segunda-feira, 10 de novembro de 2008
quarta-feira, 5 de novembro de 2008
OBAMA

"Deixai que venham as consequências, isso não me importa. Nenhum homem pode sofrer em demasia, nem tombar demasiado depressa, se sofrer ou se tombar em defesa das liberdades e da Constituição do seu país".
Daniel Webster, in John F. Kennedy, Retratos de Coragem (Profiles in Courage), Esfera do Caos, p.109.
quarta-feira, 1 de outubro de 2008
ROMA de Steven Saylor
domingo, 28 de setembro de 2008
domingo, 3 de agosto de 2008
Cronica de uma longa viagem
Chegada a Boston: finalmente o solo americano. Ao primeiro paco, sinto-me inebriada por aquele cheiro a EUA (talvez conhecido de alguns). Ao segundo, vislumbro num ecra a quase caricatural face de Larry King que, como seria de esperar diante do calendario politico, parecia discutir qualquer pormenor da aguerrida campanha eleitoral que se vive por estes lados.
Sou muito bem recebida por um bem disposto guarda fronteirico (sera esta a sua profissao?) que muito rapidamente me pergunta o porque da minha viagem, com quem, onde e por quanto tempo vou ficar; pede todas as minhas impressoes digitais; regista a minha imagem atraves de uma maquina fotografica. Mas isto sao os pormenores: o interessante foi a conversa na qual comento que o sistema (de controlo froteirico) evoluiu muito desde que ca estive da ultima vez; ao que ele me responde "It's just smoking mirrors". O que interessa nao sera entao controlar efectivamente mas mostrar que se tem tudo controlado. Esclareceu ainda que ja alguem respondeu 'sim' a famosa 'pergunta terrorista'. Fiquei muito mais aliviada.
Ainda em Boston tive o prazer de ouvir ao vivo o sotaque local, semelhante ao de Woody Allen.
A caminho de Oakland, paragem em Denver. Viagem: 4:30h.
Conclui que os americanos (a UNITED) conseguem ser mais forretas que a SATA, pois que nao serviram qualquer alimento solido durante a longa viagem.
Denver - Oakland
Os americanos sao realmente um espanto!!! Um pais que produz coisas como um 'Keep your distance bug catcher!' merece imediatamente o meu mais profundo respeito.
No proximo capitulo, a minha percepcao acerca da campanha presidencial.
(P.S. Devido a constrangimentos informaticos, nao foi possivel apresentar os acentos e cedilhas contestados pela lingua portuguesa)
quarta-feira, 16 de julho de 2008
segunda-feira, 23 de junho de 2008
Três ideias liberais e uma relação contingente entre liberalismo e democracia
Em primeiro lugar temos a tese do ‘atomismo individual’ (Holmes, 1993, p. xii): a sociedade é constituída por indivíduos autónomos com interesses, desejos e crenças próprios (formados em privado e muitas vezes incompatíveis com os interesses de outros indivíduos), e esses mesmos indivíduos são os únicos com direito de se prenunciar sobre os seus interesses e suas implicações. Acredita-se que os indivíduos são racionais, no sentido de poder escolher os meios para realizarem os fins que escolheram; são livres, no sentido de poderem escolher a sua própria concepção do bem; e são responsáveis pelas suas acções, no sentido de por elas responderem. Ao conjunto de indivíduos com interesses, desejos e crenças muito diversificados pode atribuir-se a designação de sociedade plural. Esta tese é, como veremos, negada, ou alterada, pela democracia deliberativa.
A 2ª tese liberal é expressa pela ideia do indivíduo anteceder a formação do social e do político; antes de mais somos indivíduos concretos e definidos, só por contingência vivemos em sociedade e participamos na tomada de decisões políticas. A política justifica-se pela necessidade de regular, por exemplo através de um conjunto de regras norteadas por uma constituição, os conflitos de interesses que possam existir dentro da sociedade plural. Para impedir que um indivíduo, ou grupo de indivíduos, tiranize os outros através da imposição da sua concepção de bem, é necessário estabelecer: (i) um conjunto de direitos que protegem os indivíduos do estado e dos outros cidadãos; (ii) um conjunto de obrigações relativas ao respeito por esses direitos; e (iii) um conjunto de deveres para com o governo que é a garantia daqueles direitos (Dryzek, 2002, p.9). Esta tese em conjunção com a primeira, pode ser usada para explicar a distância e o desinteresse político dos indivíduos nas democracias ocidentais. A constatação deste facto, pode justificar a exigência – por parte da democracia deliberativa - de uma empenhada participação política. Participação esta que seria, de certa forma, negligenciada e potenciada pelo liberalismo.
