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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

The good is the base, the holy is the summit.

There is much that philosophy could learn from the Bible. To the philosopher the idea of the good is the most exalted idea. But to the Bible the idea of the good is penultimate; it cannot exist without the holy. The good is the base, the holy is the summit. Things created in six days He considered good, the seventh day He made holy.
To Jewish piety the ultimate human dichotomy is not of mind and matter but that of the sacred and the profane. We have know profanity too long and have become accustomed to think that the soul is an automaton. The law of the Sabbath tries to direct the body and the mind to the dimension of the holy. It tries to teach us that man stands not only in a relation to nature but in a relation also to the creator of nature.
What is the Sabbath? Spirit in the form of time.
Abraham Joshua Heschel, The Sabbath, FSG Classics, 2005, p.75. 

Para uma mente céptica que sentido faz falar do Sabath como a companheira sagrada e da alma que se relaciona com o criador? 
Todavia, o que realmente importa saber é: depois de tudo destruído pela dúvida racional - admitindo que ela é disso capaz - o que resta? O que fica para nos consolar?

sábado, 6 de outubro de 2012

o sentido do eu


É verão, os problemas ainda estão longe. Entra-se numa livraria e encontra-se o livro de Richard David Precht. O título atrai, diz-nos muito. Mas a capa deixa dúvidas. O original é alemão. O autor, na fotografia da contracapa, parece um actor de novelas. E custa 18 euros. Não...
Volta-se no dia seguinte. Folheia-se. Os temas são conhecidos. A divisão do livro em três partes - seguindo as questões da filosofia kantiana: O que posso saber? O que devo fazer? O que me é permitido esperar? - é muito interessante. E os títulos dos capítulos atraem: "Lucy in the Sky - de onde viemos", ou "Mr. spock ama - o que são os sentimentos". Compra-se o livro. Começa-se a ler e não se consegue parar.

O que é facto é que estamos perante uma excelente introdução à filosofia. Cheia de humor, descontraída, com capítulos (34) que raramente excedem as cinco páginas. Não é apenas uma história da filosofia e das suas ligações com outra ciências. É a busca do conhecimento onde quer que ele esteja e independentemente da super-especialização a que muitos departamentos se submeteram. Cada capítulo introduz o tema falando de um autor e de um lugar, o que acrescenta uma dimensão espacial aos temas (por exemplo, o capítulo sobre a questão de saber se a moral é inata começa em Boston com a experiência do vagão sem condutor do psicólogo Marc Hauser. E não deixa de ser irónico que não tenha sido escrita originalmente em inglês.
A novidade do livro, não são os temas, nem as respostas às perguntas da filosofia. A força do livro está na forma como o autor vai buscar informação relevante a outras áreas do conhecimento  - psicologia, antropologia, neurociência, entre muitas outras - e  a insere na discussão das questões filosóficas. E está também no dom que autor tem de colocar as questões certas (o dom filosófico) e de com elas ir construindo as ligações entre os capítulos. Não admira que nos países onde já foi traduzida esteja a ser um sucesso.
Não fosse a tradução pobre e muitas vezes retirada tal e qual do tradutor do google e seria um excelente manual para qualquer curso  introdutório de filosofia ( a começar pelo ensino secundário). Merecia pois uma tradução mais cuidada. E  a ausência de revisão científica num livro desta natureza é lamentável (por exemplo, livros de referência que existem em tradução portuguesa aparecem apenas em alemão, e outros aparecem em português e alemão).

Leia-se, um exemplo, entre muitos:

"... O eu é uma ilusão? Aquilo que cada pessoa julga ser é apenas um truque de magia enganador no cérebro. Andaram os filósofos durante dois mil anos a enganar-se a si mesmos, ao admitirem como a maior das evidências que existe um eu que se confronta, com maior ou menor sucesso, com coisas do mundo?
...Só nos resta recorrer aos neurocientistas que nos últimos anos se têm envolvido com frequência e veemência na discussão. Estes parecem sentir-se hoje predestinados, mais do que todos os demais, para responder à questão. A resposta de muitos neurocientistas (embora não de todos) à questão se existe um  eu é a seguinte: «Não! Não existe nenhum eu. Ninguém foi ou teve até hoje um eu. Não existe nada que mantenha as pessoas unidas interiormente. David Hume e Ernst Mach tinham inteira razão: o eu é uma ilusão!» 
... O eu não é outra coisa senão um complexo mecanismo electroquímico. É como se uma criança abrisse a sua boneca que fala e no interior, para sua desilusão, encontrasse um pequeno aparelho.
Mas o senso comum tem sorte. Felizmente, um tal centro não existe. Bem longe de ser uma desilusão, como pretendem alguns neurocientistas, trata-se de uma boa notícia. Já o famoso anatomista Rudolf Virchow, no século XIX, se comprazia expulsar o eu do corpo da filosofia, dizendo: «Já dissequei milhares de cadáveres, mas jamais encontrei uma alma.» E aqui pode dizer-se (sem sentido religioso): «Graças a Deus!» Evidentemente, é muito melhor não encontrar uma alma ou um eu do que encontrá-lo, para depois o decompor e desmistificar. E imagine-se o que seria se os cirurgiões cerebrais fossem capazes de remover o eu!
Bom, não existe então um centro onde esteja sediado o eu. Isto também não admira, pois quem - para além de René Descartes, com a sua glândula pineal - acreditou em tal coisa? Nenhum filósofo de nomeada dos últimos duzentos anos afirmou alguma vez que o eu fosse uma substância material no cérebro. A maior parte deles simplesmente não se comprometeu com uma posição precisa. Immanuel kant, por exemplo, fala de forma bastante nebulosa, quando diz que o eu é um «objecto do sentido interno», por oposição ao «objecto do sentido externo», o corpo. Isto deixa muita coisa em aberto, pois como havemos de imaginar tal coisa em concreto?
Em suma, a filosofia deixa a questão do eu sem resposta definida.  A divisa parece ser: sobre o eu não se fala, temo-lo simplesmente. Também não admira que a neurociência não o consiga achar assim tão facilmente. (...)
Mas a neurociência conhece um segundo caminho para resolver a questão do eu: o estudo de pessoas que se afastaram da normalidade, quer dizer, de pacientes com perturbações, cujo eu manifestamente não funciona,funciona apenas parcialmente ou sob condições alteradas. (...) Aquilo que [Oliver]Sacks, há mais de 20 anos, podia apenas descrever, foi desde então estudado intensamente. Numerosos neurocientistas tendem a concluir que não existe um eu mas sim muito estados do eu: o meu eu corporal encarrega-se de me dar  a saber que o corpo, com o qual vivo, é realmente o meu próprio corpo; o meu eu orientador diz-me onde me encontro neste preciso momento; o meu eu perspectivista informa-me de que eu sou o centro do mundo por mim experienciado; o meu eu enquanto sujeito de vivências, diz-me que as minhas percepções sensoriais e os meus sentimentos são, de facto, os meus próprios, e não os de outras pessoas; o meu eu autorial e de controlo faz-me perceber que sou eu o responsável pelos meus pensamentos e pelas minhas acções, o meu eu autobiográfico, olha por que eu não seja excluído do meu próprio filme, mas antes me capte continuamente como um e o mesmo; o meu  eu auto-reflexivo possibilita-me pensar sobre mim próprio e jogar o jogo psicológico do «I» e do «me»; o eu moral, por fim, forma algo como a minha consciência, que me diz o que é bom e o que é mau.
... Os diferentes estados do eu, indicados pelos neurocientistas, são esquemas de divisão pertinentes, mas não nos devemos iludir: trata-se, ao mesmo tempo, de construções cujos contornos nem sempre se apresentam assim tão nítidos. Não provam de forma alguma que de tudo isto não resulta um estado geral ao qual se poderia chamar, seguindo alguns neurocientistas, uma «corrente da percepção do eu» - ou, porque não, pura e simplesmente «eu»?
... A velha ideia segundo a qual a unidade intelectual do Homem é mantida por um supervisor no cérebro não foi ainda refutada. este eu é uma coisa complicada. Por vezes, permite a sua decomposição em diferentes eus, mas, ao mesmo tempo, revela-se como uma realidade sentida que resiste à sua pura e simples superação por parte das ciências naturais. não chega a observação de que nos sentimos como um eu, para constatar que existe eu eu? «Somos indivíduos», escreve o sociólogo Niklas Luhmann, «simplesmente pela pretensão de o ser. Isso basta.» Podia dizer-se a mesma coisa a respeito do eu."
Richard David Precht, Quem sou eu e se sou quantos? Uma viagem filosófica, D. Quixote, 2010 tr. nada cuidada de LC (a edição original é de 2007),  70-77.


