais do livro há uma inversão de categorias – o irreal e fugidio torna-se o mais real e duradouro. Enquanto o mundo que os rodeia e as suas categorias foram já transformados na maior das farsas, os sonhos de Winston tornam-se realidade; o que de mais verdadeiro há na sua história pessoal. Contudo, ele sabe – são também os seus sonhos o veículo dessa revelação –e confessa-o a Júlia, que perante situações de miséria extrema, como as resultantes da fome e da guerra como as que ele enquanto criança teve que suportar, é o egoísmo que vem ao de cima – quer seja o egoísmo que o leva a roubar a única comida disponível que a mãe tinha para dar à irmã moribunda, quer seja o egoísmo de não suportar mais a dor da tortura do quarto 101.

Na terceira e última parte é a questão da liberdade interior – desde o início o refúgio de Winston - que é posta em causa. Tendo sido traídos por O’Brien, o que se segue é a tortura (em todos os sentido) como forma última de opressão. A morte seria um bem demasiado grande para poder ser oferecida, sem mais nem menos. Primeiro a limpeza, a purificação mental e, por fim, a negação da mais ínfima liberdade de pensamento. Depois de várias sessões, mas antes da ida ao quarto 101, Winston reconhece que 2+2 tanto pode ser 4 como 5 ou 3. Não há verdades absolutas. Essa é a primeira vitória sobre a liberdade de pensar. No entanto, Winston sonha (sempre o sonho como veículo da libertação) com uma bala que entra pelo seu cérebro e engendra, para esse momento que há-de chegar, a forma de morrer livre:

“Percebeu pela primeira vez que, a querer guardar um segredo, se via obrigado a escondê-lo até de si próprio. (…) daí em diante não lhe bastaria os pensamentos certos, os sonhos certos; tornava-se imperioso mostrar também os sentimentos certos, os sonhos certos. E entretanto guardar o ódio bem fechado dentro de si, como um corpo sólido que fizesse parte da sua pessoa e no entanto não estivesse em contacto com o resto de si, como uma espécie de quisto. (…)” (281/2)

Só “dez segundos” antes da bala atingir o seu cérebro é que ele “operaria uma revolta no seu interior” e libertaria o seu ódio: “Morrer a odiá-los: eis a liberdade.” (282). Depois de se submeter à vontade do Partido e esperando a morte Winston sente que, apesar de ter confessado tudo sobre a sua amada, não a traiu porque nunca deixou de a amar. Mas depois do quarto 101 – “o pior do mundo - continuou O’Brien – varia de indivíduo para indivíduo” (284) - ficamos na dúvida se a liberdade de amar Julia e a liberdade de fazer despertar o ódio antes de morte, coisas tão íntimas e tão difíceis de controlar, serão ainda uma possibilidade para Winston. O sinal de que algo foi ultrapassado no interior de Winston é dado pela traição ao amor que, como já vimos, tinha sido apresentado como real: “façam isto à Julia! Façam isto à Julia! A mim não!” (289) Depois disto podia-se dizer que foi o medo que nos fez dizer tal coisa. Que foi uma mentira feita para salvar a pele. Mas tal disfarce não funcionaria com O’Brien. “Algo morrera dentro dele: queimado, cauterizado” (291) E, no último encontro com Julia:

“- Só queremos saber de nós próprios – repetiu ele.
- Depois disso, jamais sentimos o mesmo por essa outra pessoa.
- Não – disse ele, já não sentimos o mesmo
” (293)

Vence o egoísmo? Será a afirmação final de Winston: “Amava o grande irmão” (298), uma farsa? Ou será antes a prova de que Winston foi finalmente vencido? Como interpretar as “duas lágrimas” que Winston verte antes de afirmar o seu amor ao grande irmão? São a prova do amor? Ou o sentimento derivado da consciência de que perdeu a sua luta? Dado que no final Winston, num “sonho feliz”, vê a desejada bala penetrar-lhe o cérebro mas em vez de ódio o que vemos é amor ao grande irmão, a minha leitura é de que os bons perderam. Mas as conclusões a retirar ficam a cargo de cada leitor que deverá ler as últimas páginas do livro com redobrada atenção.


Luis Filipe Bettencourt (Maio de 2008)