A 3ª tese liberal estabelece a primazia do direito em relação ao bem. O indivíduo ganha uma protecção de direito em relação a concepção de bem que a comunidade possa ter. Por isso, toda a imposição moral que dessa concepção derive deve ser considerada ilegítima. Em termos políticos os interesses da sociedade com um todo, ou de um grupo de indivíduos, não têm mais valor do que os interesses de um único indivíduo. Anseia-se mais pelo pluralismo político – estabelecer uma ordem política onde as diferenças morais e materiais possam coexistir; do que pelo universalismo – encontrar a verdade acerca do que é o melhor para todos. Outra forma de dizer isto – porventura mais rawlsiana (veja-se Rawls, 1996, pp. 173-176)[3] – é afirmando que se pretende encontrar condições de separação entre a política – encontrar uma concepção política de justiça que se aplique, através da estruturação das principais instituições políticas, apenas à vida política dos indivíduos e que seja aceite por todos independentemente das doutrinas inclusivas que defendam; e a moral – entendida como o conjunto das várias e incompatíveis doutrinas acerca do bem individual. Esta separação não implica que a esfera política seja moralmente neutra, pelo contrário ela inclui ideias morais liberais muito importantes, como a garantia de direitos e liberdades, a separação de poderes, a discussão e avaliação pública de ideias políticas. Quer dizer que a concepção política, embora não sendo uma doutrina inclusiva, é também normativa e tem “um ideal intrínseco” moral baseado naquelas ideias (Rawls, 1996, p.xliv).
Dado que nenhuma destas teses faz referência à democracia como forma de justificação e controlo do poder através de uma escolha popular feita entre cidadãos iguais, podemos facilmente afirmar que o liberalismo não tem que ser democrático e que até se pode dizer que ele surge para proteger a liberdade dos cidadãos de alguns perigos que podem resultar de maiorias democráticas opressivas. (Historicamente o liberalismo nasceu separado da democracia e só no séc. XX se introduziu o conceito de ‘democracia liberal’.)
NOTAS:
[1] Sobre as várias diferenças e discordâncias que existem entre as doutrinas liberais veja-se a Introdução e o 1º capítulo do livro de Stephen Holmes, Passions & Constraint, Chicago U. P., 1995.
[2] Que são diferentes das sociedades liberais, por vezes a não-distinção entre sociedades liberais e doutrinas liberais tem levado ao surgimento de confusões e de críticas incorrectas. Cf. Holmes, 1993, p.xiv-xvi.
[3] Pretendo apenas apresentar três ideias liberais que suportam a democracia constitucional deliberativa liberal. Sendo que a ideia de consenso sobreponível a que recorro é apenas introduzida como um exemplo decorrente da terceira tese liberal. Ainda que eu faça referência a Rawls, não pretendo apresentar a definição da concepção liberal da justiça como equidade, nem explicar a coexistência, nas sociedades democráticas mais ou menos razoáveis, de diferentes concepções liberais acerca da justiça (cf. Rawls, 1996, p.xlviii).
referências bilbiográficas:
HOLMES, Stephen, (1993) The Anatomy of Antiliberalism, Harvard U. P.;
HOLMES, Stephen, (1995) Passions & Constraint, Chicago U. P.;
RAWLS, John, (1996, paperback edition) Political Liberalism, New York, Columbia University Press.
terça-feira, 17 de junho de 2008
A democracia deliberativa e a educação
A ideia fundamental da democracia deliberativa é a reciprocidade entre indivíduos livres e iguais. A tese é que, numa democracia, os cidadãos, e os seus representantes, devem apresentar, uns aos outros, justificação pelas normas a que, colectivamente, estão submetidos. Deste ponto de vista, uma democracia é deliberativa na medida em que os cidadãos e os seus representantes responsáveis oferecem uns aos outros razões moralmente defensáveis para leis que a todos obrigam, num processo contínuo de justificação mútua.
Uma democracia não deliberativa é aquela democracia que trata os seus cidadãos apenas como objecto da legislação, apenas como sujeitos passivos a governar, em vez de os encarar como cidadãos que fazem parte da governação através da aceitação ou rejeição das razões que eles e os seus representantes apresentam para justificar as leis e as políticas que a todos dizem respeito.
A democracia deliberativa sublinha a importância de uma educação pública que desenvolva, nos educandos e nos educadores, as capacidades conducentes a uma futura deliberação entre cidadãos livres e iguais.
Deste ponto de vista, uma escola será deliberativa na medida em que os seus agentes e os seus representantes responsáveis oferecem uns aos outros razões moralmente defensáveis para as regras que todos devem seguir.