sexta-feira, 28 de setembro de 2012

sábado, 26 de novembro de 2011

"Durante os piores momentos da seca da década de oitenta, o meu pai possuía cerca de trinta cabras. A origem do rebanho fora uma cabra com uma pata partida que vira no mercado. Comprara-a para lhe tratar do ferimento, mas, quando a pata ficou curada, achou que devia ter companhia e comprou um bode. Partindo daí, chegou às trinta, e não lhe trouxeram nada mais além de trabalho árduo e mágoa.
O período da seca foi terrível para quem viveu numa quinta. Vacas e ovelhas eram abatidas e enterradas em valas porque não havia nada com que as alimentar. (...) Quando o meu pai ficou sem outra forma de alimentar as cabras, cortou a erva na berma da estrada com uma gadanha (...)
Ocasionalmente, matava uma cabra para comer, mas matava-as sobretudo para alimentar os cães. Tinha muito pouco dinheiro para comprar carne e tanto ele como a mulher viviam das suas pensões de reforma, uma boa parte das quais era usada para pagar as contas dos veterinários. Quando a minha filha Eva soube que por vezes matava as cabras, sentiu-se incomodada. Sendo uma amante dos animais, gostava de visitar o meu pai porque havia quase sempre pintos, patos pequenos ou bezerros. Por vezes, um deles estaria abrigado na cozinha, doente e a precisar de calor. «Como consegue fazê-lo?», perguntou-me. Referia-se à forma como ele, entre todas as pessoas, podia ser capaz de tal acto quando se preocupava tanto com o seu bem-estar. Perguntei-lhe se conhecia ou ouvira falar de alguém que fosse tão bondoso para os animais como o seu avô. Respondeu-me que não.
Não pretendi que esta conversa com Eva respondesse às questões que lhe ocorressem sobre se era ou não justificado matar animais para comer. No entanto, esperei que aprendesse alguma coisas sobre o que significa matá-los. Quis saber como era possível que o avô pudesse preocupar-se tanto com os animais e ao mesmo tempo matá-los, matar os mesmos animais por que trabalhara tanto e pelos quais prejudicara a sua saúde. A sua primeira reacção foi pensar que o facto de matar animais mostrava que se importava menos com eles do que pensara. A pergunta que lhe fiz fê-la perceber que tal não abalava necessariamente a compaixão que sentia por eles.
Instintivamente, Eva soube que não se podia limitar a dizer que, se o meu pai matava animais, então, a sua compaixão por eles não poderia ser genuína. Afinal, de que forma aprenderemos a reconhecer a compaixão e os seus limites se não for através de uma reflexão sobre exemplos concretos? Creio que foi a comunhão do meu pai com o mundo natural, a piedade que sentia pelos males que lhe eram infligidos pelos seres humanos, que fez com que o seu exemplo marcasse Eva. Mas, para que a autoridade do exemplo fosse justificada, a sua compaixão teria de ser complementada por uma compreensão do que significa matar um animal.
Existem pessoas maravilhosas, pessoas cuja compaixão é tão profunda como era a do meu pai, que acham moralmente impossível matar um animal, sendo essa percepção inseparável da consciência do que significa matar um animal para comer. No entanto, o seu exemplo não poderá, em minha opinião, ser aplicável ao meu pai. Não conheci ninguém que apreciasse de igual forma a generosidade com que os animais se entregam a nós e que sentisse maior gratidão pela graça que conferem às nossas vidas. Por vezes, consideramos algo moralmente impossível, mas não pensamos que as pessoas que consideram a mesma coisa possível estejam enganadas ou que possuam morais deficientes. Até mesmo exemplos de autoridade inegável e pura podem atingir-nos de formas diversas. Portanto, acerca deste asunto, qualquer coisas que possa dizer será sempre subjectiva."

(Raimond Gaita, O cão do filósofo, (tr. R.C.) Casa das letras, 2007, pp. 217-218.)


Assim termina este livro sobre a nossa relação com os animais e sobre a forma como atribuímos "sentido" (meaning, no seguimento do Wittgenstein das Investigações Filosóficas) às relações complexas que estabelecemos com pessoas e animais. O autor defende que a moralidade da nossa relação com os animais é secundária em relação ao sentido que construímos no mundo. Sendo que este sentido varia muito com as experiências das pessoas, com as suas emoções e com aquilo que vai no seu coração, com a sua cultura. Por conseguinte, não pode haver uma resposta única à questão de como tratar os animais. Gaita coloca-se, no debate sobre a ética animal, numa posição extravagante, uma vez que é contra a retórica dos direitos que considera uma ilusão. Acredita que as palavras que usamos devem transportar a força da obrigação de uma certa acção, caso contrário, de nada valem. Defende que "quase tudo o que a vida tem de importante ocorre no reino do sentido" (p.115). Parte da nossa compreensão desse sentido é possibilitada pela literatura, por essa forma de usar a linguagem "na sua plenitude" (Gaita cita Cora Diamond, uma autora a que também é preciso dar atenção) onde forma e conteúdo são inseparáveis, mas não é por isso, defende também o autor, que o texto literário deixa de ter valor cognitivo.
Apesar de considerar o livro interessante e as suas ideias valiosas - sobretudo porque parte de uma concepção ética baseada na experiência, fundamentada na linguagem e e na literatura - foi algo penoso lê-lo e isto devido à fraca tradução que, parece-me (não consultei o original), torna muitas passagens do livro dificilmente compreensíveis (como se comprova pelo texto acima transcrito). É um daqueles livros de filosofia que é facilmente estragado por uma má tradução. Começando logo pelo título que em inglês é: The Philosopher's Dog: Friendships with Animals. Em português não aparece a 'amizade', escondendo-se assim  a tónica que o autor coloca na questão das relações para explicar a moralidade. É pena.

