segunda-feira, 23 de junho de 2008

Três ideias liberais e uma relação contingente entre liberalismo e democracia

O constitucionalismo pressupõe, na sua construção, o liberalismo. Apresento a seguir – arriscando-me a simplificar e a uniformizar demasiado aquilo que, por natureza, é um campo de contestação[1] – uma explicitação sucinta das principais teses que caracterizam as doutrinas liberais[2].

Em primeiro lugar temos a tese do ‘atomismo individual’ (Holmes, 1993, p. xii): a sociedade é constituída por indivíduos autónomos com interesses, desejos e crenças próprios (formados em privado e muitas vezes incompatíveis com os interesses de outros indivíduos), e esses mesmos indivíduos são os únicos com direito de se prenunciar sobre os seus interesses e suas implicações. Acredita-se que os indivíduos são racionais, no sentido de poder escolher os meios para realizarem os fins que escolheram; são livres, no sentido de poderem escolher a sua própria concepção do bem; e são responsáveis pelas suas acções, no sentido de por elas responderem. Ao conjunto de indivíduos com interesses, desejos e crenças muito diversificados pode atribuir-se a designação de sociedade plural. Esta tese é, como veremos, negada, ou alterada, pela democracia deliberativa.

A 2ª tese liberal é expressa pela ideia do indivíduo anteceder a formação do social e do político; antes de mais somos indivíduos concretos e definidos, só por contingência vivemos em sociedade e participamos na tomada de decisões políticas. A política justifica-se pela necessidade de regular, por exemplo através de um conjunto de regras norteadas por uma constituição, os conflitos de interesses que possam existir dentro da sociedade plural. Para impedir que um indivíduo, ou grupo de indivíduos, tiranize os outros através da imposição da sua concepção de bem, é necessário estabelecer: (i) um conjunto de direitos que protegem os indivíduos do estado e dos outros cidadãos; (ii) um conjunto de obrigações relativas ao respeito por esses direitos; e (iii) um conjunto de deveres para com o governo que é a garantia daqueles direitos (Dryzek, 2002, p.9). Esta tese em conjunção com a primeira, pode ser usada para explicar a distância e o desinteresse político dos indivíduos nas democracias ocidentais. A constatação deste facto, pode justificar a exigência – por parte da democracia deliberativa - de uma empenhada participação política. Participação esta que seria, de certa forma, negligenciada e potenciada pelo liberalismo.

A 3ª tese liberal estabelece a primazia do direito em relação ao bem. O indivíduo ganha uma protecção de direito em relação a concepção de bem que a comunidade possa ter. Por isso, toda a imposição moral que dessa concepção derive deve ser considerada ilegítima. Em termos políticos os interesses da sociedade com um todo, ou de um grupo de indivíduos, não têm mais valor do que os interesses de um único indivíduo. Anseia-se mais pelo pluralismo político – estabelecer uma ordem política onde as diferenças morais e materiais possam coexistir; do que pelo universalismo – encontrar a verdade acerca do que é o melhor para todos. Outra forma de dizer isto – porventura mais rawlsiana (veja-se Rawls, 1996, pp. 173-176)[3] – é afirmando que se pretende encontrar condições de separação entre a política – encontrar uma concepção política de justiça que se aplique, através da estruturação das principais instituições políticas, apenas à vida política dos indivíduos e que seja aceite por todos independentemente das doutrinas inclusivas que defendam; e a moral – entendida como o conjunto das várias e incompatíveis doutrinas acerca do bem individual. Esta separação não implica que a esfera política seja moralmente neutra, pelo contrário ela inclui ideias morais liberais muito importantes, como a garantia de direitos e liberdades, a separação de poderes, a discussão e avaliação pública de ideias políticas. Quer dizer que a concepção política, embora não sendo uma doutrina inclusiva, é também normativa e tem “um ideal intrínseco” moral baseado naquelas ideias (Rawls, 1996, p.xliv).

Dado que nenhuma destas teses faz referência à democracia como forma de justificação e controlo do poder através de uma escolha popular feita entre cidadãos iguais, podemos facilmente afirmar que o liberalismo não tem que ser democrático e que até se pode dizer que ele surge para proteger a liberdade dos cidadãos de alguns perigos que podem resultar de maiorias democráticas opressivas. (Historicamente o liberalismo nasceu separado da democracia e só no séc. XX se introduziu o conceito de ‘democracia liberal’.)

NOTAS:

[1] Sobre as várias diferenças e discordâncias que existem entre as doutrinas liberais veja-se a Introdução e o 1º capítulo do livro de Stephen Holmes, Passions & Constraint, Chicago U. P., 1995.
[2] Que são diferentes das sociedades liberais, por vezes a não-distinção entre sociedades liberais e doutrinas liberais tem levado ao surgimento de confusões e de críticas incorrectas. Cf. Holmes, 1993, p.xiv-xvi.

[3] Pretendo apenas apresentar três ideias liberais que suportam a democracia constitucional deliberativa liberal. Sendo que a ideia de consenso sobreponível a que recorro é apenas introduzida como um exemplo decorrente da terceira tese liberal. Ainda que eu faça referência a Rawls, não pretendo apresentar a definição da concepção liberal da justiça como equidade, nem explicar a coexistência, nas sociedades democráticas mais ou menos razoáveis, de diferentes concepções liberais acerca da justiça (cf. Rawls, 1996, p.xlviii).

referências bilbiográficas:
HOLMES, Stephen, (1993) The Anatomy of Antiliberalism, Harvard U. P.;
HOLMES, Stephen, (1995) Passions & Constraint, Chicago U. P.;
RAWLS, John, (1996, paperback edition) Political Liberalism, New York, Columbia University Press.

Luis Filipe Bettencourt (2005)

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