2. UM CASO PRÁTICO: FUMAR, OU NÃO FUMAR, NAS ESCOLAS?
Imagine-se uma escola secundária onde alguns professores e alguns funcionários fumam cigarros na sala de fumadores, e alguns alunos fumam cigarros nos espaços exteriores da escola. Assumindo que há alguma discordância quanto a estes actos serem executados em espaços públicos educativos, como lidar com a situação? Fará algum sentido proibir simplesmente o acto? Será a questão resolúvel e justificável por decreto? Será de referendar internamente a hipotética proibição do fumo nas escolas? Será possível decidir por consenso? Como deve ser feita e gerida a aplicação da putativa solução? Como devem ser as diversas vozes ouvidas? Que influência terá a discussão na solução a adoptar?
O que fazer com o problema do tabaco nas escolas? A escola como elemento formativo fundamental deveria ser exemplar na sua proibição do uso do tabaco no espaço escolar (à semelhança do que acontece com outras substâncias nocivas, como o álcool). Todavia, uma parte interessa na matéria – os professores funcionários e alunos fumadores – defende o direito a fumar o seu cigarro. Por esta razão a simples proibição por lei – àlias já existente no nosso país – tem-se revelado ineficaz, talvez por ser pouco deliberativa, persistindo o problema de saber o que fazer. A questão tem elementos factuais: saber e divulgar os efeitos nocivos do tabaco; saber até que ponto fumar nas escolas em locais reservados para o efeito constituirá, ou não, um mau exemplo para os alunos. Mas também contém elementos morais: supondo que admitimos como razoável a existência de espaços reservados a fumadores, deverão os alunos ter o seu espaço reservado para fumarem? Se não porquê? Por serem menores? E os maiores de dezoito anos poderão fumar? E se sim onde? E se for de todo proibido fumar no espaço escolar, como resolver o problema dos fumadores inveterados? Negar-lhes a possibilidade de fumarem no local de trabalho não constituirá um atentado à liberdade e até à dignidade? O estado, e a escola como um todo, pode desejar proteger as pessoas, mas seria necessário discutir até que ponto queremos e aceitamos um estado paternalista e moralista que impõe às pessoas (aos professores e aos funcionários) comportamentos que elas não querem nem desejam para si, embora possam desejar para os outros. Não são raros os fumadores que defendem a tese do “faz o que eu digo, não faças o que faço”.
A democracia deliberativa não oferece uma solução. O que apresenta é uma forma de discutir a questão – com tempo para reflectir e de forma organizada – tentando fazer ouvir as razões de todas as partes (publicidade) e pedindo-lhes que justifiquem as suas ideias com razões que os outros possam aceitar (reciprocidade). A democracia deliberativa – uma vez que assume que as preferências das pessoas só podem ser alteradas através de um processo de deliberação mútua - não pode apresentar a resposta. A ideia é por as pessoas a pensar e a discutir, não apenas o que é melhor para si, mas o que é melhor para o grupo (neste caso a escola) como um todo. Devem, para isso, participar na tomada de decisão, na qual partilham as suas ideias, discutem em conjunto e, com alguma sorte, poderão atingir um acordo generalizado. A ideia principal é que os argumentos apresentados por cada uma das partes serão, de alguma forma, limitados pelo desejo de alcançar um acordo, o que requer que as partes recorram a princípios gerais em vez de apelarem simplesmente ao seu interesse particular. Deste modo, a discussão, e não a votação, torna-se o atributo principal das decisões democráticas. Por isso, a concepção de um espaço e de um tempo para as pessoas poderem falar e discutir em grupo sobre os assuntos que lhes dizem respeito, e antes das decisões serem tomadas, torna-se fundamental.
UMA DEFINIÇÃO MÍNIMA DE DEMOCRACIA.
Jornal Público, Sexta-feira, 26 de Setembro de 2003
O poder como opressão: uma introdução a Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell.
Na primeira parte, Orwell dá-nos uma visão do mundo onde Winston – a personagem principal – vive imerso e sob total controlo. Winston e os demais habitantes de Oceânia vivem quase totalmente controlados pelo telecrã; nalgumas coisas tão parecido coma a TV do nosso mundo mas que, ao contrário desta, transmite e capta imagens. O telecrã é um dos meios privilegiados para dar corpo ao Big Brother, essa figura que representa a unidade e, simultaneamente, os perigos que ela contém: “(…) uma nação de guerreiros e fanáticos marchando em frente na mais perfeita unidade, pensando todos a mesma trezentos milhões com caras iguais (Orwell, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, Antígona, 1991, p.8o)”. Winston consegue encontrar um canto do seu quarto que talvez não seja captado e aí escreve o seu diário secreto. O pensamento surge como forma de libertação, incluindo o sonho/pesadelo que na obra é outra das formas libertadoras a que Winston recorre. Ele sonha com a sua mãe e irmã, sonha com o tempo antes da guerra, sonha com um outro espaço onde tudo seria mais belo e mais verdadeiro.