O culto de Che, por Paul Berman

"O culto de Che Guevara é algo digno de nota na frieza moral do nosso tempo. Che foi um totalitário. Não conseguiu nada mais do que o desastre. Muitos dos primeiros lideres da revolução Cubana favoreciam uma direcção democrática ou social democrática para a nova Cuba. Mas Che era um defensor da facção dura pro-soviética e a sua facção ganhou. Che presidiu aos primeiros esquadrões da morte da revolução Cubana. Ele fundou o sistema dos "campos de trabalho" em Cuba - o mesmo sistema que, por fim, serviu para encarcerar homossexuais, dissidentes e vítimas do SIDA. Conseguir matar-se e matar muitas outras pessoas era algo central na imaginação de Che. No famoso ensaio onde apelou para "dois, três, muitos Vietnames", também falou de martírio e conseguiu escrever uma série de frases arrepiantes: "O ódio como um elemento de luta; ódio inquebrável pelo inimigo que transporta um ser humano para lá das suas limitações naturais tornando-o numa máquina de espalhar a morte que seja efectiva, violenta, selectiva e de sangue frio. É nisto que os nossos soldados se devem tornar..." - e por aí adiante. Che foi morto na Bolívia em 1967, liderando um movimento de guerrilha que não conseguiu recrutar um único camponês boliviano. Mesmo assim conseguiu inspirar dezenas de milhar de latino-americanos de classe média a sair das universidades e a organizar movimentos de guerrilha insurgentes. Estas insurgências também não conduziram a nada, a não ser à morte de dezenas de milhar de pessoas e ao atraso da causa democrática na américa latina - uma tragédia em grande escala.

O presente culto de Che - as t-shirts, os bares, os posters - conseguiu obscurecer essa terrível realidade. (...) Che foi um inimigo da liberdade e, mesmo assim, foi erigido como um símbolo da liberdade. Ajudou a estabelecer, em Cuba, um sistema social injusto e foi erigido como um símbolo de justiça social. Defendeu a antiga rigidez do pensamento latino-americano, numa versão marxista-leninista, e tem sido celebrado como um livre-pensador e como um rebelde. (...)

Berman, Paul, The Cult of Che Don't applaud The Motorcycle Diaries, (2004) in http://www.slate.com/ (tr. de LFB, Junho de 2008)


PS: Este obscuro culto a Che nas palavras de Hugo Chavés é assim: "Che viveu como Cristo e morreu como Cristo".

Tudo muito recentemente numa entrevista (rtp1) onde discursos inacreditáveis e algumas falsidades foram proferidas perante a passividade do entrevistador Mário Soares (um 'espiritualista laico', nas palavras do próprio).


(LFB)

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Dicionário do absurdo fascinante

Determinados - como se poderá comprovar também pelo seu website - no combate às teorias absurdas que abundam nas academias, escreveram um dicionário cheio de ironia e com referências cruzadas que, divertindo, dá que pensar.
Eis algumas entradas:

Illness
Aquilo que os homens fazem às mulheres, o Ocidente a todos os outros, os invasores aos povos indígenas, os gatos aos ratos, o capitalismo a todos nós, comedores de carne... oh, já apanhaste a ideia. Veja-se Medicina.

Knowing

Algo em que as mulheres são especialistas.

Knowledge

Uma convenção humana sujeita à moda e, tal como as roupas, os sapatos e os cortes de cabelo, a tornar-se antiquada.

Medicine
Má quando ocidental, boa quando oriental ou alternativa. (...) Na sua forma ocidental, a medicina é uma disciplina objectificante e opressiva concebida para manter a ilusão de que as maleitas, a doença e a morte são coisas más às quais se deve resistir. Claro que isto é uma absurdo ...

Story

Aquilo que todas as coisas são, de facto, quando as aprofundas. A ciência, a história, a religião, a matemática, a engenharia - é tudo uma estória.

(tr. LFB)

domingo, 6 de janeiro de 2008

Bonobos e o puritanismo americano

...
"Descobri que protestar acerca dos "Americanos" não é um passatempo europeu muito simpático, mas é impossível discutir os bonobos sem dizer alguma coisa sobre o puritanismo. Embora eu tenho vivido nos EUA durante duas décadas e tenha uma carinho genuíno pelo país e pelas suas gentes, nunca me acostumarei à relação entre o sexo e o pecado. A culpa e o sofrimento - já para não mencionar a hipocrisia - que essa associação cria ultrapassam-me. De bom grado evitaria este tópico se não fosse pela questão que persistentemente surge quando as pessoas ouvem pela primeira vez falar de bonobos - nomeadamente, porque é que esta espécie não é mais amplamente conhecida. A resposta está, em parte, no facto de eles nos recordarem um aspecto de nós próprios que tentamos controlar a toda a força. Em vez de serem trabalhadores e castos os bonobos levam vidas promíscuas e hedonistas. Se eles são os nossos parentes mais próximos, o melhor é mantê-los afastados!
Ora, eu conheço muitos americanos que têm uma mente aberta no que a questões sexuais diz respeito mas, infelismente, a sua sociedade não é aberta. Chamo a isto a primeira lei do Puritanismo: o todo é mais puritano do que as partes. (...) A segunda lei é que a repressão sexual é mais difícil de ver do lado de dentro do que do lado de fora. Os americanos estão habituados a viver num país onde as casas de banho se chamam «restrooms», onde nem mesmo os ginecologistas observam os seus pacientes nus, onde se pode ser presa por amamentar em público, onde as «pinups» aparecem em fatos de banho e onde os comediantes chocam as audiências, provocando risos convulsivos, mencionando apenas o nome de uma parte tabu do corpo. Eles não se dão conta o quanto tudo isto parece estranho quando visto do exteri0r. Uma excepção possível está nos americanos que viajaram para o estrangeiro e que poderão ter visitado uma casa de banho Japonesa onde é obrigatório retirar toda a roupa mesmo na presença do sexo oposto. P0dem ter visto a prostituição livre e aberta em Amesterdão e Hamburgo ou ter encontrado pessoas que, no que toca à vida sexual dos seus lideres, simplesmente encolhem os seus ombros."
(Waal, The Ape and the Shushi Master, Basic books, 2001, p.134-135 tr. de LFB)

The Ape and the Sushi Master, de Frans de Waal

Um livro que revoluciona a forma como os seres humanos se pensam a si próprios e o modo como vêm a sua relação com os outros animais.