A melhor citação que o livro contém é a seguinte, retirada da autobiografia de Pablo Casals:

«Ao longo dos últimos oitenta anos, comecei cada dia da mesma forma. Não se trata de uma rotina mecânica, mas de algo essencial à minha vida quotidiana. Sento-me ao piano e toco dois prelúdios e fugas de Bach. Não consigo conceber não o fazer. É uma espécie de bênção da casa. Mas não é esse o único significado que lhe atribuo. É uma redescoberta de um mundo que tenho tido a felicidade de integrar. Preenche-me com uma percepção da maravilha da vida, com um sentimento de incrível assombro perante a condição humana...
Não houve um único dia na minha vida em que não tenha olhado com espanto renovado para o milagre da natureza» (p.145)

(LFB)

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Os filósofos e o nazismo (4)

"Ainda que não seja mencionado, Johann Gottlieb Fichte era, de facto, o pensador mais próximo de Hitler e do nacional-socialismo, tanto em termos de tom, como em termos de espírito e de brio. Ao contrário de Schopenhauer, homem dado à interioridade e herdeiro da tradição livresca, ou do débil e prostrado Nietzsche, Fichte era impertinente e desafiador. Em 1808, e numa Berlim ocupada pelas tropas francesas, Fichte apelou à sublevação dos Alemães contra a opressão estrangeira nos seus memoráveis Discursos à Nação Alemã. Na véspera da batalha decisiva contra Napoleão, em Leipzig, Fichte apareceu a liderar os seus alunos, armado e pronto a lutar. Consta que era um orador hipnótico, capaz de deixar as audiências "presas" às suas palavras. "À acção! À acção! À acção!", terá ele apelado um dia- "Que é por isso que estamos aqui."
Tal como Fichte, Hitler apelava ao "derrube da elite política" através da sublevação popular. Fichte falava em termos de uma Volkskrieg, ou guerra do povo. E, tal como Fichte, Hitler ambicionava a unificação da dividida nação germânica. Ao pôr em causa o diálogo político próprio da democracia parlamentar e ao apelar ao diálogo directo com o povo germânico, Hitler assumia uma posição próxima da retórica fichtiana e evocava os Discursos à Nação Alemã.
Mais pródigo de consequências, Fichte foi um dos obreiros da ideia da excepcionalidade alemã. Defendia que os Alemães eram únicos entre os povos da Europa. O seu idioma não tinha origem no latim mas sim numa distinta língua teutónica. E os Alemães não só falavam de uma forma distinta dos demais europeus, como pensavam, acreditavam e agiam de modo também distinto. Fichte defendia que só uma língua alemã purificada, não corrompida nem pelo francês nem por quaisquer outros estrangeirismos, poderia dar expressão pela a um pensamento germânico puro. Todos os esforços desenvolvidos pelas diferentes organizações nazis para expurgarem a língua alemã dos elementos que lhe eram estranhos assentavam neste preceito fichtiano, que Hitler consubstanciava sempre que se punha a divagar em torno da palavra Führer. "O título de Führer é de entre todos o mais belo, porque emerge directamente do nosso próprio idioma", chegou a afirmar, fazendo notar com satisfação que apenas a nação alemã se podia expressar em termos de "meu Führer."
Fichte era também decididamente um anti-semita. ele acreditava que os judeus seriam um "Estado dentro do Estado" e, como tal, tinha-os como uma ameaça permanente à unificação alemã. Propunha que a Europa se livrasse dessa ameaça através de um Estado judeu na Palestina. Ou, em alternativa: "Cortando-lhes as cabeças numa noite e colocando-lhes sobre os ombros outras novas, que não deveriam conter uma única ideia judaica."

(Ryback, Timothy, A Biblioteca privada de Hitler - Os livros que moldaram a sua vida, (tr. I.L.S.) Civilização editora, 2011, pp.133-134)

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Os filósofos e o nazismo (3)

"O limite moral dos nazis

(…) Havia também uma versão altamente distorcida da filosofia moral de Kant. Eichmann, durante o interrogatório, afirmou acreditar no “cumprimento do dever”: “ é, de facto, a minha norma. Tomei o imperativo kantiano como a minha norma, e fi-lo há muito tempo atrás. Orientei a minha vida por aquele imperativo, e continuei a fazê-lo nos sermões que dava aos meus filhos quando percebia que eles se estavam a desencaminhar.”…
Kant, que acreditava que as pessoas devem ser tratadas como fins em si mesmas e não como meios, teria ficado chocado com este kantiano. Todavia, há um lado da filosofia moral kantiana ao qual os nazis podiam reclamar uma certa adesão: refiro-me à ênfase colocada na obediência incondicional às regras. De acordo com Kant, as regras morais seriam geradas de forma puramente racional, de uma forma que é independente do seu impacto nas pessoas. E devem ser obedecidas por puro dever, em vez de por simpatia com as pessoas. Agir motivado por um sentimento de simpatia é, para Kant, agir por inclinação em vez de por dever, e por isso agir assim não tem valor moral. Os Nazis produziram uma variante sinistra desta moral austera e fechada sobre si.”
(Glover, J., Humanity - A moral history of the twentieth century, Yale U. P. 2001, p.357, tr. LFB)

quinta-feira, 28 de maio de 2009

O processo

"
... A civilização ocidental é composta de comunidades ligadas entre si por um processo político e pelos direitos e deveres do cidadão, nos termos em que este [estes] é definido por aquele processo. É paradoxal o facto de ser a própria existência deste processo político que nos permite viver sem política. Tendo entregue a tarefa da governação a instâncias definidas, ocupadas sucessivamente por indivíduos que estão ao serviço, e não acima, de quem os elegeu, podemos dedicar-nos ao que nos verdadeiramente importa: os interesses privados, os afectos pessoais e os costumes sociais nos quais encontramos satisfação. Ou seja, a política permite separar a sociedade do estado, retirando assim a política da nossa vida privada. Onde não existe processo político não existe esta separação. Num estado totalitário ou numa ditadura militar tudo é político precisamente porque nada é político. Onde não existe processo político, tudo o que acontece diz directamente respeito a quem está no poder, uma vez que tudo representa para este uma ameaça potencial."