As pessoas vivem controladas pelas crianças que, tendo sido desde muito cedo educadas para denunciar os crime-pensantes (a verdade, independentemente das consequências, é das crianças), estão sempre prontas a apontar um suspeito. Controlados também pelas pessoas que se encontram à sua volta. Qualquer um pode denunciar outro e, por isso, qualquer um pode ser denunciado. Aqui nunca se sabe em quem confiar. Winston dúvida de Júlia e chega a desejar matá-la. Depois ama-a e deseja nunca traí-la. Winston confia em O’Brien e pensa, sem nenhuma justificação plausível que não “secretos devaneios, baseados em sonhos” que ele é também um “conspirador político” (174). Depositando a sua confiança num camarada confessa-se, sem saber, ao seu executor (na 3ª parte O’Brien usará essas mesmas palavras de Winston para lhe mostrar que, ao contrário do que afirma, ele não é nenhum anjo, cf. pp. 177 e 271):
“(…) somos inimigos do Partido. Não acreditamos nos princípios do SOCING. Somos crimepensantes. E também somos adúlteros. Conto-te isto para ficarmos à tua mercê. Se quiseres que aprofundemos o compromisso, estamos ao teu dispor.” (175)
Num dos momentos mais irónicos do livro:
“Estão dispostos a enganar, falsificar, fazer chantagem, corromper o espírito das crianças, distribuir drogas que provoquem dependência, fomentar a prostituição, espalhar doenças venéreas… a fazer tudo o que seja susceptível de desmoralizar e enfraquecer o poder político?”
A resposta de Winston é sim. E está pronto para muito mais, desde maltratar crianças até à mutilação do corpo e ao suicídio; ambos estão prontos para tudo. Até, se tal for necessário, obter uma nova identidade. O leitor não poderá deixar de se interrogar sobre o que distingue então Winston do seu carrasco. A diferença está em que um é capaz de fazer tudo para manipular e controlar as pessoas (o poder pelo poder) e Winston é capaz de fazer tudo para acabar com o partido (o poder pela liberdade). São iguais, do ponto de vista das consequências, Do ponto de vista dos ideais não podemos, tal como Winston não pode, aceitar o totalitarismo. Compreendemos até que se possam realizar crimes para cumprir esse objectivo maior. Haver gente, como Winston e Júlia, capaz de realizar todos esses actos transmite-nos alguma segurança, pois significa a afirmação de que, em vez da resignação silenciosa, a luta contra o grande ditador é sempre possível. Felizmente, na vida real e no livro, nem todos são colaboradores. Winston e Júlia só não estão dispostos a separarem-se definitivamente. Júlia é muito mais assertiva na sua resposta. O amor como uma das poucas coisas autênticas a que ambos se podem agarrar. No fim da história caberá a cada leitor saber até que ponto é esse sentimento autêntico. Controlados também pelo passado, pela ausência de memórias fidedignas; todo o passado é completa e diariamente alterado para servir os propósitos do partido. Controlados pela guerra constante. Controlados pela própria língua que, em fase de substituição pela novilingua, deixará de ser uma forma de riqueza e diversidade. A novilingua, limitando o número de palavras, controla e limita a possibilidade de certos pensamentos serem sequer concebidos. Haverá alguma forma de sair dessa prisão?
Na primeira parte é-nos também dada uma visão estratificada da sociedade. Uma sociedade dividida em três grupos: o partido interno – os seus membros viviam melhor do que os outros, vestiam castanho e eram responsáveis privilegiados. Eram, por exemplo, os únicos que podiam desligar, ainda que só por alguns minutos, o telecrã. O partido, composto por funcionários que vestiam de azul e que mantinham a grande máquina torturante em funcionamento. E, por último, os proles que vivem à margem do partido. Vivem na pobreza e na ignorância, é esta a forma que o partido tem de os controlar. Winston chega a acreditar que a salvação só poderá estar nos proles, só eles poderão rebelar-se contra as forças agonizantes da sociedade totalitária. Não é nada claro que assim seja até porque é um prole que denuncia Winston e Julia à polícia do pensamento. A fome e a ignorância sempre geraram bons colaboradores.
A segunda parte, em contraste total com a primeira, acontece sob o signo da luz, da beleza, da esperança e do sonho/realidade. Da escuridão, da fealdade, da resignação e da irrealidade – num certo sentido, tudo é irreal em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, ou não será? – passamos para a luz. Através da descoberta do amor, amante e amado são levados a acreditar que a única verdade possível está nos sentimentos, no coração, nos instintos mais básicos que o Partido tão veementemente tenta suprimir. O amor parental não é permitido – os filhos são separados dos pais; e existe uma forte repressão sexual (só a prostituição é tolerada por ser uma forma de escape e ao mesmo tempo uma forma de descobrir quem tem problemas com os seus instintos). É nos capítulos centrais da 2ª parte que o leitor é levado, por um lado, a crer que alguma saída há-de ser possível para Winston e Julia e que alguma saída há-de ser possível para a própria situação em que cada um de nós, efémeros leitores, se encontra; por muito boa que seja, terá sempre algo de irreal, de manipulado e de opressivo. Veja-se, para substanciar a crença na saída, o capítulo 8, onde sabemos que “estamos sós” (174) o que não deixa de ser surpreendente vindo de O´Brien, o homem em quem eles depositam confiança e onde se afirma que “a nossa única vida autêntica está no futuro” (181).