O livro está organizado em três grandes secções: uma dedicada ao modo como os seres humanos vêem os outros animais. Outra parte é sobre a questão de saber se a cultura existe na natureza ou se é apenas pertença dos seres humanos. Será a cultura aquilo que permite separá-los das restantes espécies? Não, é a resposta de Waal. Inúmeros exemplos de cultura não-humana são discutidos, desde os macacos da ilha de Koshima no Japão que lavam/salgam as batatas doces na praia passando pelos chimpanzés que aprendem entre si a quebrar sementes de palmeira, até aos pássaros (blue tit) que aprendem entre si a abrir o selo de alumínio das antigas garrafas de leite para beberem a nata. A definição de cultura usada é a seguinte: cultura é todo "o conhecimento e os hábitos adquiridos de outros " (p.6).

Uma terceira parte do livro é reservada para a discussão da natureza humana e, em particular a questão do altruísmo vs egoísmo.
Tentarei, futuramente, dar mais informações sobre o livro.
(LFB)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

O Condomínio da Terra de Paulo Magalhães

Este livro, escrito por um ambientalista com formação em Direito, pretende contribuir com uma solução para a crise ambiental que afecta todo o planeta. O livro tem duas orientações: uma filosófica e outra jurídica. Considerarei, sobretudo, alguns aspectos filosóficos. A substância filosófica, que serveria de fundamento às novidades que o livro apresenta, é muito discutível.

A assumpção, por parte do autor, de uma posição realista em relação ao problema da natureza da realidade (uma questão metafísica com amplas conexões epistemológicas) é um ponto fundamental na construção de toda a ideia de um condomínio Terra. É desse pressuposto que depende a premissa de que a “Biosfera é a Realidade em si”. O autor não concebe a hipótese filosófica contrária de que o mundo pode ser apenas uma ideia, ou um sonho, ou apenas uma realidade virtual (o que não quer dizer que o seja, mas as meras possibilidades sempre fizeram pensar os filósofos). Sendo que é o próprio autor que se coloca no domínio filosófico (o que não é de todo necessário para se apresentarem soluções jurídicas para problemas ambientais), seria então de esperar que ele discutisse e rebatesse algumas dos argumentos que se discutem actualmente sobre a questão da natureza da realidade. Mas tal não acontece.

O problema fundamental é o de saber se todo o conhecimento é sempre conhecimento para nós, conhecimento sempre limitado pelas nossas capacidades cognitivas e sensoriais ou se, pelo contrário, será possível conhecer a realidade em si, separada do conhecimento humano e à qual seja possível aceder de um modo que vá além da mera intuição/ crença/ fé na existência desse mundo real independente da minha percepção dele. A grande dificuldade está em demonstrar a existência do Real de uma forma que não seja dependente de um conhecimento para nós.

Em relação a este problema, o autor defende que a biosfera não deve ser entendida como uma "organização ou concepção humana". Um exemplo:

"Hoje sabemos que a natureza pensada conhece um milhão e oitocentas mil espécies, e a natureza em si, estima-se em 8 milhões." (p.17, o itálico e o negrito estão no livro, tal e qual.)

No entanto, a palavra a negrito deveria ser 'estima-se' e não 'realidade em si', precisamente porque uma estimativa não deixa de ser uma acto do nosso conhecimento, aliás uma acto do possível e não do conhecimento. O que, só por si, é muito pouco para estabelecer a existência da 'realidade em si' para lá de qualquer dúvida razoável.

Ainda em relação ao problema da realidade em si, o autor e seus mentores colocam-se numa perspectiva anti-cartesiana para quem, dizem-nos, só o pensado é real. Mas, se é consensual que a posição mecanicista da natureza defendida no séc. XVII é errada, isso não é suficiente para que a existência da 'Realidade em si' fique demonstrada. Muito menos apenas com recurso a afirmações algo contraditórias como a seguinte: "há uma percepção da sua eventual existência", ou como quando, citando Soromenho-Marques, o autor nos diz que devemos "inovar a própria realidade" (p.35). Ora, a percepção é um acto cognitivo e, assim sendo, não estamos a falar do real em si, mas sim do real para nós. A questão é a de saber se esse real em si não nos escapará sempre dadas as nossas limitações cognitivas. E “inovar a realidade” é bonito, mas o que significa no contexto da discussão filosófica? São distinções elementares, mas que parecem escapar a Paulo Magalhães.