(Scruton, Roger, O ocidente e o Resto, Guerra e Paz, tr. V.F.P., 2006, pp.30-31[infelismente, a tradução e a revisão do livro revelam-se fracas])

domingo, 19 de abril de 2009

Os filósofos e o nazismo (1)


Jonathan Glover, Humanity – A moral History of the Twentieth Century, Yale U.P., 2001
"

O caso Martin Heidegger
Martin Heidegger que descobriu em si próprio a missão de re-acordar as pessoas para a compreensão do Ser, foi o mais famoso filósofo a apoiar os nazis. O seu entusiasmo foi muito mais além do conformismo; as suas aulas e conferências incluíam a saudação nazi. Ele foi contra a influência judaica na vida cultural alemã: em 1929 escreveu, “ou voltamos a encher a nossa vida espiritual com forças e educadores nativos genuínos ou então rendemo-nos de uma vez por todas à Judaicização crescente “(…).
O interesse pelo lado corporal do Ser ia muito mais além de fazer o pino. Quando Karl Jaspers lhe perguntou: “Como pode um homem tão ordinário como Hitler governar a Alemanha?” Heidegger respondeu, “A cultura não tem importância. Olha só para as suas maravilhosas mãos.”
(367-8)
Uma nota sobre Gottlob Frege
(…) [Frege foi outro dos filósofos que acreditou no anti-semitismo.] (…) Frege tinha as coisas na sua mente muito bem separadas. Quando pensava sobre filosofia e lógica, não ligava a convencionalismos. Destruía-os através de argumentos e construía alternativas racionalmente fundamentadas. Quando pensava sobre a sociedade e sobre a política, aceitava de forma acrítica os piores e os mais convencionais preconceitos do seu lugar e do seu tempo.
Existe a esperança de que o hábito filosófico de expor certas afirmações ao pensamento claro e racional torne mais difícil a sobrevivência de preconceitos e de crenças injustificadas. A história de Frege é, para aqueles de nós que têm esta esperança, um desânimo. Ela mostra como mesmo um trabalho soberbo na filosofia pode deixar o resto do pensamento de uma pessoa intocável. A aceitação acrítica de um conjunto de crenças religiosas não impede a obtenção de prémios e distinções na Biologia molecular ou na Química. A Filosofia, feita ao estilo de Frege, torna-se também uma matéria técnica entre outras.
Muita da Filosofia Ocidental recente tem sido dividida em tradição “analítica” que teria começado com Frege, e tradição “continental” que teria começado, pelo menos em parte, com Heidegger (os nomes, de forma absurda, contrastam um método de pensamento com uma localização geográfica). As histórias de Heidegger e de Frege são uma caricatura hostil das duas tradições: uma cheia de retórica intelectual e sonante a condição humana, mas incapaz de colocar criticamente questões ao nazismo; a outra cheia de análise lógica, mas mantida separada de todo e qualquer importância humana.
Os erros de Heidegger têm sido repetidos muitas vezes. Dado o mérito de Frege como filósofo, o seu falhanço frente ao nazismo é mais perturbador. Nenhum filósofo seguiu as suas visões políticas. Alguns dos seus seguidores, como Michael Dummett, expressaram repugnância pelo seu pensamento político. Todavia, na filosofia actual, existe alguma pressão para tratar a filosofia de forma compartimentada, tal como Frege fazia.

Não é mau que algumas pessoas o façam. Existem muitas formas de fazer Filosofia e nem toda a gente pode pensar em todos os assuntos. Há espaço para filósofos especializados em questões altamente abstractas e com um domínio restrito. Todavia, seria uma perda se isto se tornasse a norma. Tal coisa impediria a Filosofia de criar dificuldades à crendice.
(376-378)

"

Tradução e adaptação de LFB. Excertos retirados de Glover, J., Humanity – A moral History of the Twentieth Century, Yale U.P., 2001

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Putnam e a filosofia judaica (iii) "Rosenzweig on Revelation and Romance" (pp. 37-54).

"Aqui uma frase não se segue da sua antecessora, mas, e isto é muito mais o caso, da sua sucessora." (Rosenzweig, "the New Thinking", in Philosophical and Theological Writings, citado por Putnam, p.38)

A citação surge no contexto inicial do capítulo onde se fornecem algumas explicações sobre o porquê da obra principal de Rosenzweig - The Star of Redemption - , ao contrário de USH, ser uma obra muito difícil. A razão da dificuldade passa por ter que ler toda a obra e por perceber a crítica já apresentada à filosofia como a procura das essências. Rosenzweig ironiza com os filósofos que, lendo as primeiras páginas de uma obra e encontrando alguma falha lógica, dão por refutada toda a obra, senão mesmo todo o trabalho do autor.

Rosenzweig profetiza o fim da filosofia como metafísica e propõe uma nova maneira de filosofar: a filosofia narrativa, também designada de filosofia experiencial ("experiential philosophy", p.40). As próximas páginas são dedicadas à explicação desta nova concepção. Em primeiro lugar, esta escrita pretende levar "o leitor a encontrar-se com o autor" (p.41) promovendo mudanças profundas no leitor. É "prosa existencial" e, por isso, pretende realizar, através da escrita, o tipo de diálogo descrito anteriormente como "falando-pensando". É também "escrita revelatória", no sentido de experiência teológica, uma experiência de encontros, uma experiência de "um acontecimento entre os dois". (Paul Franks, citado por Putnam, p. 41).
Putnam estabelece aqui uma relação entre Rosenzweig e Levinas afirmando que também na filosofia ética deste se pode ler um tipo de narrativa semelhante: "quando Levinas nos diz que cada um de nós deve aprender a dizer "aqui estou eu" ao outro, o seu «aqui estou eu» é, na verdade, modelado no hineni de Abraão: que é o que Abraão diz a Deus quando Deus o chama para sacrificar o seu querido filho Isaac ..." (p.43). Ainda que, como Putnam afirmará mais adiante (p.49), haja diferenças assinaláveis entre os dois filósofos: para Rosenzweig surge primeiro a percepção de que se é amado por Deus e só depois a ordem de amar o outro. Para Levinas é o contrário.
Nas páginas seguintes Putnam explica, através do amor de Deus por Abraão em particular (e pelo povo judeu, em geral), a relação amorosa entre Deus e a alma humana/Abraão: "é esta imagem de Deus como amante que domina a narrativa na secção acerca da Revelação (Livro II da Parte II) da Star." (P.46)
Deus diz a cada pessoa "ama-me" e se esse apelo for correspondido haverá "consequências" relacionadas com a redenção de que fala Rosenzweig: implica imitar Deus e amar "todo e cada ser humano como ser humano." (p. 49). Este "matrimónio" implica sair de "uma mera relação "interior" com Deus". A grande tragédia da alma humana na sua não-relação com Deus é fechar-se dentro de si própria, é tornar-se uma alma "Metaética" (p.47). Neste contexto Putnam cita Auden:

The error bred in the bone
of each woman and each man
not universal love, but to be loved alone.

