Na primeira parte, Orwell dá-nos uma visão do mundo onde Winston – a personagem principal – vive imerso e sob total controlo. Winston e os demais habitantes de Oceânia vivem quase totalmente controlados pelo telecrã; nalgumas coisas tão parecido coma a TV do nosso mundo mas que, ao contrário desta, transmite e capta imagens. O telecrã é um dos meios privilegiados para dar corpo ao Big Brother, essa figura que representa a unidade e, simultaneamente, os perigos que ela contém: “(…) uma nação de guerreiros e fanáticos marchando em frente na mais perfeita unidade, pensando todos a mesma trezentos milhões com caras iguais (Orwell, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, Antígona, 1991, p.8o)”. Winston consegue encontrar um canto do seu quarto que talvez não seja captado e aí escreve o seu diário secreto. O pensamento surge como forma de libertação, incluindo o sonho/pesadelo que na obra é outra das formas libertadoras a que Winston recorre. Ele sonha com a sua mãe e irmã, sonha com o tempo antes da guerra, sonha com um outro espaço onde tudo seria mais belo e mais verdadeiro.
As pessoas vivem controladas pelas crianças que, tendo sido desde muito cedo educadas para denunciar os crime-pensantes (a verdade, independentemente das consequências, é das crianças), estão sempre prontas a apontar um suspeito. Controlados também pelas pessoas que se encontram à sua volta. Qualquer um pode denunciar outro e, por isso, qualquer um pode ser denunciado. Aqui nunca se sabe em quem confiar. Winston dúvida de Júlia e chega a desejar matá-la. Depois ama-a e deseja nunca traí-la. Winston confia em O’Brien e pensa, sem nenhuma justificação plausível que não “secretos devaneios, baseados em sonhos” que ele é também um “conspirador político” (174). Depositando a sua confiança num camarada confessa-se, sem saber, ao seu executor (na 3ª parte O’Brien usará essas mesmas palavras de Winston para lhe mostrar que, ao contrário do que afirma, ele não é nenhum anjo, cf. pp. 177 e 271):
“(…) somos inimigos do Partido. Não acreditamos nos princípios do SOCING. Somos crimepensantes. E também somos adúlteros. Conto-te isto para ficarmos à tua mercê. Se quiseres que aprofundemos o compromisso, estamos ao teu dispor.” (175)
Num dos momentos mais irónicos do livro:
“Estão dispostos a enganar, falsificar, fazer chantagem, corromper o espírito das crianças, distribuir drogas que provoquem dependência, fomentar a prostituição, espalhar doenças venéreas… a fazer tudo o que seja susceptível de desmoralizar e enfraquecer o poder político?”
A resposta de Winston é sim. E está pronto para muito mais, desde maltratar crianças até à mutilação do corpo e ao suicídio; ambos estão prontos para tudo. Até, se tal for necessário, obter uma nova identidade. O leitor não poderá deixar de se interrogar sobre o que distingue então Winston do seu carrasco. A diferença está em que um é capaz de fazer tudo para manipular e controlar as pessoas (o poder pelo poder) e Winston é capaz de fazer tudo para acabar com o partido (o poder pela liberdade). São iguais, do ponto de vista das consequências, Do ponto de vista dos ideais não podemos, tal como Winston não pode, aceitar o totalitarismo. Compreendemos até que se possam realizar crimes para cumprir esse objectivo maior. Haver gente, como Winston e Júlia, capaz de realizar todos esses actos transmite-nos alguma segurança, pois significa a afirmação de que, em vez da resignação silenciosa, a luta contra o grande ditador é sempre possível. Felizmente, na vida real e no livro, nem todos são colaboradores. Winston e Júlia só não estão dispostos a separarem-se definitivamente. Júlia é muito mais assertiva na sua resposta. O amor como uma das poucas coisas autênticas a que ambos se podem agarrar. No fim da história caberá a cada leitor saber até que ponto é esse sentimento autêntico. Controlados também pelo passado, pela ausência de memórias fidedignas; todo o passado é completa e diariamente alterado para servir os propósitos do partido. Controlados pela guerra constante. Controlados pela própria língua que, em fase de substituição pela novilingua, deixará de ser uma forma de riqueza e diversidade. A novilingua, limitando o número de palavras, controla e limita a possibilidade de certos pensamentos serem sequer concebidos. Haverá alguma forma de sair dessa prisão?
Na primeira parte é-nos também dada uma visão estratificada da sociedade. Uma sociedade dividida em três grupos: o partido interno – os seus membros viviam melhor do que os outros, vestiam castanho e eram responsáveis privilegiados. Eram, por exemplo, os únicos que podiam desligar, ainda que só por alguns minutos, o telecrã. O partido, composto por funcionários que vestiam de azul e que mantinham a grande máquina torturante em funcionamento. E, por último, os proles que vivem à margem do partido. Vivem na pobreza e na ignorância, é esta a forma que o partido tem de os controlar. Winston chega a acreditar que a salvação só poderá estar nos proles, só eles poderão rebelar-se contra as forças agonizantes da sociedade totalitária. Não é nada claro que assim seja até porque é um prole que denuncia Winston e Julia à polícia do pensamento. A fome e a ignorância sempre geraram bons colaboradores.