Por outro lado, o leitor é também colocado perante a pior hipótese: a de não haver saída. No capítulo 5, várias hipóteses são colocadas perante o acto de liberdade que ambos desejam realizar – o de se encontrarem secretamente, negando deste modo todos os postulados da sociedade tal como ela foi apresentada na primeira parte. Júlia acaba por dizer: “o que me interessa somos nós” (161); tese subjectivista que em qualquer tempo e em qualquer situação encontrará sempre os seus seguidores. A ideia de que “só os sentimentos contam” deixa os filósofos estarrecidos de tão crentes que são no poder da razão, na universalidade da verdade e na contingência dos sentidos. Nestas páginas centrais do livro há uma inversão de categorias – o irreal e fugidio torna-se o mais real e duradouro. Enquanto o mundo que os rodeia e as suas categorias foram já transformados na maior das farsas, os sonhos de Winston tornam-se realidade; o que de mais verdadeiro há na sua história pessoal. Contudo, ele sabe – são também os seus sonhos o veículo dessa revelação –e confessa-o a Júlia, que perante situações de miséria extrema, como as resultantes da fome e da guerra como as que ele enquanto criança teve que suportar, é o egoísmo que vem ao de cima – quer seja o egoísmo que o leva a roubar a única comida disponível que a mãe tinha para dar à irmã moribunda, quer seja o egoísmo de não suportar mais a dor da tortura do quarto 101.
Na terceira e última parte é a questão da liberdade interior – desde o início o refúgio de Winston - que é posta em causa. Tendo sido traídos por O’Brien, o que se segue é a tortura (em todos os sentido) como forma última de opressão. A morte seria um bem demasiado grande para poder ser oferecida, sem mais nem menos. Primeiro a limpeza, a purificação mental e, por fim, a negação da mais ínfima liberdade de pensamento. Depois de várias sessões, mas antes da ida ao quarto 101, Winston reconhece que 2+2 tanto pode ser 4 como 5 ou 3. Não há verdades absolutas. Essa é a primeira vitória sobre a liberdade de pensar. No entanto, Winston sonha (sempre o sonho como veículo da libertação) com uma bala que entra pelo seu cérebro e engendra, para esse momento que há-de chegar, a forma de morrer livre:
“Percebeu pela primeira vez que, a querer guardar um segredo, se via obrigado a escondê-lo até de si próprio. (…) daí em diante não lhe bastaria os pensamentos certos, os sonhos certos; tornava-se imperioso mostrar também os sentimentos certos, os sonhos certos. E entretanto guardar o ódio bem fechado dentro de si, como um corpo sólido que fizesse parte da sua pessoa e no entanto não estivesse em contacto com o resto de si, como uma espécie de quisto. (…)” (281/2)
Só “dez segundos” antes da bala atingir o seu cérebro é que ele “operaria uma revolta no seu interior” e libertaria o seu ódio: “Morrer a odiá-los: eis a liberdade.” (282). Depois de se submeter à vontade do Partido e esperando a morte Winston sente que, apesar de ter confessado tudo sobre a sua amada, não a traiu porque nunca deixou de a amar. Mas depois do quarto 101 – “o pior do mundo - continuou O’Brien – varia de indivíduo para indivíduo” (284) - ficamos na dúvida se a liberdade de amar Julia e a liberdade de fazer despertar o ódio antes de morte, coisas tão íntimas e tão difíceis de controlar, serão ainda uma possibilidade para Winston. O sinal de que algo foi ultrapassado no interior de Winston é dado pela traição ao amor que, como já vimos, tinha sido apresentado como real: “façam isto à Julia! Façam isto à Julia! A mim não!” (289) Depois disto podia-se dizer que foi o medo que nos fez dizer tal coisa. Que foi uma mentira feita para salvar a pele. Mas tal disfarce não funcionaria com O’Brien. “Algo morrera dentro dele: queimado, cauterizado” (291) E, no último encontro com Julia:
“- Só queremos saber de nós próprios – repetiu ele.
- Depois disso, jamais sentimos o mesmo por essa outra pessoa.
