sábado, 14 de julho de 2007

SEBALD, Austerlitz. De que fala este livro?

O livro de Sebald constituiu uma visão não mostrada da Shoah escrita por um autor alemão, ainda que tendo vivido os últimos trinta anos da sua vida no Reino Unido. Estarmos perante um alemão talvez não seja despiciendo em relação ao facto de a obra em análise falar da Shoah sem nunca a mencionar de forma aberta. Sebald não consegue falar directamente desse horror – na realidade julga ser impossível escrever sobre os campos de concentração – o que coloca os seus livros num campo de ambiguidade criticável; de algum modo o assunto dos seus livros é sempre o “lager” do qual ele nunca fala directamente. Alguns críticos mais ferozes dizem que o autor se limita a fazer rendilhados em torno de um tema demasiado sério para isso. Uma das formas que encontrei para dar conta dessa ambiguidade foi destacar no livro certas passagens que, se retiradas do seu contexto, parecem estar a falar, ou a descrever, aspectos do “lager” quando na realidade não estão, mas afinal estão! Aparte a riqueza literária da ambiguidade, o jogo parece também transportar o fantasma do relativismo dos acontecimentos em causa. Se é possível encontrar certas passagens no livro que literalmente descrevem o “lager” mas que no contexto do livro se aplicam a outros fenómenos, não poderemos nós concluir pela importância relativa desses acontecimentos?
Por exemplo:

“… rodopio encrespado de vapor que foi recobrindo gradualmente todo o chão de pedra, tornando-se cada vez mais denso e crescendo de forma visível até que apenas metade de nós próprios emergimos dele e em breve poderia até cortar-nos a respiração.” (p.136, Modern Library, p.128 edição portuguesa)
[1]

Esta passagem poderia ser lida como uma descrição do que se passou nas câmaras de gás quando as pequenas bolinhas verdes eram lançadas pelos alemães através de buracos existentes nos telhados e caíam no chão onde estavam as vítimas indefesas, mas, na realidade, trata-se da descrição da chegada de uma neblina.

Outra passagem:

“… um campo, de cor verde-veneno, mais atrás um complexo petroquímico já meio devorado pela ferrugem, de cujas torres e chaminés saem nuvens de fumo branco, como deve ter acontecido sem cessar e há muitos anos.” (186, 174)

Ou ainda o sonho no qual Austerlitz vê:

“… altas chaminés encimadas por penachos imóveis de fumo branco recortadas contra as cores doentias que raiavam o céu ocidental.” (203, 189)

Talvez até por causa do nevoeiro em que o tema está envolto, as primeiras imagens do livro nos forneçam algumas pistas acerca do labirinto para onde somos lançados ao iniciar a leitura. Falando na primeira pessoa, o narrador recorda uma das suas viagens a Antuérpia e o modo como uma dor de cabeça e pensamentos inquietantes o fizeram refugiar-se no zoo da cidade tendo, por fim, visitado o Nocturama (um parte do jardim ocupada por animais para quem o dia é noite e a noite é dia). Este conceito, por si só, com as suas ligações à escuridão, à ilusão, ao espectáculo que é viver e ver, bastaria para introduzir alguns dos temas a destacar. Mas paremos nas quatro primeiras imagens. Que estatuto têm as imagens (fotografias, desenhos, plantas, fotogramas) nos livros de Sebald? Serão apenas ilustrações? Muitas sê-lo-ão. Mas outras, como as quatro primeiras, parecem funcionar como um elemento textual – a imagem como texto, como narrativa não separada do texto, como não simplesmente ilustrativa – que permite libertar no leitor, em forma de sortilégio, outras ligações, significados, memórias, conhecimentos, interrogações, etc, que de outro modo não aconteceriam. Essas primeiras imagens, suscitadas pelo nocturama, fazem emergir a dificuldade de falar de certos temas precisamente porque eles estão presos no passado mas, simultaneamente, e ligando com os olhos grandes dos animais nocturnos devemos, para descobrir quem somos, perscrutar esse passado escuro:

“… olhos excepcionalmente grandes e esse olhar fixo, inquiridor que se encontra em determinados pintores e filósofos que, com recurso apenas à pura observação e ao puro pensamento, procuram penetrar as trevas que nos cercam .” (p.4-5, 6-7)
Repare-se como a semelhança entre os dois pares de olhos dos humanos (Wittgenstein – os olhos deste filósofo servem-me também para recordar a frase que tudo tem a ver com o conteúdo deste livro: “acerca daquilo que não se pode falar, tem que se ficar em silêncio") e os dois pares de olhos dos animais só é dada através do nosso olhar sobre as fotografias dos olhos deles e como a força e a riqueza da analogia acontece quando essa visão se liga com a sugestão de “penetrar as trevas que nos cercam”.
O tema é, pois, o humano do pós-holocausto que, como os viajantes involuntários dos comboios da Europa nazi – veja-se como o narrador chega de comboio à estação de Antuérpia e é “tomado de um mal-estar” – não sabe onde está, quem é ou para onde vai.



[1] A edição portuguesa serviu de texto comparativo para as traduções aqui apresentadas, embora contenha alguns erros de tradução e uma revisão apressada. É o caso da expressão alemã “das arsanische grauen” que parece ser uma invenção do autor e que, em inglês, aparece como “arsanical horror” (p. 63) enquanto em português surge, erradamente, como “terror de Ars” (sic, p.60) o que remeteria para a região de Ars e, hipoteticamente para o cura de Ars constituindo uma leitura demasiado forçada da expressão “arsanische” que parece ter uma mais evidente ligação com o termo “arsénico” e não com o termo “Ars”. Para além disso, as imagens são de má qualidade comparativamente com a edição inglesa e surgem muitas vezes demasiado afastadas da página em que o autor as sugere ou descreve.


(LFB)

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Psicofisiologia

Paixões = estados emocionais patológicos/doentios; de intensidade exagerada; pouco adaptativos.

D.O.

sábado, 2 de junho de 2007

O futuro de uma ilusão


Vinte e sete anos após a publicação de A Interpretação dos Sonhos – obra, considerada por muitos como uma das mais influentes do século XX – Freud propõe algo não menos prodigioso: uma visão sobre o passado, presente e futuro da civilização.
E não o faz sem antes alertar para os perigos que todo o homem enfrenta perante tal empreendimento: a perigosa influência nas suas posições das suas expectativas, experiências
de vida e temperamento, bem como a dificuldade de se distanciar do presente em que está inevitavelmente imerso de modo a delinear de forma mais objectiva os seus argumentos.

Começa então por definir civilização como “tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima da sua condição animal e difere da vida dos [restantes] animais”, i.e., as conquistas do homem sobre a natureza no sentido de controlá-la extrair dela riqueza e ainda as normas que foi construindo de modo a “regular” as relações humanas, especialmente no que toca à distribuição da riqueza disponível. Apesar de considerar grandiosas as conquistas humanas sobre a natureza, Freud revela-se mais pessimista no que concerne aos assuntos humanos: defende que, devido ao predomínio das disposições instintivas sobre o intelecto, todo o indivíduo é virtualmente um inimigo da civilização pelo que esta apenas se mantém com base na coerção. Isto conduz inevitavelmente a estados de privação e de insatisfação, sobretudo das massas (mais oprimidas).

Mas como poderá a civilização compensá-las por tal sofrimento? Através dos ideais, da arte e da religião. Os primeiros porque permitem uma espécie de satisfação narcísica quando o indivíduo compara a sua cultura (que considera superior) às demais. A arte, embora acessível apenas às minorias, por proporcionar a sublimação dos impulsos e consolidar sentimentos de identificação com a cultura. E a religião, que considerada pelo autor como “o mais importante [e valorizado] inventário psíquico de uma civilização”, constitui-se como o principal foco da presente obra. É no confronto com um opositor (personagem que cria de modo a proporcionar uma acesa discussão) que Freud se compromete a responder, entre outras, à pergunta Qual o valor das Ideias Religiosas? Dedica-se primeiramente à explicação da origem de Deus com base na interacção entre as necessidades/desejos da civilização – humanização da natureza, atribuindo-lhe um sistema de significações humanas para melhor poder compreendê-la e “influenciá-la”; fazer face ao destino cruel de privações e sobretudo à angústia da inevitável morte e ainda “vigiar os preceitos da civilização” – e necessidades/desejos de natureza mais individual – transferir conflitos da infância (ligados ao complexo edipiano) para a vida adulta com uma solução universalmente aceite: a figura paterna, protectora, amada e temida revela-se na figura do Pai, cuja força imensa é temida, mas que protege contra os perigos do mundo.