e outro verso do mesmo poeta:

"Always the soft idiot softly me"

Mas o matrimónio/redenção não acontece apenas pela aceitação ética de amar o outro individualmente. A redenção será um estado onde "o amor de Deus e o amor do próximo serão verdadeiramente universalizados." (p.51) Ainda que a redenção seja projectada para o futuro, o homem deve agir de forma a experienciá-la no presente: a analogia com o amor entre as pessoas é esclarecedora: a redenção está no futuro e no presente do mesmo modo que duas pessoas que se amam, experienciam o seu amor no presente e querem continuar a experienciá-lo no futuro.
"A redenção tem um lado pessoal - é algo experienciado por cada pessoa religiosa; e tem um lado comunal - é algo exemplificado e modelado pela comunidade religiosa judaica como um todo; e tem um lado escatológico, mas não é apenas escatológico porque a sua futura ocurrência é algo que está "presente" ao judeu individual agora." (p.54)
(LFB)

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Putnam e a filosofia judaica (ii) "Rosenzweig and Wittgenstein"(pp. 9-36).

O primeiro capítulo começa com duas citações de Wittgenstein:
"Sem alguma coragem, ninguém pode escrever uma frase genuína acerca de si próprio."
"Algumas vezes acredito." (p.9)

Putnam discutirá aqui algumas semelhanças entre as atitudes de Wittgenstein e as de Rosenzweig em relação à filosofia. Mas primeiro alguns esclarecimentos sobre a filosofia Wittgensteiniana:
1) Putnam acha errada a visão de que wittgenstein é um anti-filósofo cuja missão é mostrar que os problemas filosóficos são apenas confusões e que encara a filosofia como uma doença que pode ser curada através de uma terapia acerca do significado da linguagem. "O que preocupava Wittgenstein era algo que ele via como estando profundamente enraizado nas nossas vidas com a linguagem ..." (p.11). Se compreendermos que a procura de clareza (exemplificada pelo trabalho de Wittgenstein) é necessária sempre que pensamos seriamente então veremos que o trabalho de Wittgenstein, em vez de ser o fim da reflexão filosófica, é uma forma de levá-la para áreas onde antes não víamos nada de filosófico.
2) Wittgenstein nunca aceitou a ideia de que "a religião é essencialmente uma confusão conceptual". É certo que as pessoas são vítimas de confusões religiosas, desde a superstição até "à tentação de tornar a religião numa teoria em vez de a encarar (aquilo que ele achava que deveria ser) como uma vida de aprofundamento" (a deep-going way of life, p.11), daqui o interesse de wittgenstein em Kierkegaard. "... Seria mais correcto afirmar que ele atacou os aspectos anti-religiosos do «Iluminismo com um I maiúsculo» em nome do próprio iluminismo." (p. 12). A religião não é uma teoria. Pretender que a religião pode ser criticada ou defendida apelando a factos científicos é um erro.

Comparação Rosenzweig/Wittgenstein:

a) ambos defendem que é uma confusão querer provar a verdade de uma religião apelando a "factos históricos": "uma confusão entre a transformação interior da vida de uma pessoa - para Wittgenstein a verdadeira função da religião - e os objectivos e actividades da explicação e previsão científicas" (pp. 13-14). Nas páginas seguintes Putnam analisa citações de Rosenzweig onde o significado do judaísmo é discutido;

b) ambos defendem que a procura da essência das coisas é um projecto “absurdo”; Rosenzweig argumenta no seu livro Understanding the Sick and the Healthy (USH) usando a “ironia redescritiva” (ironic redescription, penso que é uma expressão de Rorty, mas não tenho a certeza). O exemplo hilariante dado por Rosenzweig é a procura da essência de uma barra de manteiga. Putnam também ironiza apresentando um hipotético diálogo entre professores que, numa conferência, discutem metafísica. O diálogo termina assim: “(prof. D) Eu sugiro: «X quer uma barra de manteiga» significa «X quer que seja verdadeira uma frase que esteja numa relação de sinonímia com a seguinte frase: «eu tenho uma barra de manteiga»”. Ainda que os conferêncistas se defendessem afirmando que a sua discussão é sobre a semântica de certos tipos de frases, isso de nada serviria uma pois: “a «semântica» contemporânea é quase sempre apenas metafísica à moda antiga, mas disfarçada.” (p.21 Putnam com o apoio de C. Travis).
Apesar do ataque à metafísica não se pode dizer que os filósofos aqui em causa sejam nominalistas, isto é que estejam a defender uma tese metafísica sobre as essências: Por exemplo que, em relação ao problema da identidade pessoal, estejam a afirmar que "... não há nada que as diferentes coisas juntas sob um nome tenham realmente em comum" (p. 23, uma tese defendida, por exemplo, por D. Parfit). Rosenzweig defende que é essencial para nós podermos pensar que somos a mesma pessoa em diferentes tempos, a frase que Putnam cita do USH é "o senso comum em acção preocupa-se com a permanência do nome, não com a essência, ". Putnam interpreta "o senso comum em acção" como o mesmo que Locke defendeu ao ligar a identidade com as recordações de coisas que nos aconteceram ou com a ideia de Kant de ligar o pensamento racional com "o facto de eu encarar os meus pensamentos, experiências, memórias e outras coisas que tais como sendo minhas" (p. 24).

"Kant, tal como Locke, podem ser encarados como defensores da ideia de que o "jogo" de pensar os meus pensamentos e acções em diferentes tempos como sendo meus não depende de uma premissa metafísica acerca de "substâncias auto-idênticas", e é, mesmo assim, um jogo do qual não podemos optar por sair enquanto estivermos empenhados no "senso comum em acção.""
A ideia comum que Putnam encontra "nestes pensadores" é a de que colocar o problema da identidade pessoal (" de quantas substâncias auto-idênticas sou eu composto?") ou outro problema filosófico qualquer, é afastarmo-nos daquilo que realmente importa, "daquilo que é necessário para o "senso comum em acção"" (p.25).

A questão importante é então: "o que significa o senso comum em acção para o homem religioso?" (p.26) Da mesma maneira que um homem não se relaciona com outro homem através de teorias ou de essências também não poderá relacionar-se com Deus através de uma teoria ou de uma essência. A tarefa do homem não é apresentar provas de Deus, do mundo e do homem, mas reconhecer (acknowledge) Deus, o homem e o mundo (aqui Putnam faz outra comparação com Wittgenstein socorrendo-se da interpretação de S. Cavell que interpreta Wittgenstein como alguém que encontrou uma verdade no cepticismo). E não poderá reconhecer um sem reconhecer os outros.