As leis da natureza são aqui apresentadas como se fossem imutáveis e como se fossem a demonstração de que a realidade em si existe separada do sujeito. Quando o que os filósofos das ciências afirmam é que as leis da natureza são uma construção da mente humana sujeita a revisões e a falsificações como qualquer enunciado universal.

Que existe um mundo lá fora ninguém duvida (à excepção, claro, de alguns filósofos). A questão filosófica central não é a de saber se os golfinhos comunicavam, ou não, antes de nós sabermos isso. É claro que comunicavam. Como o autor afirma:

"os golfinhos não estiveram à espera que o homem começasse a decifrar a a sua linguagem para comunicarem entre si" (p.23).

A questão é que não há forma de o sabermos antes de o sabermos! Por outras palavras, o dilema clássico é: 'como é que eu sei que o meu quarto continua a existir quando eu lá não estou?' Ou, em termos ambientais: como é que eu sei que sou responsável pela crise ambiental antes das evidências científicas me mostrarem que eu o sou?

Paulo Magalhães pode falar do "saber que a natureza sempre soube"; da Biosfera ter sido "desde sempre globalizada e independente" (p.23); do Direito como aquele que, na criação da ideia de condomínio, "negociou com o real" (p.84) mas isso, filosoficamente falando, não são mais do que metáforas bem intencionadas. A confusão conceptual aqui presente é a não distinção entre o "sabe que existe" e o "existe separado de".

Em termos éticos, o autor coloca o ser humano num domínio perfeito e ideal onde o homem respeitaria o ambiente - o que, para quem se diz tão seguro da realidade, não deixa de ser irónico - , esquecendo que no século XX o homem destruiu toda a noção razoável de humanidade e esquecendo que se um homem não consegue respeitar outro homem, então como respeitará noções tão abstractas como a Bioesfera ou o Ambiente. Antes de destruir o ambiente o homem já se tinha destruído como homem ético. E esta destruição está tão próxima de nós que é ainda quase possível sentir, por toda a Europa, o odor de tal destruição. Em querendo colocar-se no plano filosófico da natureza humana, talvez seja condição necessária começar por reconstruir, se isso for sequer concebível ainda, a estrutura ética do humano.

Nada disto impede impede o autor de exigir o ideal de:

"uma nova consciência do estar 'em relacionamento', na sua dimensão jurídica, que se alarga para além das relações intra-espécie". (p.24)

Mas estes são pormenores filosóficos que, dirão alguns, em nada ajudam a salvar a Terra.

Vejamos então algumas das ideias inovadores que o livro apresenta pra concretizar tão almejado objectivo. O problema a partir do qual o autor constrói a sua solução é o de saber como incluir as leis da natureza nos sistemas jurídicos que regem a vida política das pessoas (veja-se p. 66 e seguintes), uma vez que o aquecimento global veio acabar em definitivo "com as fronteiras tradicionais da soberania dos estados" (p.68). A resposta está na inclusão das leis da natureza no direito natural de onde brota "o sistema jurídico da sociosfera".

A ideia inovadora é a de que assim como um indivíduo livre e soberano que viva num prédio tem de limitar a sua liberdade e a sua propriedade obedecendo às imposições ditadas pelo administrador do condomínio (terá de pagar uma montante fixado para manutenção dos espaços comuns, participar em reuniões, contribuir com dinheiro para obras de beneficiação, etc.), também o Estado livre e soberano deverá limitar a sua soberania por forma a melhorar o condomínio que é o planeta Terra (sendo os espaços comuns a Atmosfera e a Hidrosfera e, com menos garantias, a Biodiversidade). Defende-se que o modelo de privatização dos recursos ambientais pós Kioto tem algo de errado precisamente porque não se pode dividir aquilo que é uno e interdependente – a Biosfera. De nada servirá sermos poucos poluidores quando os nossos vizinhos o são em demasia, e são-no legalmente porque compraram direitos de poluição. O problema não está tanto na solução encontrada, mas sim no facto de as verbas provenientes do “uso privado de um recurso público não serem directamente empregues no melhoramento das partes comuns” (pp.124-125).


A ideia é interessante mas fica a seguinte dúvida. Como é que as verbas resultantes da necessidade de conservar o condomínio poderiam diminuir significativamente os problemas ambientais que afectam o planeta? Até que ponto o dinheiro é capaz de resolver o problema do aquecimento global? O problema não parece ser uma questão de verbas - por analogia com os prédios, uma questão de manutenção do edifício, ou de beneficiação – mas sim uma questão de formas de vida resultantes da industrialização e da depêndencia irrecuperável dos seres humanos da tecnologia. E dessas formas de vida geradoras de conforto e prazer ninguém parece estar genuinamente interessado em abdicar. Se for uma questão de verbas, como este livro sugere, isso arranja-se, mais cedo ou mais tarde. Se não for, então esta solução terá até o efeito indesejado de criar a ilusão de que, afinal, o problema está a ser resolvido pela “Assembleia de Condóminos”.