Embora apresentadas ao indivíduo como revelações transmitidas por Deus ao longo das gerações (ignorando qualquer aspecto histórico da sua evolução), para Freud o seu “valor civilizacional real” não deriva da sua santidade, mas sim do seu papel enquanto importantes vias para a coerção dos instintos primordiais (ex: incesto, assassínio), formando, portanto, um importante sistema de “regras-veículo” da civilização. O nível moral dos seus membros corresponde ao ponto até ao qual as regras são interiorizadas. Contudo, Freud define-as como ilusões, uma vez que não sendo produto de raciocínio sistemático e/ou de verificação empírica, resultam – exclusivamente - dos mais antigos e prementes desejos da humanidade, advindo daí a sua força. Argumenta que, apesar da impossibilidade de serem refutadas ou confirmadas, são talvez os predicados civilizacionais mais decisivos na definição da relação humana com o mundo e ao mesmo tempo mais contraditórios e menos comprovados, não tendo qualquer fundamento racional e que, portanto, se não forem comparáveis a delírios, representam para a civilização pelo menos um “problema psicológico grave”.

E qual a solução para o problema? Dado a essência proibitiva da doutrina religiosa, reprimindo os instintos, mas ao mesmo tempo impedindo que dúvidas se levantem acerca dos seus axiomas, a educação religiosa precoce (dominante na época), conduzirá segundo o autor, a um futuro intelecto débil, uma vez que as ideias são transmitidas numa idade em que a criança não é capaz de reflectir adequadamente acerca do que lhe é apresentado. Não obstante admitir a possibilidade de estar ele próprio a perseguir uma ilusão ( “talvez o efeito da proibição religiosa no pensamento não seja tão grave, talvez a natureza humana pudesse ter evoluído no memos sentido”), Freud propõe uma educação não religiosa (principal objectivo da obra). É verdade: o individuo terá de enfrentar uma situação difícil, terá de admitir para si todo o seu angustiante desamparo, mas o “homem não pode ser criança para sempre” terá de fazer melhor uso dos seus recursos – sobretudo dos intelectuais, terá de “chamar à terra” todos os pressupostos civilizacionais e despojá-los de toda a santidade; mas não estará completamente desamparado: a Ciência, com base no intelecto humano e na experiência, pode conseguir um certo conhecimento da realidade que por sua vez conferirá ao homem maior poder na organização da sua vida.

Apesar do imenso número de questões por responder, dos problemas (epistemológicos, metodológicos…) que possam surgir, as suas numerosas conquistas não são uma ilusão. Para Freud, a ciência afigura-se portanto como o caminho no qual a civilização poderá alcançar o “estado psicológico ideal”: a primazia do intelecto sobre os instintos.


D.O.

quinta-feira, 17 de maio de 2007

A esquerda e a América

Bernard -Henri lévi (BHL), mimetizando a viajem que Alexis de Tocqueville fez em 1831/32 e que deu origem ao livro A democracia na América, fez aquilo que qualquer homem político deveria fazer: viajou pela América, observou, falou com os americanos e escreveu sobre a experiência. O resultado é o livro American Vertigo (que eu não li, baseio este texto apenas na entrevista que BHL deu ao Ípsilon de 4 de Maio).
BHL defende que todos os clichés que a esquerda europeia exibe à boca cheia sobre a América são falsos, ou então que as coisas são muitos mais complexas do que o anti-americanismo nos quer fazer crer. Vindas de um intelectual da esquerda francesa vale a pena reter algumas das suas muito discutíveis ideias:

1) catalogar a América de imperialista é uma ideia a rever (os imperialismo estiveram sempre na Europa, e foi contra eles que a nação americana se revoltou. O peso da tradição imperialista é uma coisa dos países europeus e não da América);

2) a América tem um sistema de saúde e de segurança social que é "uma mistura de público e privado";

3) a segregação racial nos estados do sul é, em grande parte, uma coisa do passado;

4) A América é materialista mas "é provavelmente o país mais religioso do mundo";

5) Guantánamo "é inadmissível (...) mas não é o Gulag", este significou "dezenas de milhões de mortos aquele algumas centenas de prisioneiros sem direitos, em alguns casos torturados";

6) a democracia liberal é boa para todos e é preciso derrubar os ditadores, o que faltou à América no Iraque foi "um consenso Internacional, aliados no terreno e um plano de reconstrução";

7) "O anti-americanismo é uma ideia [com origens] na extrema direita" europeia; é uma ideia fascista contra uma nação democrática; é grave que a esquerda actual o queira introduzir nos seus programas políticos porque transporta consigo os perigos do nacionalismo fascista baseado na "raça" e no "sangue";

8) A luta contra o terrorismo islâmico é uma luta política contra o fascismo de origem ideológica europeia e não uma luta religiosa (é simplista pensar que o terrorismo existe porque os terroristas, orientados por gente cheia de dinheiro, passam fome e são dominados pelo imperialismo americano).

(LFB)

sábado, 21 de abril de 2007

View of Antwerp with the Frozen Schelde by Lucas van Valckenborch

Adicionar legenda


Por sugestão de uma passagem do livro Austerlitz de W. G. Sebald (pp.13-14, Modern library), sobretudo relacionada com o pormenor da queda da senhora de vestido amarelo.

domingo, 1 de abril de 2007

tudo a evitar, se puder

Vi, por acaso ("prefiro não o fazer", mas não pude evitar), uns minutos da telenovela da TVI subsidiada por Carlos César com dinheiro público. Mas parece-me que vi o essencial. Actores que fazem um grande esforço para parecerem gente rica e séria. Não me apercebi do enredo, nem isso me interessa, mas vi uns a fazerem de empresários em S. Miguel. Por várias vezes, ouvi-os dizer uns aos outros: - Agora vou para Lisboa. - Agora vou a Lisboa. (sempre são seiscentas passagens!). E o "nosso" (como é tratado nalguns meios solidários) Zeca Medeiros no papel de actor de telenovela da TVI.

(LFB)

domingo, 25 de março de 2007

(LE)
Cuidado!
Não se confunda uma instituição de fins educativos com outra de fins puramente lucrativos.

sábado, 17 de março de 2007

E o problema nem sequer é se a programação da TVI é, em geral, recomendável. Eu acho que não é. No entanto, cada qual que escolha o que melhor lhe aprouver e a melhor forma de ocupar os seus tempos de ócio. Nas sociedades democráticas defende-se que cada um deve poder escolher uma concepção do bem e orientar-se por ela. O problema maior é se é aceitável aplicar dinheiros públicos em estações de TV privadas para que estas realizem telenovelas. Mesmo que daí venham lucros - o que no caso nem está garantido; quem garante que por causa de uma telenovela os hotéis açorianos vão deixar de estar às moscas? Para além disso, há muitas outras coisas que dariam muito dinheiro à região e nas quais não se investem dinheiros públicos, pelo menos descaradamente. Precisamente por serem imorais. Mas César e o seu governo parecem ter perdido toda a noção de moralidade política; trocaram-na pela economia.

(LFB)

quinta-feira, 15 de março de 2007

De uma ida ao novo bloco da Universidade dos Açores no Pico da Urze num ambiente TVI.