- Não – disse ele, já não sentimos o mesmo” (293)
Vence o egoísmo? Será a afirmação final de Winston: “Amava o grande irmão” (298), uma farsa? Ou será antes a prova de que Winston foi finalmente vencido? Como interpretar as “duas lágrimas” que Winston verte antes de afirmar o seu amor ao grande irmão? São a prova do amor? Ou o sentimento derivado da consciência de que perdeu a sua luta? Dado que no final Winston, num “sonho feliz”, vê a desejada bala penetrar-lhe o cérebro mas em vez de ódio o que vemos é amor ao grande irmão, a minha leitura é de que os bons perderam. Mas as conclusões a retirar ficam a cargo de cada leitor que deverá ler as últimas páginas do livro com redobrada atenção.
O culto de Che, por Paul Berman
O presente culto de Che - as t-shirts, os bares, os posters - conseguiu obscurecer essa terrível realidade. (...) Che foi um inimigo da liberdade e, mesmo assim, foi erigido como um símbolo da liberdade. Ajudou a estabelecer, em Cuba, um sistema social injusto e foi erigido como um símbolo de justiça social. Defendeu a antiga rigidez do pensamento latino-americano, numa versão marxista-leninista, e tem sido celebrado como um livre-pensador e como um rebelde. (...)
Berman, Paul, The Cult of Che Don't applaud The Motorcycle Diaries, (2004) in http://www.slate.com/ (tr. de LFB, Junho de 2008)
PS: Este obscuro culto a Che nas palavras de Hugo Chavés é assim: "Che viveu como Cristo e morreu como Cristo".
Tudo muito recentemente numa entrevista (rtp1) onde discursos inacreditáveis e algumas falsidades foram proferidas perante a passividade do entrevistador Mário Soares (um 'espiritualista laico', nas palavras do próprio).
quinta-feira, 1 de maio de 2008
Dicionário do absurdo fascinante
Determinados - como se poderá comprovar também pelo seu website - no combate às teorias absurdas que abundam nas academias, escreveram um dicionário cheio de ironia e com referências cruzadas que, divertindo, dá que pensar.
Eis algumas entradas:
Illness
Aquilo que os homens fazem às mulheres, o Ocidente a todos os outros, os invasores aos povos indígenas, os gatos aos ratos, o capitalismo a todos nós, comedores de carne... oh, já apanhaste a ideia. Veja-se Medicina.
Knowing
Algo em que as mulheres são especialistas.
Knowledge
Uma convenção humana sujeita à moda e, tal como as roupas, os sapatos e os cortes de cabelo, a tornar-se antiquada.
Medicine
Má quando ocidental, boa quando oriental ou alternativa. (...) Na sua forma ocidental, a medicina é uma disciplina objectificante e opressiva concebida para manter a ilusão de que as maleitas, a doença e a morte são coisas más às quais se deve resistir. Claro que isto é uma absurdo ...
Story
Aquilo que todas as coisas são, de facto, quando as aprofundas. A ciência, a história, a religião, a matemática, a engenharia - é tudo uma estória.
(tr. LFB)
quarta-feira, 23 de abril de 2008
domingo, 13 de abril de 2008
domingo, 6 de janeiro de 2008
Bonobos e o puritanismo americano
"Descobri que protestar acerca dos "Americanos" não é um passatempo europeu muito simpático, mas é impossível discutir os bonobos sem dizer alguma coisa sobre o puritanismo. Embora eu tenho vivido nos EUA durante duas décadas e tenha uma carinho genuíno pelo país e pelas suas gentes, nunca me acostumarei à relação entre o sexo e o pecado. A culpa e o sofrimento - já para não mencionar a hipocrisia - que essa associação cria ultrapassam-me. De bom grado evitaria este tópico se não fosse pela questão que persistentemente surge quando as pessoas ouvem pela primeira vez falar de bonobos - nomeadamente, porque é que esta espécie não

Ora, eu conheço muitos americanos que têm uma mente aberta no que a questões sexuais diz respeito mas, infelismente, a sua sociedade não é aberta. Chamo a isto a primeira lei do Puritanismo: o todo é mais puritano do que as partes. (...) A segunda lei é que a repressão sexual é mais difícil de ver do lado de dentro do que do lado de fora. Os americanos estão habituados a viver num país onde as casas de banho se chamam «restrooms», onde nem mesmo os ginecologistas observam os seus pacientes nus, onde se pode ser presa por amamentar em público, onde as «pinups» aparecem em fatos de banho e onde os comediantes chocam as audiências, provocando risos convulsivos, mencionando apenas o nome de uma parte tabu do corpo. Eles não se dão conta o quanto tudo isto parece estranho quando visto do exteri0r. Uma excepção possível está nos americanos que viajaram para o estrangeiro e que poderão ter visitado uma casa de banho Japonesa onde é obrigatório retirar toda a roupa mesmo na presença do sexo oposto. P0dem ter visto a prostituição livre e aberta em Amesterdão e Hamburgo ou ter encontrado pessoas que, no que toca à vida sexual dos seus lideres, simplesmente encolhem os seus ombros."
