Gravações do Trio Fragata no bandcamp

terça-feira, 17 de junho de 2008

A democracia deliberativa e a educação

1. DEMOCRACIA DELIBERATIVA: O QUE É?

A ideia fundamental da democracia deliberativa é a reciprocidade entre indivíduos livres e iguais. A tese é que, numa democracia, os cidadãos, e os seus representantes, devem apresentar, uns aos outros, justificação pelas normas a que, colectivamente, estão submetidos. Deste ponto de vista, uma democracia é deliberativa na medida em que os cidadãos e os seus representantes responsáveis oferecem uns aos outros razões moralmente defensáveis para leis que a todos obrigam, num processo contínuo de justificação mútua.

Uma democracia não deliberativa é aquela democracia que trata os seus cidadãos apenas como objecto da legislação, apenas como sujeitos passivos a governar, em vez de os encarar como cidadãos que fazem parte da governação através da aceitação ou rejeição das razões que eles e os seus representantes apresentam para justificar as leis e as políticas que a todos dizem respeito.

A democracia deliberativa sublinha a importância de uma educação pública que desenvolva, nos educandos e nos educadores, as capacidades conducentes a uma futura deliberação entre cidadãos livres e iguais.

Deste ponto de vista, uma escola será deliberativa na medida em que os seus agentes e os seus representantes responsáveis oferecem uns aos outros razões moralmente defensáveis para as regras que todos devem seguir.


2. UM CASO PRÁTICO: FUMAR, OU NÃO FUMAR, NAS ESCOLAS?

Imagine-se uma escola secundária onde alguns professores e alguns funcionários fumam cigarros na sala de fumadores, e alguns alunos fumam cigarros nos espaços exteriores da escola. Assumindo que há alguma discordância quanto a estes actos serem executados em espaços públicos educativos, como lidar com a situação? Fará algum sentido proibir simplesmente o acto? Será a questão resolúvel e justificável por decreto? Será de referendar internamente a hipotética proibição do fumo nas escolas? Será possível decidir por consenso? Como deve ser feita e gerida a aplicação da putativa solução? Como devem ser as diversas vozes ouvidas? Que influência terá a discussão na solução a adoptar?
O que fazer com o problema do tabaco nas escolas? A escola como elemento formativo fundamental deveria ser exemplar na sua proibição do uso do tabaco no espaço escolar (à semelhança do que acontece com outras substâncias nocivas, como o álcool). Todavia, uma parte interessa na matéria – os professores funcionários e alunos fumadores – defende o direito a fumar o seu cigarro. Por esta razão a simples proibição por lei – àlias já existente no nosso país – tem-se revelado ineficaz, talvez por ser pouco deliberativa, persistindo o problema de saber o que fazer. A questão tem elementos factuais: saber e divulgar os efeitos nocivos do tabaco; saber até que ponto fumar nas escolas em locais reservados para o efeito constituirá, ou não, um mau exemplo para os alunos. Mas também contém elementos morais: supondo que admitimos como razoável a existência de espaços reservados a fumadores, deverão os alunos ter o seu espaço reservado para fumarem? Se não porquê? Por serem menores? E os maiores de dezoito anos poderão fumar? E se sim onde? E se for de todo proibido fumar no espaço escolar, como resolver o problema dos fumadores inveterados? Negar-lhes a possibilidade de fumarem no local de trabalho não constituirá um atentado à liberdade e até à dignidade? O estado, e a escola como um todo, pode desejar proteger as pessoas, mas seria necessário discutir até que ponto queremos e aceitamos um estado paternalista e moralista que impõe às pessoas (aos professores e aos funcionários) comportamentos que elas não querem nem desejam para si, embora possam desejar para os outros. Não são raros os fumadores que defendem a tese do “faz o que eu digo, não faças o que faço”.
A democracia deliberativa não oferece uma solução. O que apresenta é uma forma de discutir a questão – com tempo para reflectir e de forma organizada – tentando fazer ouvir as razões de todas as partes (publicidade) e pedindo-lhes que justifiquem as suas ideias com razões que os outros possam aceitar (reciprocidade). A democracia deliberativa – uma vez que assume que as preferências das pessoas só podem ser alteradas através de um processo de deliberação mútua - não pode apresentar a resposta. A ideia é por as pessoas a pensar e a discutir, não apenas o que é melhor para si, mas o que é melhor para o grupo (neste caso a escola) como um todo. Devem, para isso, participar na tomada de decisão, na qual partilham as suas ideias, discutem em conjunto e, com alguma sorte, poderão atingir um acordo generalizado. A ideia principal é que os argumentos apresentados por cada uma das partes serão, de alguma forma, limitados pelo desejo de alcançar um acordo, o que requer que as partes recorram a princípios gerais em vez de apelarem simplesmente ao seu interesse particular. Deste modo, a discussão, e não a votação, torna-se o atributo principal das decisões democráticas. Por isso, a concepção de um espaço e de um tempo para as pessoas poderem falar e discutir em grupo sobre os assuntos que lhes dizem respeito, e antes das decisões serem tomadas, torna-se fundamental.

Luís Filipe Bettencourt (2005)

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