É correcto entender Rosenzweig como um filósofo existencialista (na linha de Kierkgaard), mas não é correcto afirmar que o ataque à metafísica que é feito no USH se dirige apenas ao Idealismo Alemão. É verdade que o idealismo alemão é atacado mas é também atacada uma grande ilusão filosófica: a ilusão de que a filosofia pode fornecer conhecimento das "essências". (p.17) (daqui que Rosenzweig dê exemplos do materialismo, do positivismo e do empirismo e não apenas do idealismo). A filosofia é encarada no USH não como uma coisa técnica mas como uma "tentação que quem quer que se pensa a si próprio como religioso pode estar sujeito" (p.17). A tentação filosófica assim entendida é "a de substituir palavras, especialmente palavras que não têm conteúdo religioso porque não têm relação interna com uma vida religiosa genuína, por esse tipo de vida (...) "Tal como Wittgenstein e Kierkgaard, Rosenzweig encarava a metafísica como uma forma de tentação exagerada, de facto, como uma «doença» à qual estamos todos sujeitos." (p.18)

O ataque à metafísica também não é um ataque à capacidade de espanto. Capacidade que não pertence apenas ao domínio filosófico mas também à vida comum (ordinary life). Para Rosenzweig, o filósofo é aquele que não consegue "que o seu espanto, armazenado como está, se liberte para a corrente da vida". À medida que ele se abstrai do concreto para poder compreender o problema , à medida que procura o ponto de vista imaginário, à medida que procura colocar-se a sí próprio de um ponto de vista neutro, a sua capacidade de espanto fica paralizada e a "corrente da vida é substituída por algo submissivo" (p.28, extratos de citações feita por Putnam de USH). E é esta a doença presente no título do livro. A doença do filósofo é a paralisia perante o decorrer da vida. Isto acontece, diz Rosenzweig, porque o filósofo tem "medo de viver" e mais do que isso porque procura iludir a morte:

"...então ele prefere sair fora da vida. Se viver significa morrer, ele prefere não viver". (Rosenzweig, USH, citado por Putnam, p. 29).

Quando li o livro de Rosenzweig fiquei espantado com o facto de o livro apresentar a paralisia, ainda que metaforicamente, como a doença dos filósofos. Não é que eu não estivesse consciente dos perigos da filosofia, basta pensar, por exemplo, na distinção entre agir e pensar, no filósofo e no homem prático, na utilidade da filosofia (Hume), etc. O espanto adveio do facto de ter ficado a saber que, pouco tempo depois de ter terminado o livro, Rosenzweig descobriu os primeiros sintomas da doença de Lou Gehrig e em poucos anos ficou paralisado (num estado semelhante ao de S. Hawking). O homem religioso que escreveu sobre o filósofo paralisado, tornou-se, pelos infortúnios da vida, o homem religioso paralisado. Espanto e arrepio.

Apesar de tudo Rosenzweig continuou a viver de acordo "com as exigências da sua própria filosofia existencial" (Putnam, p.29). A comunicação ficou reduzida ao piscar dos olhos. [Também noutro caso que deu origem ao livro, e depois ao filme, O Escafandro e a Borboleta o autor usa o mesmo processo de comunicação através do piscar de olhos e dita/escreve o livro dessa forma. Quem terá inventado esta forma de comunicação?]. Rozensweig continuou a escrever, traduziu, do hebraico, a Bíblia, conjuntamente com Buber, e não deixou de transmitir a confiança e a determinação que já eram suas antes da doença (já havia rejeitado um lugar na Universidade porque "as lutas com as pessoas e as condições tornaram-se agora a substância da minha existência" carta de Rosenzweig citada por Putnam, p.31).

A proposta existencial de Rosenzweig é o "novo pensar" (new thinking). Em que consiste? Três características são apresentadas por Putnam:
i) "falando pensando", determina a necessidade de outra pessoa (que houve e fala) e de tempo; não sabemos o que outro irá dizer nem quando terminará (os diálogos de Platão são criticados porque quem escreve já sabe o que o dialogante irá dizer);
ii) a teologia e a filosofia devem ser humanizadas;
iii) é preciso estar pronto (readiness) em vez de ter um plano; (desejo de Rosenzweig de reviver todas as formas de aprendizagem judaica e de restaurar a vida judaica em Weimar: "as coisas superiores não podem ser planeadas, para elas a prontidão é tudo").

O capítulo termina com a crítica de Putnam ao facto de Rosenzweig afirmar - no considerado obscuro e inacessível livro intitulado The Star of Redemption (versão inglesa) - que só duas religiões têm significado genuíno - o judaísmo (por ser a única religião a-histórica no sentido em que as mudanças nunca são mudanças "reais") e o cristianismo (a religião histórica por excelência). Putnam vê aqui resquícios do Hegalianismo outrora defendido por Rosenzweig.

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Ideia geral defendida por Putnam: Apesar de a filosofia necessitar de "análise de argumentos e técnicas lógicas" é muito importante não esquecer que estas técnicas devem estar ao serviço da filosofia com um modo de vida (= transformar o nosso modo de vida e compreender o nosso lugar na comunidade), é esta visão da filosofia que é comum aos quatro filósofos estudados neste livro.

(LFB)

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Putnam e a filosofia judaica (i) "introduction (autobiographical)"(pp. 1-8).


1) Putnam é um filósofo de tradição anglo-saxónica. Formado na U.C.L.A, diz-nos que que o seu mestre foi Hans Reichenbach, sendo muito influenciado pela forma científica de pensar (p.1). Nesta introdução autobiográfica Putnam fala de si como um filósofo naturalista mas não reducionista; no sentido que não defende que tudo possa ser reduzido a propriedades físicas. Para ele, por exemplo, "o nível da acção moral significante" (p.5) não é redutível. E há uma relação entre a realidade e a moralidade no sentido em que "realidade exige coisas de nós". Os valores, ainda que criados pelos humanos, são uma resposta às exigências da realidade e estas não são criadas por nós. "É a realidade que determina se as nossas respostas são, ou não, adequadas" (p.6) Na linha do "pragmatismo clássico" (Dewey).
Putnam escreve aqui sobre Rosenzweig, Buber e Levinas - filósofos judeus pouco valorizados na filosofia anglo-saxónica. E também sobre Wittgenstein que, não sendo propriamente judeu (o seu bisavô tornou-se cristão) é muito importante para o objectivo de Putnam: estudar, através dos textos destes quatro pensadores, a relação entre o filósofo, o religioso e o ético. Nas suas palavras:

"o que fiz, filosoficamente falando, das actividades religiosas das quais passei a fazer parte?" (p.3).

No passado operava uma separação entre o filósofo ateísta e o homem crente. Dentro da sua tradição filosófica: separar o humano/religioso do filósofo/académico.

2) Putnam estabelece semelhanças e diferenças entre as teses dos autores sobre os quais o livro versa e as teses defendidas por filósofos analíticos contemporâneos (T. Nagel, Parfit, Rorty). Será que esta aproximação entre duas formas de filosofar representa um enriquecimento filosófico? Se sim, qual?