The Ape and the Sushi Master, de Frans de Waal

Uma terceira parte do livro é reservada para a discussão da natureza humana e, em particular a questão do altruísmo vs egoísmo.
Tentarei, futuramente, dar mais informações sobre o livro.
segunda-feira, 24 de dezembro de 2007
O Condomínio da Terra de Paulo Magalhães

A assumpção, por parte do autor, de uma posição realista em relação ao problema da natureza da realidade (uma questão metafísica com amplas conexões epistemológicas) é um ponto fundamental na construção de toda a ideia de um condomínio Terra. É desse pressuposto que depende a premissa de que a “Biosfera é a Realidade em si”. O autor não concebe a hipótese filosófica contrária de que o mundo pode ser apenas uma ideia, ou um sonho, ou apenas uma realidade virtual (o que não quer dizer que o seja, mas as meras possibilidades sempre fizeram pensar os filósofos). Sendo que é o próprio autor que se coloca no domínio filosófico (o que não é de todo necessário para se apresentarem soluções jurídicas para problemas ambientais), seria então de esperar que ele discutisse e rebatesse algumas dos argumentos que se discutem actualmente sobre a questão da natureza da realidade. Mas tal não acontece.
O problema fundamental é o de saber se todo o conhecimento é sempre conhecimento para nós, conhecimento sempre limitado pelas nossas capacidades cognitivas e sensoriais ou se, pelo contrário, será possível conhecer a realidade em si, separada do conhecimento humano e à qual seja possível aceder de um modo que vá além da mera intuição/ crença/ fé na existência desse mundo real independente da minha percepção dele. A grande dificuldade está em demonstrar a existência do Real de uma forma que não seja dependente de um conhecimento para nós.
Em relação a este problema, o autor defende que a biosfera não deve ser entendida como uma "organização ou concepção humana". Um exemplo:
"Hoje sabemos que a natureza pensada conhece um milhão e oitocentas mil espécies, e a natureza em si, estima-se em 8 milhões." (p.17, o itálico e o negrito estão no livro, tal e qual.)
No entanto, a palavra a negrito deveria ser 'estima-se' e não 'realidade em si', precisamente porque uma estimativa não deixa de ser uma acto do nosso conhecimento, aliás uma acto do possível e não do conhecimento. O que, só por si, é muito pouco para estabelecer a existência da 'realidade em si' para lá de qualquer dúvida razoável.
Ainda em relação ao problema da realidade em si, o autor e seus mentores colocam-se numa perspectiva anti-cartesiana para quem, dizem-nos, só o pensado é real. Mas, se é consensual que a posição mecanicista da natureza defendida no séc. XVII é errada, isso não é suficiente para que a existência da 'Realidade em si' fique demonstrada. Muito menos apenas com recurso a afirmações algo contraditórias como a seguinte: "há uma percepção da sua eventual existência", ou como quando, citando Soromenho-Marques, o autor nos diz que devemos "inovar a própria realidade" (p.35). Ora, a percepção é um acto cognitivo e, assim sendo, não estamos a falar do real em si, mas sim do real para nós. A questão é a de saber se esse real em si não nos escapará sempre dadas as nossas limitações cognitivas. E “inovar a realidade” é bonito, mas o que significa no contexto da discussão filosófica? São distinções elementares, mas que parecem escapar a Paulo Magalhães.
As leis da natureza são aqui apresentadas como se fossem imutáveis e como se fossem a demonstração de que a realidade em si existe separada do sujeito. Quando o que os filósofos das ciências afirmam é que as leis da natureza são uma construção da mente humana sujeita a revisões e a falsificações como qualquer enunciado universal.
Que existe um mundo lá fora ninguém duvida (à excepção, claro, de alguns filósofos). A questão filosófica central não é a de saber se os golfinhos comunicavam, ou não, antes de nós sabermos isso. É claro que comunicavam. Como o autor afirma:
"os golfinhos não estiveram à espera que o homem começasse a decifrar a a sua linguagem para comunicarem entre si" (p.23).
A questão é que não há forma de o sabermos antes de o sabermos! Por outras palavras, o dilema clássico é: 'como é que eu sei que o meu quarto continua a existir quando eu lá não estou?' Ou, em termos ambientais: como é que eu sei que sou responsável pela crise ambiental antes das evidências científicas me mostrarem que eu o sou?
Paulo Magalhães pode falar do "saber que a natureza sempre soube"; da Biosfera ter sido "desde sempre globalizada e independente" (p.23); do Direito como aquele que, na criação da ideia de condomínio, "negociou com o real" (p.84) mas isso, filosoficamente falando, não são mais do que metáforas bem intencionadas. A confusão conceptual aqui presente é a não distinção entre o "sabe que existe" e o "existe separado de".