Em direcção a um conferência, proferida por Comandante de Fragata, sobre métodos de calcular a longitude nos séculos XVII e XVIII, passagem por corredores apertados e altos completamente forrados de azulejos 15 por 15 laranja vivo, e por escadarias e espaços de transição com paredes verde alface. No anfiteatro as cadeiras como objecto de tortura - é mais para ver do que para sentar e ouvir. Ou então, e mais provável, é não ter havido dinheiro para comprar cadeiras minimamente confortáveis. Sabe-se que o orçamento para a construção deste novo edifício foi cortado e que a obra foi sendo, por falta de dinheiro, adiada. Quanto às cores, elas denunciam a pobreza estética que muitos edifícios públicos novos insistem em exibir. Quem terá escolhido aquelas cores? E porquê? Será que algum arquitecto consegue justificar a compatibilidade entre um ambiente TVI (imediatista, agressivo, primário, atraente ao olhar passageiro, mas repulsivo ao olhar permanente, rapidamente degradável) e um ambiente académico (mediato, razoável, tendencialmente neutro, duradouro)? Ou terá sido um gesto político, mesmo que inconsciente, de dar um ar atraente a uma coisa nova, que rapidamente deixará de o ser? O mundo das aparências...

Carlos César, por decisão sua, dá 500 mil euros e 600 passagens na Sata à TVI e à "ilha dos amores" e considera a estação uma referência. Supõe-se que com esta afirmação César signifique apenas que esse é o canal que tem mais audiência em sua casa, tal como na casa da maioria dos portugueses. Assim como também é público que o canal preferido da mulher de Cavaco Silva é o Odisseia. A justificação de que o retorno será maior do que o investimento não é o que está em causa. A política não é só sobre dinheiro. Muito menos a política educativa que é vinculada através da televisão. Ao apoiar a TVI e ao referenciá-la como uma boa televisão, César diz aos açorianos que ver esse canal é bom. Mas é bom para quê e para quem?

(LFB)

domingo, 11 de fevereiro de 2007

  1. Gonçalo M. Tavares, Um Homem: Klaus Klump, p.117

    "(...) Os conhecimentos ouvem-se, mas para agir a capacidade de audição é praticamente desprezável. Porque agir é estar próximo das coisas e ouvir é estar afastado das coisas. Alguém que apenas ouve nunca será considerado um intruso no mundo, a Natureza não se sentirá ameaçada. Quem ouve poderá acumular conhecimentos, mas essa acumulação não lutará com a natureza. Esta resiste bem à inteligência, ao raciocínio e à memória do Homem: todas estas qualidades intelectuais são assuntos que dizem respeito exclusivamente ao mundo da cidade, e o que ameaça a natureza são as acções: os momentos em que os humanos abandonam a audição, e mesmo a linguagem do discurso, e passam a querer falar com o sentido do tacto: o único que pode alterar as coisas. Se os homens, mantendo a sua inteligência incorrupta, fossem seres imóveis, incapazes de qualquer movimento, seriam ainda hoje menos poderosos do que um único metro quadrado de terra espontâneo. Poderiam possuir um grau de aperfeiçoamento no pensamento abstracto, matemático e lógico, mas não deixariam de ser uma espécie secundária ao lado das outras: as possuidoras de movimento. Qualquer cão mesquinho mijaria nas pernas de um homem altamente inteligênte mas imóvel. (...)"

domingo, 31 de dezembro de 2006

"SHOAH" de Claude Lanzmann (1985)

9 horas e meia A VER COM ATENÇÃO

o filme é inevitável para se pensar o "acontecimento mais negro da História". 'Shoah' é o termo hebraico para 'catástrofe' e que passou a designar a tentativa de destruição dos judeus pelos nazis. Para alguns estudiosos é um termo mais adequado do que o termo 'Holocausto'. Este tem também o significado religioso de sacrifício pelo que o seu uso poderá ser ofensivo para as vítimas. Uma "obra de arte - e mesmo assim ser fidedigna" como um documentário (Lanzmann) - feita a partir de entrevistas a três grupos de pessoas: sobreviventes dos campos de concentração, testemunhas passivas e antigos nazis.
Lanzmann, ao entrevistar antigos nazis (a entrevista a Suchomel despertou-lhe tanto ódio que desejou "matá-lo com a câmara", Lanzmann, in Todorov, p.277), não se coíbe de os filmar sem eles saberem disso ou de não lhes garantir o anonimato (no exemplo que escolhi o controlo da gravação é feito a partir da Wolkswagen). Tem por isso sido criticado (veja-se Todorov, Facing the Extreme, pp. 271-278).