3) Putnam é judeu e o livro procura fazer uma intersecção/depuração entre diferentes formas de vida (estudar e rezar). A sua relação com as práticas judaicas começou nos anos 70 com uma Ever Shabbat (conferência de sexta-feira à noite) e solidificou-se com a preparação, em diálogo com o rabi local, do bar mitzavh para o seu filho Samuel.
Putnam refere a meditação transcendental muito em voga nesses anos: "... Pensei: bem em vinte minutos posso rezar as orações judaicas tradicionais (daven). Porquê experimentar algo vindo de outra religião? (...) Descobri que era uma actividade transformadora" (p.3).
A questão de como lidar com o lado religioso da vida surgiu também da reflexão sobre a linguagem religiosa de Wittgenstein, em particular sobre a ideia de que "para o homo religiosus, o sentido das suas palavras (...) está profundamente interligado com o tipo de pessoa que o indivíduo religioso particular escolheu ser e com as imagens que são a fundação dessa vida individual" (p.5). O ponto importante que ajudou Putnam a reconciliar os vários níveis da sua vida foi o facto de, em 1997, ter decidido leccionar um curso de filosofia judaica, curso este que está na origem do livro.

(LFB)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

«nunca li outro livro que me fizesse lembrar tanto a Bíblia como O Castelo»

"Ao mesmo tempo que Rosenzweig estava a escrever Compreendendo o Doente e o Saudável - Uma visão do Mundo, do Homem e de Deus (Understanding the Sick and the Healthy, na tradução inglesa)", Franz Kafka estava a trabalhar no Castelo. Neste livro um agrimensor, K, recebe uma chamada para trabalhar num castelo; ao chegar à aldeia que é dominada pelo castelo descobre que o castelo lhe é inacessível, que nem mesmo os oficiais de mais baixa patente podem ser contactados e que a sua crença de que foi chamado não pode ser verificada. Os aldeões, que vivem sem colocar questões e estão protegidos por um sentido ingénuo de segurança, olham para K como um estranho: «não precisamos de um agrimensor, os limites das nossas terras estão bem definidos». K permanece isolado quer do castelo quer da aldeia. O seu conhecimento afasta-o das pessoas que nada sabem, mas ele não consegue trazer esse conhecimento para a vida porque a vida real, eterna e significativa está no castelo e inalcançável para o homem que tem saber. A situação trágica do homem resulta do facto de ter comido da árvore do conhecimento e de não ter comido da árvore da vida" (...) Com a expulsão do Paraíso o homem perdeu o seu nome (os heróis de Kafka usam apenas a letra inicial), perderam a linguagem (não há verdadeira comunicação), perderam o seu amor (apenas o sexo permanece); o tempo que poderia ser agora o do homem, não é outra coisa senão eternidade paralizada, distorcida e confusa. Homem (K), Mundo (aldeia) e Deus (castelo) existem, mas as suas existências não estão correlacionadas.
Rosenzweig percebeu que Kafka estava lidar com um problema bíblico genuíno e afirmou: «nunca li outro livro que me fizesse lembrar tanto a Bíblia como O Castelo». Rosenzweig encontra o homem exactamente onde Kafka o deixou. À questão bíblica de Kafka, o escritor existencialista, Rosenzweig, o pensador co-existencialista, fornece a resposta bíblica, pois ele admite a ideia bíblica de revelação (amor). Assim o homem encontra o seu lugar ao lado do seu companheiro, no mundo e perante Deus. Ele fala e falam com ele. É chamado pelo seu nome e nomeia os seres à sua volta. Ultrapassou a sua desconfiança sobre o tempo, aprendeu a esperar (o homem, diz Kafka, foi expulso do paraíso por impaciência) até que «compreende no tempo certo,» até que o tempo se torne um espelho da eternidade."

Nahum Glatzer, introdução ao livro de Franz Rosenzweig, Understanding the Sick and the Healthy - A view of World, Man, and God, (com uma introdução de Hilary Putnam), Harvard U.P.,1999, p.31-32. (tradução livre LFB)


Esta citação/tradução surge do facto de eu, após ter começado a ler o muito recente livro de Putnam, Jewish Philosophy as a Guide to Life: Rosenzweig, Buber, Levinas, Wittgenstein, (Indiana U. P. 2008) do qual espero apresentar aqui algumas notas e traduções, ter pegado de novo no pequeno livro de Rosenzweig que é, entre muitas outras coisas importantes, uma refutação da ideia de que "a filosofia pode fornecer conhecimento das essências" (Putnam, 17).

(LFB)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

O Condomínio da Terra de Paulo Magalhães

Este livro, escrito por um ambientalista com formação em Direito, pretende contribuir com uma solução para a crise ambiental que afecta todo o planeta. O livro tem duas orientações: uma filosófica e outra jurídica. Considerarei, sobretudo, alguns aspectos filosóficos. A substância filosófica, que serveria de fundamento às novidades que o livro apresenta, é muito discutível.

A assumpção, por parte do autor, de uma posição realista em relação ao problema da natureza da realidade (uma questão metafísica com amplas conexões epistemológicas) é um ponto fundamental na construção de toda a ideia de um condomínio Terra. É desse pressuposto que depende a premissa de que a “Biosfera é a Realidade em si”. O autor não concebe a hipótese filosófica contrária de que o mundo pode ser apenas uma ideia, ou um sonho, ou apenas uma realidade virtual (o que não quer dizer que o seja, mas as meras possibilidades sempre fizeram pensar os filósofos). Sendo que é o próprio autor que se coloca no domínio filosófico (o que não é de todo necessário para se apresentarem soluções jurídicas para problemas ambientais), seria então de esperar que ele discutisse e rebatesse algumas dos argumentos que se discutem actualmente sobre a questão da natureza da realidade. Mas tal não acontece.

O problema fundamental é o de saber se todo o conhecimento é sempre conhecimento para nós, conhecimento sempre limitado pelas nossas capacidades cognitivas e sensoriais ou se, pelo contrário, será possível conhecer a realidade em si, separada do conhecimento humano e à qual seja possível aceder de um modo que vá além da mera intuição/ crença/ fé na existência desse mundo real independente da minha percepção dele. A grande dificuldade está em demonstrar a existência do Real de uma forma que não seja dependente de um conhecimento para nós.

Em relação a este problema, o autor defende que a biosfera não deve ser entendida como uma "organização ou concepção humana". Um exemplo:

"Hoje sabemos que a natureza pensada conhece um milhão e oitocentas mil espécies, e a natureza em si, estima-se em 8 milhões." (p.17, o itálico e o negrito estão no livro, tal e qual.)

No entanto, a palavra a negrito deveria ser 'estima-se' e não 'realidade em si', precisamente porque uma estimativa não deixa de ser uma acto do nosso conhecimento, aliás uma acto do possível e não do conhecimento. O que, só por si, é muito pouco para estabelecer a existência da 'realidade em si' para lá de qualquer dúvida razoável.