Em termos éticos, o autor coloca o ser humano num domínio perfeito e ideal onde o homem respeitaria o ambiente - o que, para quem se diz tão seguro da realidade, não deixa de ser irónico - , esquecendo que no século XX o homem destruiu toda a noção razoável de humanidade e esquecendo que se um homem não consegue respeitar outro homem, então como respeitará noções tão abstractas como a Bioesfera ou o Ambiente. Antes de destruir o ambiente o homem já se tinha destruído como homem ético. E esta destruição está tão próxima de nós que é ainda quase possível sentir, por toda a Europa, o odor de tal destruição. Em querendo colocar-se no plano filosófico da natureza humana, talvez seja condição necessária começar por reconstruir, se isso for sequer concebível ainda, a estrutura ética do humano.
Nada disto impede impede o autor de exigir o ideal de:
"uma nova consciência do estar 'em relacionamento', na sua dimensão jurídica, que se alarga para além das relações intra-espécie". (p.24)
Mas estes são pormenores filosóficos que, dirão alguns, em nada ajudam a salvar a Terra.
Vejamos então algumas das ideias inovadores que o livro apresenta pra concretizar tão almejado objectivo. O problema a partir do qual o autor constrói a sua solução é o de saber como incluir as leis da natureza nos sistemas jurídicos que regem a vida política das pessoas (veja-se p. 66 e seguintes), uma vez que o aquecimento global veio acabar em definitivo "com as fronteiras tradicionais da soberania dos estados" (p.68). A resposta está na inclusão das leis da natureza no direito natural de onde brota "o sistema jurídico da sociosfera".
A ideia inovadora é a de que assim como um indivíduo livre e soberano que viva num prédio tem de limitar a sua liberdade e a sua propriedade obedecendo às imposições ditadas pelo administrador do condomínio (terá de pagar uma montante fixado para manutenção dos espaços comuns, participar em reuniões, contribuir com dinheiro para obras de beneficiação, etc.), também o Estado livre e soberano deverá limitar a sua soberania por forma a melhorar o condomínio que é o planeta Terra (sendo os espaços comuns a Atmosfera e a Hidrosfera e, com menos garantias, a Biodiversidade). Defende-se que o modelo de privatização dos recursos ambientais pós Kioto tem algo de errado precisamente porque não se pode dividir aquilo que é uno e interdependente – a Biosfera. De nada servirá sermos poucos poluidores quando os nossos vizinhos o são em demasia, e são-no legalmente porque compraram direitos de poluição. O problema não está tanto na solução encontrada, mas sim no facto de as verbas provenientes do “uso privado de um recurso público não serem directamente empregues no melhoramento das partes comuns” (pp.124-125).
A ideia é interessante mas fica a seguinte dúvida. Como é que as verbas resultantes da necessidade de conservar o condomínio poderiam diminuir significativamente os problemas ambientais que afectam o planeta? Até que ponto o dinheiro é capaz de resolver o problema do aquecimento global? O problema não parece ser uma questão de verbas - por analogia com os prédios, uma questão de manutenção do edifício, ou de beneficiação – mas sim uma questão de formas de vida resultantes da industrialização e da depêndencia irrecuperável dos seres humanos da tecnologia. E dessas formas de vida geradoras de conforto e prazer ninguém parece estar genuinamente interessado em abdicar. Se for uma questão de verbas, como este livro sugere, isso arranja-se, mais cedo ou mais tarde. Se não for, então esta solução terá até o efeito indesejado de criar a ilusão de que, afinal, o problema está a ser resolvido pela “Assembleia de Condóminos”.
(LFB)
Sabedoria
"Era a arte que tocava a natureza humana, em todos os seus lados. Tocar um lado somente, o lado político, limita. Seja ele qual for, da esquerda ou da direita. Limita." (...)
" Não há nada que não exista antes. Não há, por exemplo, nenhuma forma, nenhum desenho, por mais estranho que seja, que não exista na natureza. Toda a criação é uma recriação. É o conhecimento do conhecimento que se vai tendo e ainda do que estará na bolsa do subconsciente." (...)
"... foi a partir da máquina a vapor que se criou o capitalismo industrial; e foi o capitalismo industrial que criou a classe operária; e foi a classe operária que criou Marx; e foi através de Marx que se criou o comunismo na Rússia; e foi o comunismo que provocou a formação do fascismo, defendendo-se do comunismo."(...)
"Quem tem um livro nunca está só. Quando se está a ler, está-se a comunicar com alguém. E, além disso, é íntimo. No livro são permitidas todas as intimidades e todas as coisas públicas. Porque é um confidente. Confessa-se qualquer coisa de inconfessável. O cinema é mais público. Privado seria interdito." (...)
"Todas as idades servem para morrer." (...)
Manoel de Oliveira, entrevista ao jornal Expresso, revista Actual, de 8 de Dezembro de 2007.