A principal preocupação de Lanzmann foi criar um objecto artístico que fosse capaz de recriar a verdade de um acontecimento histórico a partir dos testemunhos daqueles que nele participaram. Por isso não usa nenhuma imagem de arquivo e chega mesmo a afirmar que se descobri-se um filme dos campos de concentração destruia-o.
Lanzmann tem sido também acusado de "alguma manipulação" e instrumentalização dos entrevistados. Ele opta por continuar a filmar e incluir no filme aqueles momentos em que o entrevistado 'se vai abaixo' e afirma que não pode continuar. É o caso da entrevista a um barbeiro (a entrevista com o entrevistado a trabalhar na barbearia terá sido montada para que a recordação fosse o mais autêntica possível) que tinha o trabalho de cortar o cabelo às mulheres que já se encontravam dentro das câmaras de gás e completamente nuas. Ele, e mais uns tantos, deveriam fazer o serviço como se as mulheres fossem apenas tomar um duche. Este entrevistado fraqueja e diz não querer continuar no momento em que recorda o facto de ter encontrado a mulher de um amigo seu e de não lhe poder dizer que a sua vida estava no fim.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

The Isenheim Altarpiece, by Matthias GRÜNEWALD






Por sugestão de um dos contos de W. G. Sebald incluídos no livro: Os Emigrantes (Teorema).

sexta-feira, 24 de novembro de 2006

Lógica e Progresso

Como com todas as citações boas para serem usadas como epígrafes, muito haveria a dizer sobre a citação de Shaw. Uma primeira consideração seria dizer que o argumento:

1) o homem razoável adapta-se ao mundo
2) o homem não-razoável faz tudo para que seja o mundo a adaptar-se a ele
Logo, todo o progresso depende do homem não-razoável

constitui aquilo que os lógicos designam de entimema, uma vez que transporta consigo uma premissa escondida:

3) toda a mudança no mundo (fazer o mundo adaptar-se) é fonte de progresso.

Um das perguntas colocadas parece questionar se todos os homens não-razoáveis tentam mudar o mundo. Um possível solução, também ela algo silogística, seria afirmar que haverá alguns homens razoáveis que tentam mudar o mundo (será este o caso da ministra?), como haverá alguns homens não-razoáveis (por exemplo, aqueles que só são não-razoáveis em privado ou às escondidas ) que não tentam mudar o mundo público.

O problema do progresso é delicado. Há quem diga que depois
de Auschwitz - a que Shaw ainda assistiu (1856-1950) e certamente a pior mudança no mundo realizada por um não-razoável - não faz sentido falar de progresso e de que valores faz sentido falar ninguém sabe bem.

(LFB)

quinta-feira, 23 de novembro de 2006

"(...) all progress depends on the unreasonable man."

... on all unreasonable men?

quarta-feira, 22 de novembro de 2006

Aos que duvidam inconsequentemente

"The reasonable man adapts himself to the world; the unreasonable one persists in trying to adapt the world to himself. Therefore all progress depends on the unreasonable man."
George Bernard Shaw, Man and Superman (1903) "Maxims for Revolutionists"

Partindo desta premissa, deverá então, a nossa ministra da Educação, ser uma mulher razoável ou não?
(LE)

domingo, 29 de outubro de 2006

Apontamentos de um preceptor (1)

Da leitura da "constituição de Hipodamus":

1) na polis aristotélica andar armado seria uma condição necessária de cidadania?

