É verão, os problemas ainda estão longe. Entra-se numa livraria e encontra-se o livro de Richard David Precht. O título atrai, diz-nos muito. Mas a capa deixa dúvidas. O original é alemão. O autor, na fotografia da contracapa, parece um actor de novelas. E custa 18 euros. Não...
Volta-se no dia seguinte. Folheia-se. Os temas são conhecidos. A divisão do livro em três partes - seguindo as questões da filosofia kantiana: O que posso saber? O que devo fazer? O que me é permitido esperar? - é muito interessante. E os títulos dos capítulos atraem: "Lucy in the Sky - de onde viemos", ou "Mr. spock ama - o que são os sentimentos". Compra-se o livro. Começa-se a ler e não se consegue parar.
O que é facto é que estamos perante uma excelente introdução à filosofia. Cheia de humor, descontraída, com capítulos (34) que raramente excedem as cinco páginas. Não é apenas uma história da filosofia e das suas ligações com outra ciências. É a busca do conhecimento onde quer que ele esteja e independentemente da super-especialização a que muitos departamentos se submeteram. Cada capítulo introduz o tema falando de um autor e de um lugar, o que acrescenta uma dimensão espacial aos temas (por exemplo, o capítulo sobre a questão de saber se a moral é inata começa em Boston com a experiência do vagão sem condutor do psicólogo Marc Hauser. E não deixa de ser irónico que não tenha sido escrita originalmente em inglês.
A novidade do livro, não são os temas, nem as respostas às perguntas da filosofia. A força do livro está na forma como o autor vai buscar informação relevante a outras áreas do conhecimento - psicologia, antropologia, neurociência, entre muitas outras - e a insere na discussão das questões filosóficas. E está também no dom que autor tem de colocar as questões certas (o dom filosófico) e de com elas ir construindo as ligações entre os capítulos. Não admira que nos países onde já foi traduzida esteja a ser um sucesso.
Não fosse a tradução pobre e muitas vezes retirada tal e qual do tradutor do google e seria um excelente manual para qualquer curso introdutório de filosofia ( a começar pelo ensino secundário). Merecia pois uma tradução mais cuidada. E a ausência de revisão científica num livro desta natureza é lamentável (por exemplo, livros de referência que existem em tradução portuguesa aparecem apenas em alemão, e outros aparecem em português e alemão).
Leia-se, um exemplo, entre muitos:
"... O eu é uma ilusão? Aquilo que cada pessoa julga ser é apenas um truque de magia enganador no cérebro. Andaram os filósofos durante dois mil anos a enganar-se a si mesmos, ao admitirem como a maior das evidências que existe um eu que se confronta, com maior ou menor sucesso, com coisas do mundo?
...Só nos resta recorrer aos neurocientistas que nos últimos anos se têm envolvido com frequência e veemência na discussão. Estes parecem sentir-se hoje predestinados, mais do que todos os demais, para responder à questão. A resposta de muitos neurocientistas (embora não de todos) à questão se existe um eu é a seguinte: «Não! Não existe nenhum eu. Ninguém foi ou teve até hoje um eu. Não existe nada que mantenha as pessoas unidas interiormente. David Hume e Ernst Mach tinham inteira razão: o eu é uma ilusão!»
... O eu não é outra coisa senão um complexo mecanismo electroquímico. É como se uma criança abrisse a sua boneca que fala e no interior, para sua desilusão, encontrasse um pequeno aparelho.
Mas o senso comum tem sorte. Felizmente, um tal centro não existe. Bem longe de ser uma desilusão, como pretendem alguns neurocientistas, trata-se de uma boa notícia. Já o famoso anatomista Rudolf Virchow, no século XIX, se comprazia expulsar o eu do corpo da filosofia, dizendo: «Já dissequei milhares de cadáveres, mas jamais encontrei uma alma.» E aqui pode dizer-se (sem sentido religioso): «Graças a Deus!» Evidentemente, é muito melhor não encontrar uma alma ou um eu do que encontrá-lo, para depois o decompor e desmistificar. E imagine-se o que seria se os cirurgiões cerebrais fossem capazes de remover o eu!
Bom, não existe então um centro onde esteja sediado o eu. Isto também não admira, pois quem - para além de René Descartes, com a sua glândula pineal - acreditou em tal coisa? Nenhum filósofo de nomeada dos últimos duzentos anos afirmou alguma vez que o eu fosse uma substância material no cérebro. A maior parte deles simplesmente não se comprometeu com uma posição precisa. Immanuel kant, por exemplo, fala de forma bastante nebulosa, quando diz que o eu é um «objecto do sentido interno», por oposição ao «objecto do sentido externo», o corpo. Isto deixa muita coisa em aberto, pois como havemos de imaginar tal coisa em concreto?
Em suma, a filosofia deixa a questão do eu sem resposta definida. A divisa parece ser: sobre o eu não se fala, temo-lo simplesmente. Também não admira que a neurociência não o consiga achar assim tão facilmente. (...)
Mas a neurociência conhece um segundo caminho para resolver a questão do eu: o estudo de pessoas que se afastaram da normalidade, quer dizer, de pacientes com perturbações, cujo eu manifestamente não funciona,funciona apenas parcialmente ou sob condições alteradas. (...) Aquilo que [Oliver]Sacks, há mais de 20 anos, podia apenas descrever, foi desde então estudado intensamente. Numerosos neurocientistas tendem a concluir que não existe um eu mas sim muito estados do eu: o meu eu corporal encarrega-se de me dar a saber que o corpo, com o qual vivo, é realmente o meu próprio corpo; o meu eu orientador diz-me onde me encontro neste preciso momento; o meu eu perspectivista informa-me de que eu sou o centro do mundo por mim experienciado; o meu eu enquanto sujeito de vivências, diz-me que as minhas percepções sensoriais e os meus sentimentos são, de facto, os meus próprios, e não os de outras pessoas; o meu eu autorial e de controlo faz-me perceber que sou eu o responsável pelos meus pensamentos e pelas minhas acções, o meu eu autobiográfico, olha por que eu não seja excluído do meu próprio filme, mas antes me capte continuamente como um e o mesmo; o meu eu auto-reflexivo possibilita-me pensar sobre mim próprio e jogar o jogo psicológico do «I» e do «me»; o eu moral, por fim, forma algo como a minha consciência, que me diz o que é bom e o que é mau.
... Os diferentes estados do eu, indicados pelos neurocientistas, são esquemas de divisão pertinentes, mas não nos devemos iludir: trata-se, ao mesmo tempo, de construções cujos contornos nem sempre se apresentam assim tão nítidos. Não provam de forma alguma que de tudo isto não resulta um estado geral ao qual se poderia chamar, seguindo alguns neurocientistas, uma «corrente da percepção do eu» - ou, porque não, pura e simplesmente «eu»?
... A velha ideia segundo a qual a unidade intelectual do Homem é mantida por um supervisor no cérebro não foi ainda refutada. este eu é uma coisa complicada. Por vezes, permite a sua decomposição em diferentes eus, mas, ao mesmo tempo, revela-se como uma realidade sentida que resiste à sua pura e simples superação por parte das ciências naturais. não chega a observação de que nos sentimos como um eu, para constatar que existe eu eu? «Somos indivíduos», escreve o sociólogo Niklas Luhmann, «simplesmente pela pretensão de o ser. Isso basta.» Podia dizer-se a mesma coisa a respeito do eu."
Richard David Precht, Quem sou eu e se sou quantos? Uma viagem filosófica, D. Quixote, 2010 tr. nada cuidada de LC (a edição original é de 2007), 70-77.
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