(LFB)

Sabedoria

...
"Era a arte que tocava a natureza humana, em todos os seus lados. Tocar um lado somente, o lado político, limita. Seja ele qual for, da esquerda ou da direita. Limita." (...)

" Não há nada que não exista antes. Não há, por exemplo, nenhuma forma, nenhum desenho, por mais estranho que seja, que não exista na natureza. Toda a criação é uma recriação. É o conhecimento do conhecimento que se vai tendo e ainda do que estará na bolsa do subconsciente." (...)

"... foi a partir da máquina a vapor que se criou o capitalismo industrial; e foi o capitalismo industrial que criou a classe operária; e foi a classe operária que criou Marx; e foi através de Marx que se criou o comunismo na Rússia; e foi o comunismo que provocou a formação do fascismo, defendendo-se do comunismo."(...)

"Quem tem um livro nunca está só. Quando se está a ler, está-se a comunicar com alguém. E, além disso, é íntimo. No livro são permitidas todas as intimidades e todas as coisas públicas. Porque é um confidente. Confessa-se qualquer coisa de inconfessável. O cinema é mais público. Privado seria interdito." (...)

"Todas as idades servem para morrer." (...)


Manoel de Oliveira, entrevista ao jornal Expresso, revista Actual, de 8 de Dezembro de 2007.

sábado, 15 de dezembro de 2007

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Não queres ser meu assessor de imprensa?

Acordo com a notícia de que os assessores de imprensa (é mais do que um) de Carlos César ganham milhares de euros (quase quatro mil, ordenado base, claro). Um deles é um ex. director de informação da RTP Açores. Nas entrelinhas percebo também que cada secretário tem o seu assessor de imprensa. Terei percebido bem?
Para que precisa uma região ultra-periférica com pouco mais de 200 mil habitantes de vários assessores e de tão bem pagos? O que faz um assessor de imprensa? Transforma (esconde) más notícias em boas notícias? Será que existe assim tanta coisa para esconder? Ou será que faz pouco ou nada e esses postos são apenas uma forma de favorecimento descarado?
Revoltado (já tenho o dia estragado), pesquiso na internet tentando encontrar, nos sites do governo, alguma informação sobre quantos assessores existem e o que fazem. Mas nada. Os sites do governo simplesmente não abrem, ou não têm informação relevante. Estão os governantes e seus assessores, ao que parece, em Washington.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Uma data para recordar


este texto de Paul Berman (2004).

"Um amigo, deitando-se sobre o balcão, disse "afirmas que a guerra no Iraque é uma guerra antifascista. Até dizes que é uma guerra de esquerda; uma guerra de libertação. No entanto, na esquerda, poucas pessoas concordam contigo."

"Não é verdade!", disse eu. "Aparte de X, Y, Z cujos nomes ligados com a esquerda conheces bem. O que pensas de Adam Michnik da Polónia? E Vaclav Havel não conta? (...)"

Ele persistiu. "A maioria das pessoas não concorda contigo. Porque será?"

Por que é que as pessoas de esquerda não pensam como eu? Exceptuando aqueles que pensam como eu? Dou-te várias razões:

Porque Bush é um político repulsivo e as pessoas estão cegas pela repulsão que sentem (...). "[se fosse, Clinton, seria diferente? Hoje é um benfeitor... digo eu]."

Porque muitos outras pessoas inteligentes decidiram, a priori, que todos os grandes problemas políticos vêem da América. Uma atitude que há sessenta anos atrás os teria impedido de compreender o fascismo europeu. (...)

Porque muitos, na sua bondade respeitosa para com as diferenças culturais, concluíram que os Árabes, por razões imprescrutáveis que só a eles dizem respeito, gostam de viver sob didaturas grotescas e não são capazes de mais nada...[uma espécie de racismo para com os Árabes, digo eu e ele]. A antiga esquerda costumava pensar que todos, e em todo o mundo, quereriam um dia viver de acordo com os mesmos valores fundamentais e deveriam se ajudados a conseguí-lo. Hoje, num espírito de tolerância igualitária afirmam: Democracia social para a Suécia. Tirania para os Árabes... É isto uma atitude de esquerda? A esquerda, a verdadeira, costumava ser a campeã das populações minoritáriascomo os Kurdos. Mas já não o é.

Porque muita gente acredita honestamente que os problemas de Israel com a Palestina representam mais do que uma disputa miserável sobre fronteiras e reconhecimento mútuo. Que os problemas de Israel são algo maior, um aspecto diabólico único do zionismo que explica o ódio e a humilhação sentida pelos muçulmanos de Marrocos à Indonésia. Na realidade muita gente sucumbiu perante fantasias anti-Semitas.... Muito se diz sobre os pecados de Israel, e muito pouco sobre os movimentos de influência fascista que causaram milhares e até milhões de mortes noutras partes do mundo muçulmano...Porque muita gente é cega perante o anti-Semitismo noutras culturas...Se abrissem os olhos poderiam ver que o partido Baath (um movimento fundado sob influência nazi em 1943 ) e os movimentos islâmicos são muito parecidos com os movimentos clássicos fascistas. Isto acaba por ser o legado fascista e totalitário que a Europa transmitiu ao mundo Muçulmano moderno.