2) deverá a polis oferecer "honras" aos que descobrem algo vantajoso para ela?
Aristóteles recomenda prudência. Os perigos são a introdução de informadores e a alteração inusitada das leis da politeia. A alteração das leis por si não é má, as razões é que podem ser. Por comparação com a medicina, a física e as artes (skill/tecnhe) em geral, onde a mudança (de métodos e de técnicas) é benéfica, somos levados a pensar que, uma vez a "cidadania (statesmanship/politiké) deve ser vista como uma destas" (1268b38), o mesmo se lhe aplica e até mesmo as leis escritas não devem ser imutáveis. Também aqui, como nas ciências, seria impossível "escrever toda a organização da politeia" (os princípios são gerais, as acções dependem de circunstâncias particulares).
Mas, de outro ponto de vista, diz-nos Aristóteles, que é preciso pesar a relação custos/benefícios entre o hábito de se mudar constantemente as leis e o valor da própria lei. É melhor ser tolerante para com os erros dos políticos do que ficar habituado à mudança constante das leis, pela razão de que isso enfraquece o poder da lei. Há uma diferença significativa entre a alteração das artes e a alteração das leis, estas só pelo hábito garantem obediência. Aristóteles termina com interrogações: todas as leis podem ser mudadas? E em todos os tipos de politeia? E quem deve realizar a mudança?

3) comentários de Strauss (pp. 17-20); o erro de Hipodamus foi querer compreender todas as coisas à luz da simplicidade das tríades, não prestando atenção "ao carácter peculiar das coisas políticas", nem percebendo que elas formam uma classe em si.
O facto de, no início do capítulo, Aristóteles fazer - pela única vez em todo o livro - alusões a boatos acerca da vida de Hipodamus e de expor o ridículo de "querer ser um perito em todas as coisas naturais" teria o razoável propósito de anunciar o referido erro. Não pode pois Hipodamus ser o fundador da filosofia política porque nunca chegou a colocar a questão 'o que é a política?'. E a sua ridicularização revela que a "filosofia política é mais questionável do que a filosofia em si" pois o primeiro filósofo foi ridicularizado por uma escrava bárbara e o suposto primeiro filósofo político foi ridicularizado por todos os "homens livres".

domingo, 22 de outubro de 2006

Apontamentos de um preceptor

Como iniciar o estudo da Política de Aristóteles?

lendo:

"Segue-se que a polis pertence à classe dos objectos que existem por natureza e que o homem é, por natureza, um animal político (politikón zôon). (...) animal político num sentido que as abelhas, ou todos os outros animais que vivem reunidos, não são". tr. de 1253a1-3, 1253a7-8, Aristotle, The Politics, (Penguin Classics).

Começando pela oposição entre Phusis/natureza/essência e nomos/lei/contingência, descubra-se, seguindo a orientação de Leo Strauss, o modo como Aristóteles valoriza e justifica o domínio da política (do homem político por natureza) e dá continuidade à crepuscular ciência política de Hipodamus.


Mas não é a política o domínio do contingente e a natureza o domínio do essencial?

Como pode a política ser natural?

Comece-se pelo livro II, viii, designado "a constituição de Hippodamus", 1267b22 até 1269a28, que foi o primeiro a pensar sobre a "melhor ordem política". A ordem natural?

Depois, livro III, x e xi, 1281a 16, b18, para perceber o porquê de "a mais fundamental discussão da Política, incluir aquilo que é quase um diálogo entre um oligarca e um democrata" (Strauss, p. 21)

sábado, 21 de outubro de 2006

Boas razões para estar em Lisboa


doclisboa, em particular a retrospectiva Amos Gitai
com "master class"


"(...) Falou em bombardeamento dos media. Vai começar a rodar uma ficção sobre a retirada de Gaza. Quando a retirada aconteceu, o que fez?

Nós, colectivamente, israelitas e palestinianos, temos colaborado – e uso esta palavra, que tem um sentido de "colaborador", deliberadamente – na intoxicação da nossa imagem. O que quer dizer que achamos que é útil para nós usar o nosso sofrimento, as nossas perdas como argumentos políticos. Criamos facilidades de acesso a todos estes terríveis sofrimentos dos dois lados. E a não ser que decidamos ser um pouco responsáveis, não andaremos para a frente. Somos parceiros nesta infindável "soap opera" das notícias. E as notícias são cínicas porque precisam das audiências. Nos seus gabinetes confortáveis de Jerusalém, receberão as bombas de Telavive ou de Gaza e irão montá-las de acordo com a redacção em Paris, Portugal, América, Palestina ou Israel querem. [sic]

Estou a falar de televisão, não da imprensa escrita. Nos anos 70 ou 80 a televisão teria aberto uma janela para compreendermos algo, agora é mero intertenimento.