A segunda parte, em contraste total com a primeira, acontece sob o signo da luz, da beleza, da esperança e do sonho/realidade. Da escuridão, da fealdade, da resignação e da irrealidade – num certo sentido, tudo é irreal em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, ou não será? – passamos para a luz. Através da descoberta do amor, amante e amado são levados a acreditar que a única verdade possível está nos sentimentos, no coração, nos instintos mais básicos que o Partido tão veementemente tenta suprimir. O amor parental não é permitido – os filhos são separados dos pais; e existe uma forte repressão sexual (só a prostituição é tolerada por ser uma forma de escape e ao mesmo tempo uma forma de descobrir quem tem problemas com os seus instintos). É nos capítulos centrais da 2ª parte que o leitor é levado, por um lado, a crer que alguma saída há-de ser possível para Winston e Julia e que alguma saída há-de ser possível para a própria situação em que cada um de nós, efémeros leitores, se encontra; por muito boa que seja, terá sempre algo de irreal, de manipulado e de opressivo. Veja-se, para substanciar a crença na saída, o capítulo 8, onde sabemos que “estamos sós” (174) o que não deixa de ser surpreendente vindo de O´Brien, o homem em quem eles depositam confiança e onde se afirma que “a nossa única vida autêntica está no futuro” (181).
Por outro lado, o leitor é também colocado perante a pior hipótese: a de não haver saída. No capítulo 5, várias hipóteses são colocadas perante o acto de liberdade que ambos desejam realizar – o de se encontrarem secretamente, negando deste modo todos os postulados da sociedade tal como ela foi apresentada na primeira parte. Júlia acaba por dizer: “o que me interessa somos nós” (161); tese subjectivista que em qualquer tempo e em qualquer situação encontrará sempre os seus seguidores. A ideia de que “só os sentimentos contam” deixa os filósofos estarrecidos de tão crentes que são no poder da razão, na universalidade da verdade e na contingência dos sentidos. Nestas páginas centrais do livro há uma inversão de categorias – o irreal e fugidio torna-se o mais real e duradouro. Enquanto o mundo que os rodeia e as suas categorias foram já transformados na maior das farsas, os sonhos de Winston tornam-se realidade; o que de mais verdadeiro há na sua história pessoal. Contudo, ele sabe – são também os seus sonhos o veículo dessa revelação –e confessa-o a Júlia, que perante situações de miséria extrema, como as resultantes da fome e da guerra como as que ele enquanto criança teve que suportar, é o egoísmo que vem ao de cima – quer seja o egoísmo que o leva a roubar a única comida disponível que a mãe tinha para dar à irmã moribunda, quer seja o egoísmo de não suportar mais a dor da tortura do quarto 101.
Na terceira e última parte é a questão da liberdade interior – desde o início o refúgio de Winston - que é posta em causa. Tendo sido traídos por O’Brien, o que se segue é a tortura (em todos os sentido) como forma última de opressão. A morte seria um bem demasiado grande para poder ser oferecida, sem mais nem menos. Primeiro a limpeza, a purificação mental e, por fim, a negação da mais ínfima liberdade de pensamento. Depois de várias sessões, mas antes da ida ao quarto 101, Winston reconhece que 2+2 tanto pode ser 4 como 5 ou 3. Não há verdades absolutas. Essa é a primeira vitória sobre a liberdade de pensar. No entanto, Winston sonha (sempre o sonho como veículo da libertação) com uma bala que entra pelo seu cérebro e engendra, para esse momento que há-de chegar, a forma de morrer livre:
“Percebeu pela primeira vez que, a querer guardar um segredo, se via obrigado a escondê-lo até de si próprio. (…) daí em diante não lhe bastaria os pensamentos certos, os sonhos certos; tornava-se imperioso mostrar também os sentimentos certos, os sonhos certos. E entretanto guardar o ódio bem fechado dentro de si, como um corpo sólido que fizesse parte da sua pessoa e no entanto não estivesse em contacto com o resto de si, como uma espécie de quisto. (…)” (281/2)
Só “dez segundos” antes da bala atingir o seu cérebro é que ele “operaria uma revolta no seu interior” e libertaria o seu ódio: “Morrer a odiá-los: eis a liberdade.” (282). Depois de se submeter à vontade do Partido e esperando a morte Winston sente que, apesar de ter confessado tudo sobre a sua amada, não a traiu porque nunca deixou de a amar. Mas depois do quarto 101 – “o pior do mundo - continuou O’Brien – varia de indivíduo para indivíduo” (284) - ficamos na dúvida se a liberdade de amar Julia e a liberdade de fazer despertar o ódio antes de morte, coisas tão íntimas e tão difíceis de controlar, serão ainda uma possibilidade para Winston. O sinal de que algo foi ultrapassado no interior de Winston é dado pela traição ao amor que, como já vimos, tinha sido apresentado como real: “façam isto à Julia! Façam isto à Julia! A mim não!” (289) Depois disto podia-se dizer que foi o medo que nos fez dizer tal coisa. Que foi uma mentira feita para salvar a pele. Mas tal disfarce não funcionaria com O’Brien. “Algo morrera dentro dele: queimado, cauterizado” (291) E, no último encontro com Julia:
“- Só queremos saber de nós próprios – repetiu ele.
- Depois disso, jamais sentimos o mesmo por essa outra pessoa.
- Não – disse ele, já não sentimos o mesmo” (293)
Vence o egoísmo? Será a afirmação final de Winston: “Amava o grande irmão” (298), uma farsa? Ou será antes a prova de que Winston foi finalmente vencido? Como interpretar as “duas lágrimas” que Winston verte antes de afirmar o seu amor ao grande irmão? São a prova do amor? Ou o sentimento derivado da consciência de que perdeu a sua luta? Dado que no final Winston, num “sonho feliz”, vê a desejada bala penetrar-lhe o cérebro mas em vez de ódio o que vemos é amor ao grande irmão, a minha leitura é de que os bons perderam. Mas as conclusões a retirar ficam a cargo de cada leitor que deverá ler as últimas páginas do livro com redobrada atenção.
Luis Filipe Bettencourt (Maio de 2008)
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