Ainda em relação ao problema da realidade em si, o autor e seus mentores colocam-se numa perspectiva anti-cartesiana para quem, dizem-nos, só o pensado é real. Mas, se é consensual que a posição mecanicista da natureza defendida no séc. XVII é errada, isso não é suficiente para que a existência da 'Realidade em si' fique demonstrada. Muito menos apenas com recurso a afirmações algo contraditórias como a seguinte: "há uma percepção da sua eventual existência", ou como quando, citando Soromenho-Marques, o autor nos diz que devemos "inovar a própria realidade" (p.35). Ora, a percepção é um acto cognitivo e, assim sendo, não estamos a falar do real em si, mas sim do real para nós. A questão é a de saber se esse real em si não nos escapará sempre dadas as nossas limitações cognitivas. E “inovar a realidade” é bonito, mas o que significa no contexto da discussão filosófica? São distinções elementares, mas que parecem escapar a Paulo Magalhães.

As leis da natureza são aqui apresentadas como se fossem imutáveis e como se fossem a demonstração de que a realidade em si existe separada do sujeito. Quando o que os filósofos das ciências afirmam é que as leis da natureza são uma construção da mente humana sujeita a revisões e a falsificações como qualquer enunciado universal.

Que existe um mundo lá fora ninguém duvida (à excepção, claro, de alguns filósofos). A questão filosófica central não é a de saber se os golfinhos comunicavam, ou não, antes de nós sabermos isso. É claro que comunicavam. Como o autor afirma:

"os golfinhos não estiveram à espera que o homem começasse a decifrar a a sua linguagem para comunicarem entre si" (p.23).

A questão é que não há forma de o sabermos antes de o sabermos! Por outras palavras, o dilema clássico é: 'como é que eu sei que o meu quarto continua a existir quando eu lá não estou?' Ou, em termos ambientais: como é que eu sei que sou responsável pela crise ambiental antes das evidências científicas me mostrarem que eu o sou?

Paulo Magalhães pode falar do "saber que a natureza sempre soube"; da Biosfera ter sido "desde sempre globalizada e independente" (p.23); do Direito como aquele que, na criação da ideia de condomínio, "negociou com o real" (p.84) mas isso, filosoficamente falando, não são mais do que metáforas bem intencionadas. A confusão conceptual aqui presente é a não distinção entre o "sabe que existe" e o "existe separado de".

Em termos éticos, o autor coloca o ser humano num domínio perfeito e ideal onde o homem respeitaria o ambiente - o que, para quem se diz tão seguro da realidade, não deixa de ser irónico - , esquecendo que no século XX o homem destruiu toda a noção razoável de humanidade e esquecendo que se um homem não consegue respeitar outro homem, então como respeitará noções tão abstractas como a Bioesfera ou o Ambiente. Antes de destruir o ambiente o homem já se tinha destruído como homem ético. E esta destruição está tão próxima de nós que é ainda quase possível sentir, por toda a Europa, o odor de tal destruição. Em querendo colocar-se no plano filosófico da natureza humana, talvez seja condição necessária começar por reconstruir, se isso for sequer concebível ainda, a estrutura ética do humano.

Nada disto impede impede o autor de exigir o ideal de:

"uma nova consciência do estar 'em relacionamento', na sua dimensão jurídica, que se alarga para além das relações intra-espécie". (p.24)

Mas estes são pormenores filosóficos que, dirão alguns, em nada ajudam a salvar a Terra.

Vejamos então algumas das ideias inovadores que o livro apresenta pra concretizar tão almejado objectivo. O problema a partir do qual o autor constrói a sua solução é o de saber como incluir as leis da natureza nos sistemas jurídicos que regem a vida política das pessoas (veja-se p. 66 e seguintes), uma vez que o aquecimento global veio acabar em definitivo "com as fronteiras tradicionais da soberania dos estados" (p.68). A resposta está na inclusão das leis da natureza no direito natural de onde brota "o sistema jurídico da sociosfera".

A ideia inovadora é a de que assim como um indivíduo livre e soberano que viva num prédio tem de limitar a sua liberdade e a sua propriedade obedecendo às imposições ditadas pelo administrador do condomínio (terá de pagar uma montante fixado para manutenção dos espaços comuns, participar em reuniões, contribuir com dinheiro para obras de beneficiação, etc.), também o Estado livre e soberano deverá limitar a sua soberania por forma a melhorar o condomínio que é o planeta Terra (sendo os espaços comuns a Atmosfera e a Hidrosfera e, com menos garantias, a Biodiversidade). Defende-se que o modelo de privatização dos recursos ambientais pós Kioto tem algo de errado precisamente porque não se pode dividir aquilo que é uno e interdependente – a Biosfera. De nada servirá sermos poucos poluidores quando os nossos vizinhos o são em demasia, e são-no legalmente porque compraram direitos de poluição. O problema não está tanto na solução encontrada, mas sim no facto de as verbas provenientes do “uso privado de um recurso público não serem directamente empregues no melhoramento das partes comuns” (pp.124-125).


A ideia é interessante mas fica a seguinte dúvida. Como é que as verbas resultantes da necessidade de conservar o condomínio poderiam diminuir significativamente os problemas ambientais que afectam o planeta? Até que ponto o dinheiro é capaz de resolver o problema do aquecimento global? O problema não parece ser uma questão de verbas - por analogia com os prédios, uma questão de manutenção do edifício, ou de beneficiação – mas sim uma questão de formas de vida resultantes da industrialização e da depêndencia irrecuperável dos seres humanos da tecnologia. E dessas formas de vida geradoras de conforto e prazer ninguém parece estar genuinamente interessado em abdicar. Se for uma questão de verbas, como este livro sugere, isso arranja-se, mais cedo ou mais tarde. Se não for, então esta solução terá até o efeito indesejado de criar a ilusão de que, afinal, o problema está a ser resolvido pela “Assembleia de Condóminos”.

(LFB)

segunda-feira, 8 de maio de 2006

Ainda acredito na educação (embora cada vez menos)

porque depois de ler os motivos de depressão de um professor, sei que fiz bem em leccionar o programa do 11º ano de Filosofia a partir do Mil Novencentos e Oitenta e Quatro de G. Orwell e do Admirável Mundo Novo de A. Huxley. Sei que é possível ser inovador, ousado, desobediente e arriscado - numa palavra: ANORMAL - no ensino secundário. E sei que isso é que faz a diferença. Embora a corrente nos puxe em sentido contrário. Sei que existem ex-alunos meus que estão neste momento na Universidade e sabem quem foi Orwell e o que é o Big Brother. É claro que essa turma foi excepcional. Mas outras virão - e é isto que que me faz acreditar ainda na educação.


(LFB)

segunda-feira, 25 de julho de 2005

Estar por aí

A propósito de a "arte" de andar "prá aí", vale a pena ler este best seller - de forma algo inesperada , pois quem anda 'prá í' raramente quer ler livros de filosofia - de José Gil, que, a páginas tantas, tece considerações acerca de uma resposta dos portugueses que nada diz, mas que muito os define:

- 'vou estar por aí'.


(LFB)