O Médio Oriente, e especialmente o conflito israelo-palestiniano, consome dois terços de todas as notícias internacionais. Estamos habituados a que seja assim. Portanto, ninguém se rala com o Darfur, a Indonésia, a Tchetchénia.

O pico da última Intifada durou quatro anos. O pico da guerra da Jugoslávia durou quatro anos. Na Jugoslávia, 250 mil pessoas foram mortas, mulheres foram violadas, aldeias foram destruídas. Na Intifada, dos dois lados, três mil pessoas foram mortas. É muita gente, muitas biografias, mas não é um quarto de milhão. Nenhum palestiniano violou israelitas, nenhum israelita violou palestinianas, as duas sociedades mantêm fronteiras invisíveis que ainda não foram atravessadas. E se formos por qualquer rua da Europa perguntar qual é a guerra mais terrível, a jugoslava ou a israelo-palestiniana, em termos de vítimas, toda a gente dirá que é a israelo-palestiniana.

Qual é a sua explicação para isso?

Em parte porque a Europa se sente culpada em relação aos judeus, aos acontecimentos da II guerra e quer que os judeus sejam piores do que experimentaram nos anos 40. (...)"

(Amos Gitai excerto da entrevista ao Y, jornal Público, 20 Outubro 2006)

segunda-feira, 11 de setembro de 2006

"... Qualquer que tenha sido a história passada e presente das relações do Ocidente com o resto do mundo, é uma falácia pretender que os pecados desta história justificam (versão forte, que diz o que quer dizer) ou permitem compreender (versão fraca, no fundo ininteligível: compreender seria qualquer coisa como uma desculpa mole) o que se está a passar. E é uma falácia a vários títulos, sem ter sequer de kantianamente se lembrar que nunca o mal que me é feito pode justificar o mal que faço. O que se está a passar e a construir, e nos ameaça aqui onde estamos, onde cada um de nós está, é uma frente de ódio que inaugura algo de inédito. Dando-se misturadamente com coisas velhas em que é difícil distinguir causas e efeitos, em que ninguém tem completamente culpa porque todos têm alguma ou muita razão - estou antes de tudo mais a pensar, evidentemente, no conflito entre israelitas e palestinianos -, aquilo que desde há alguns anos irrompe e é radicalmente novo é a rejeição sem apelo, e sem quartel, da sociedade livre ocidental. (...) (p.228) "...estou certo de que, face ao terrorismo, os governos ocidentais ficarão eternamente agradecidos a quem for capaz de lhes ensinar a maneira adequada de conciliar plena liberdade e segurança - a sua, e a minha. Será talvez pathos de mau gosto mas não consigo evitar pensar que se a polícia italiana não tivesse controlado, provavelmente ilegalmente, as conversas dos telefones dos terroristas - foi por esse meio que os descobriram -, eu poderia neste momento estar debaixo da terra. (...) Por fim, há excelentes razões - pelo menos! - para presumir que as limitações às liberdades terminarão mal a guerra teminar, como aconteceu depois das duas guerras mundiais do século xx. Obviamente. Estejamos descansados, comemoremos em liberdade o oitavo centenário da Magna Carta em 2015! Entre parênteses, permito-me recordar (será ainda de mau gosto?) que há cem mil cruzes brancas americanas nos cemitérios da costa francesa do desembarque. Porque não são estas evidências reconhecidas, e menos ainda assumidas? A resposta só pode ser uma, e vejo nela a manifestação mais forte do niilismo. É que no fundo não se quer aceitar que a guerra nos foi imposta - e que estamos em guerra.(...)" Fernando Gil, "dois artigos", em Gil, Tunhas e Cohn, Impasses, Europa-América, 2003, pp.236-237.