Disse ele "E então As nações Unidas e a lei internacional não significam nada...?


Respondi, seria melhor combater o antifascismo com a aprovação da Onu. (...) Apoiar a guerra em nome do antifascismo, ou recusar a guerra em nome da lei internacional. Anti-fascismo sem a lei internacional; ou a lei internacional sem antifascismo. Uma escolha miserável, sem dúvida...

Ele disse, "Eu sou pela lei internacional e penso que traíste a esquerda. Um neocon!"

Eu disse, "Eu sou pelo derrube de tiranos, e desde quando é que derrubar o fascismo se tornou traição?".

"Mas não é Bush uma espécie de fascista?", disse ele.

"Não fazes ideia do que é fascismo." Disse eu. "Sempre pensei que a denúncia e o combate da extrema opressão eram as características principais de um coração de esquerda." Confundir sepulturas em massa, e uma população esmagada por trinta e cinco anos de Baath, com a corrupção e os favorecimentos de Bush é ridículo."(...)

Contudo, nada disto fez sentido para ele, e nada mais houve a fazer senão acenar com as nossas respectivas bebidas.

Berman, Paul, Dissent Magazine (Winter, 2004).

(Tradução livre LFB)

sábado, 14 de julho de 2007

SEBALD, Austerlitz. De que fala este livro?

O livro de Sebald constituiu uma visão não mostrada da Shoah escrita por um autor alemão, ainda que tendo vivido os últimos trinta anos da sua vida no Reino Unido. Estarmos perante um alemão talvez não seja despiciendo em relação ao facto de a obra em análise falar da Shoah sem nunca a mencionar de forma aberta. Sebald não consegue falar directamente desse horror – na realidade julga ser impossível escrever sobre os campos de concentração – o que coloca os seus livros num campo de ambiguidade criticável; de algum modo o assunto dos seus livros é sempre o “lager” do qual ele nunca fala directamente. Alguns críticos mais ferozes dizem que o autor se limita a fazer rendilhados em torno de um tema demasiado sério para isso. Uma das formas que encontrei para dar conta dessa ambiguidade foi destacar no livro certas passagens que, se retiradas do seu contexto, parecem estar a falar, ou a descrever, aspectos do “lager” quando na realidade não estão, mas afinal estão! Aparte a riqueza literária da ambiguidade, o jogo parece também transportar o fantasma do relativismo dos acontecimentos em causa. Se é possível encontrar certas passagens no livro que literalmente descrevem o “lager” mas que no contexto do livro se aplicam a outros fenómenos, não poderemos nós concluir pela importância relativa desses acontecimentos?
Por exemplo:

“… rodopio encrespado de vapor que foi recobrindo gradualmente todo o chão de pedra, tornando-se cada vez mais denso e crescendo de forma visível até que apenas metade de nós próprios emergimos dele e em breve poderia até cortar-nos a respiração.” (p.136, Modern Library, p.128 edição portuguesa)
[1]

Esta passagem poderia ser lida como uma descrição do que se passou nas câmaras de gás quando as pequenas bolinhas verdes eram lançadas pelos alemães através de buracos existentes nos telhados e caíam no chão onde estavam as vítimas indefesas, mas, na realidade, trata-se da descrição da chegada de uma neblina.

Outra passagem:

“… um campo, de cor verde-veneno, mais atrás um complexo petroquímico já meio devorado pela ferrugem, de cujas torres e chaminés saem nuvens de fumo branco, como deve ter acontecido sem cessar e há muitos anos.” (186, 174)

Ou ainda o sonho no qual Austerlitz vê:

“… altas chaminés encimadas por penachos imóveis de fumo branco recortadas contra as cores doentias que raiavam o céu ocidental.” (203, 189)

Talvez até por causa do nevoeiro em que o tema está envolto, as primeiras imagens do livro nos forneçam algumas pistas acerca do labirinto para onde somos lançados ao iniciar a leitura. Falando na primeira pessoa, o narrador recorda uma das suas viagens a Antuérpia e o modo como uma dor de cabeça e pensamentos inquietantes o fizeram refugiar-se no zoo da cidade tendo, por fim, visitado o Nocturama (um parte do jardim ocupada por animais para quem o dia é noite e a noite é dia). Este conceito, por si só, com as suas ligações à escuridão, à ilusão, ao espectáculo que é viver e ver, bastaria para introduzir alguns dos temas a destacar. Mas paremos nas quatro primeiras imagens. Que estatuto têm as imagens (fotografias, desenhos, plantas, fotogramas) nos livros de Sebald? Serão apenas ilustrações? Muitas sê-lo-ão. Mas outras, como as quatro primeiras, parecem funcionar como um elemento textual – a imagem como texto, como narrativa não separada do texto, como não simplesmente ilustrativa – que permite libertar no leitor, em forma de sortilégio, outras ligações, significados, memórias, conhecimentos, interrogações, etc, que de outro modo não aconteceriam. Essas primeiras imagens, suscitadas pelo nocturama, fazem emergir a dificuldade de falar de certos temas precisamente porque eles estão presos no passado mas, simultaneamente, e ligando com os olhos grandes dos animais nocturnos devemos, para descobrir quem somos, perscrutar esse passado escuro:

“… olhos excepcionalmente grandes e esse olhar fixo, inquiridor que se encontra em determinados pintores e filósofos que, com recurso apenas à pura observação e ao puro pensamento, procuram penetrar as trevas que nos cercam .” (p.4-5, 6-7)
Repare-se como a semelhança entre os dois pares de olhos dos humanos (Wittgenstein – os olhos deste filósofo servem-me também para recordar a frase que tudo tem a ver com o conteúdo deste livro: “acerca daquilo que não se pode falar, tem que se ficar em silêncio") e os dois pares de olhos dos animais só é dada através do nosso olhar sobre as fotografias dos olhos deles e como a força e a riqueza da analogia acontece quando essa visão se liga com a sugestão de “penetrar as trevas que nos cercam”.
O tema é, pois, o humano do pós-holocausto que, como os viajantes involuntários dos comboios da Europa nazi – veja-se como o narrador chega de comboio à estação de Antuérpia e é “tomado de um mal-estar” – não sabe onde está, quem é ou para onde vai.



[1] A edição portuguesa serviu de texto comparativo para as traduções aqui apresentadas, embora contenha alguns erros de tradução e uma revisão apressada. É o caso da expressão alemã “das arsanische grauen” que parece ser uma invenção do autor e que, em inglês, aparece como “arsanical horror” (p. 63) enquanto em português surge, erradamente, como “terror de Ars” (sic, p.60) o que remeteria para a região de Ars e, hipoteticamente para o cura de Ars constituindo uma leitura demasiado forçada da expressão “arsanische” que parece ter uma mais evidente ligação com o termo “arsénico” e não com o termo “Ars”. Para além disso, as imagens são de má qualidade comparativamente com a edição inglesa e surgem muitas vezes demasiado afastadas da página em que o autor as sugere ou descreve.


(LFB)

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Psicofisiologia

Paixões = estados emocionais patológicos/doentios; de intensidade exagerada; pouco adaptativos.

D.O.

sábado, 2 de junho de 2007

O futuro de uma ilusão


Vinte e sete anos após a publicação de A Interpretação dos Sonhos – obra, considerada por muitos como uma das mais influentes do século XX – Freud propõe algo não menos prodigioso: uma visão sobre o passado, presente e futuro da civilização.
E não o faz sem antes alertar para os perigos que todo o homem enfrenta perante tal empreendimento: a perigosa influência nas suas posições das suas expectativas, experiências
de vida e temperamento, bem como a dificuldade de se distanciar do presente em que está inevitavelmente imerso de modo a delinear de forma mais objectiva os seus argumentos.

Começa então por definir civilização como “tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima da sua condição animal e difere da vida dos [restantes] animais”, i.e., as conquistas do homem sobre a natureza no sentido de controlá-la extrair dela riqueza e ainda as normas que foi construindo de modo a “regular” as relações humanas, especialmente no que toca à distribuição da riqueza disponível. Apesar de considerar grandiosas as conquistas humanas sobre a natureza, Freud revela-se mais pessimista no que concerne aos assuntos humanos: defende que, devido ao predomínio das disposições instintivas sobre o intelecto, todo o indivíduo é virtualmente um inimigo da civilização pelo que esta apenas se mantém com base na coerção. Isto conduz inevitavelmente a estados de privação e de insatisfação, sobretudo das massas (mais oprimidas).

Mas como poderá a civilização compensá-las por tal sofrimento? Através dos ideais, da arte e da religião. Os primeiros porque permitem uma espécie de satisfação narcísica quando o indivíduo compara a sua cultura (que considera superior) às demais. A arte, embora acessível apenas às minorias, por proporcionar a sublimação dos impulsos e consolidar sentimentos de identificação com a cultura. E a religião, que considerada pelo autor como “o mais importante [e valorizado] inventário psíquico de uma civilização”, constitui-se como o principal foco da presente obra. É no confronto com um opositor (personagem que cria de modo a proporcionar uma acesa discussão) que Freud se compromete a responder, entre outras, à pergunta Qual o valor das Ideias Religiosas? Dedica-se primeiramente à explicação da origem de Deus com base na interacção entre as necessidades/desejos da civilização – humanização da natureza, atribuindo-lhe um sistema de significações humanas para melhor poder compreendê-la e “influenciá-la”; fazer face ao destino cruel de privações e sobretudo à angústia da inevitável morte e ainda “vigiar os preceitos da civilização” – e necessidades/desejos de natureza mais individual – transferir conflitos da infância (ligados ao complexo edipiano) para a vida adulta com uma solução universalmente aceite: a figura paterna, protectora, amada e temida revela-se na figura do Pai, cuja força imensa é temida, mas que protege contra os perigos do mundo.

Embora apresentadas ao indivíduo como revelações transmitidas por Deus ao longo das gerações (ignorando qualquer aspecto histórico da sua evolução), para Freud o seu “valor civilizacional real” não deriva da sua santidade, mas sim do seu papel enquanto importantes vias para a coerção dos instintos primordiais (ex: incesto, assassínio), formando, portanto, um importante sistema de “regras-veículo” da civilização. O nível moral dos seus membros corresponde ao ponto até ao qual as regras são interiorizadas. Contudo, Freud define-as como ilusões, uma vez que não sendo produto de raciocínio sistemático e/ou de verificação empírica, resultam – exclusivamente - dos mais antigos e prementes desejos da humanidade, advindo daí a sua força. Argumenta que, apesar da impossibilidade de serem refutadas ou confirmadas, são talvez os predicados civilizacionais mais decisivos na definição da relação humana com o mundo e ao mesmo tempo mais contraditórios e menos comprovados, não tendo qualquer fundamento racional e que, portanto, se não forem comparáveis a delírios, representam para a civilização pelo menos um “problema psicológico grave”.

E qual a solução para o problema? Dado a essência proibitiva da doutrina religiosa, reprimindo os instintos, mas ao mesmo tempo impedindo que dúvidas se levantem acerca dos seus axiomas, a educação religiosa precoce (dominante na época), conduzirá segundo o autor, a um futuro intelecto débil, uma vez que as ideias são transmitidas numa idade em que a criança não é capaz de reflectir adequadamente acerca do que lhe é apresentado. Não obstante admitir a possibilidade de estar ele próprio a perseguir uma ilusão ( “talvez o efeito da proibição religiosa no pensamento não seja tão grave, talvez a natureza humana pudesse ter evoluído no memos sentido”), Freud propõe uma educação não religiosa (principal objectivo da obra). É verdade: o individuo terá de enfrentar uma situação difícil, terá de admitir para si todo o seu angustiante desamparo, mas o “homem não pode ser criança para sempre” terá de fazer melhor uso dos seus recursos – sobretudo dos intelectuais, terá de “chamar à terra” todos os pressupostos civilizacionais e despojá-los de toda a santidade; mas não estará completamente desamparado: a Ciência, com base no intelecto humano e na experiência, pode conseguir um certo conhecimento da realidade que por sua vez conferirá ao homem maior poder na organização da sua vida.

Apesar do imenso número de questões por responder, dos problemas (epistemológicos, metodológicos…) que possam surgir, as suas numerosas conquistas não são uma ilusão. Para Freud, a ciência afigura-se portanto como o caminho no qual a civilização poderá alcançar o “estado psicológico ideal”: a primazia do intelecto sobre os instintos.


D.O.

quinta-feira, 17 de maio de 2007

A esquerda e a América

Bernard -Henri lévi (BHL), mimetizando a viajem que Alexis de Tocqueville fez em 1831/32 e que deu origem ao livro A democracia na América, fez aquilo que qualquer homem político deveria fazer: viajou pela América, observou, falou com os americanos e escreveu sobre a experiência. O resultado é o livro American Vertigo (que eu não li, baseio este texto apenas na entrevista que BHL deu ao Ípsilon de 4 de Maio).
BHL defende que todos os clichés que a esquerda europeia exibe à boca cheia sobre a América são falsos, ou então que as coisas são muitos mais complexas do que o anti-americanismo nos quer fazer crer. Vindas de um intelectual da esquerda francesa vale a pena reter algumas das suas muito discutíveis ideias:

1) catalogar a América de imperialista é uma ideia a rever (os imperialismo estiveram sempre na Europa, e foi contra eles que a nação americana se revoltou. O peso da tradição imperialista é uma coisa dos países europeus e não da América);

2) a América tem um sistema de saúde e de segurança social que é "uma mistura de público e privado";

3) a segregação racial nos estados do sul é, em grande parte, uma coisa do passado;

4) A América é materialista mas "é provavelmente o país mais religioso do mundo";

5) Guantánamo "é inadmissível (...) mas não é o Gulag", este significou "dezenas de milhões de mortos aquele algumas centenas de prisioneiros sem direitos, em alguns casos torturados";

6) a democracia liberal é boa para todos e é preciso derrubar os ditadores, o que faltou à América no Iraque foi "um consenso Internacional, aliados no terreno e um plano de reconstrução";

7) "O anti-americanismo é uma ideia [com origens] na extrema direita" europeia; é uma ideia fascista contra uma nação democrática; é grave que a esquerda actual o queira introduzir nos seus programas políticos porque transporta consigo os perigos do nacionalismo fascista baseado na "raça" e no "sangue";

8) A luta contra o terrorismo islâmico é uma luta política contra o fascismo de origem ideológica europeia e não uma luta religiosa (é simplista pensar que o terrorismo existe porque os terroristas, orientados por gente cheia de dinheiro, passam fome e são dominados pelo imperialismo americano).

(LFB)