Gravações do Trio Fragata no bandcamp

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Putnam e a filosofia judaica (ii) "Rosenzweig and Wittgenstein"(pp. 9-36).

O primeiro capítulo começa com duas citações de Wittgenstein:
"Sem alguma coragem, ninguém pode escrever uma frase genuína acerca de si próprio."
"Algumas vezes acredito." (p.9)

Putnam discutirá aqui algumas semelhanças entre as atitudes de Wittgenstein e as de Rosenzweig em relação à filosofia. Mas primeiro alguns esclarecimentos sobre a filosofia Wittgensteiniana:
1) Putnam acha errada a visão de que wittgenstein é um anti-filósofo cuja missão é mostrar que os problemas filosóficos são apenas confusões e que encara a filosofia como uma doença que pode ser curada através de uma terapia acerca do significado da linguagem. "O que preocupava Wittgenstein era algo que ele via como estando profundamente enraizado nas nossas vidas com a linguagem ..." (p.11). Se compreendermos que a procura de clareza (exemplificada pelo trabalho de Wittgenstein) é necessária sempre que pensamos seriamente então veremos que o trabalho de Wittgenstein, em vez de ser o fim da reflexão filosófica, é uma forma de levá-la para áreas onde antes não víamos nada de filosófico.
2) Wittgenstein nunca aceitou a ideia de que "a religião é essencialmente uma confusão conceptual". É certo que as pessoas são vítimas de confusões religiosas, desde a superstição até "à tentação de tornar a religião numa teoria em vez de a encarar (aquilo que ele achava que deveria ser) como uma vida de aprofundamento" (a deep-going way of life, p.11), daqui o interesse de wittgenstein em Kierkegaard. "... Seria mais correcto afirmar que ele atacou os aspectos anti-religiosos do «Iluminismo com um I maiúsculo» em nome do próprio iluminismo." (p. 12). A religião não é uma teoria. Pretender que a religião pode ser criticada ou defendida apelando a factos científicos é um erro.

Comparação Rosenzweig/Wittgenstein:

a) ambos defendem que é uma confusão querer provar a verdade de uma religião apelando a "factos históricos": "uma confusão entre a transformação interior da vida de uma pessoa - para Wittgenstein a verdadeira função da religião - e os objectivos e actividades da explicação e previsão científicas" (pp. 13-14). Nas páginas seguintes Putnam analisa citações de Rosenzweig onde o significado do judaísmo é discutido;

b) ambos defendem que a procura da essência das coisas é um projecto “absurdo”; Rosenzweig argumenta no seu livro Understanding the Sick and the Healthy (USH) usando a “ironia redescritiva” (ironic redescription, penso que é uma expressão de Rorty, mas não tenho a certeza). O exemplo hilariante dado por Rosenzweig é a procura da essência de uma barra de manteiga. Putnam também ironiza apresentando um hipotético diálogo entre professores que, numa conferência, discutem metafísica. O diálogo termina assim: “(prof. D) Eu sugiro: «X quer uma barra de manteiga» significa «X quer que seja verdadeira uma frase que esteja numa relação de sinonímia com a seguinte frase: «eu tenho uma barra de manteiga»”. Ainda que os conferêncistas se defendessem afirmando que a sua discussão é sobre a semântica de certos tipos de frases, isso de nada serviria uma pois: “a «semântica» contemporânea é quase sempre apenas metafísica à moda antiga, mas disfarçada.” (p.21 Putnam com o apoio de C. Travis).
Apesar do ataque à metafísica não se pode dizer que os filósofos aqui em causa sejam nominalistas, isto é que estejam a defender uma tese metafísica sobre as essências: Por exemplo que, em relação ao problema da identidade pessoal, estejam a afirmar que "... não há nada que as diferentes coisas juntas sob um nome tenham realmente em comum" (p. 23, uma tese defendida, por exemplo, por D. Parfit). Rosenzweig defende que é essencial para nós podermos pensar que somos a mesma pessoa em diferentes tempos, a frase que Putnam cita do USH é "o senso comum em acção preocupa-se com a permanência do nome, não com a essência, ". Putnam interpreta "o senso comum em acção" como o mesmo que Locke defendeu ao ligar a identidade com as recordações de coisas que nos aconteceram ou com a ideia de Kant de ligar o pensamento racional com "o facto de eu encarar os meus pensamentos, experiências, memórias e outras coisas que tais como sendo minhas" (p. 24).

"Kant, tal como Locke, podem ser encarados como defensores da ideia de que o "jogo" de pensar os meus pensamentos e acções em diferentes tempos como sendo meus não depende de uma premissa metafísica acerca de "substâncias auto-idênticas", e é, mesmo assim, um jogo do qual não podemos optar por sair enquanto estivermos empenhados no "senso comum em acção.""
A ideia comum que Putnam encontra "nestes pensadores" é a de que colocar o problema da identidade pessoal (" de quantas substâncias auto-idênticas sou eu composto?") ou outro problema filosófico qualquer, é afastarmo-nos daquilo que realmente importa, "daquilo que é necessário para o "senso comum em acção"" (p.25).

A questão importante é então: "o que significa o senso comum em acção para o homem religioso?" (p.26) Da mesma maneira que um homem não se relaciona com outro homem através de teorias ou de essências também não poderá relacionar-se com Deus através de uma teoria ou de uma essência. A tarefa do homem não é apresentar provas de Deus, do mundo e do homem, mas reconhecer (acknowledge) Deus, o homem e o mundo (aqui Putnam faz outra comparação com Wittgenstein socorrendo-se da interpretação de S. Cavell que interpreta Wittgenstein como alguém que encontrou uma verdade no cepticismo). E não poderá reconhecer um sem reconhecer os outros.

É correcto entender Rosenzweig como um filósofo existencialista (na linha de Kierkgaard), mas não é correcto afirmar que o ataque à metafísica que é feito no USH se dirige apenas ao Idealismo Alemão. É verdade que o idealismo alemão é atacado mas é também atacada uma grande ilusão filosófica: a ilusão de que a filosofia pode fornecer conhecimento das "essências". (p.17) (daqui que Rosenzweig dê exemplos do materialismo, do positivismo e do empirismo e não apenas do idealismo). A filosofia é encarada no USH não como uma coisa técnica mas como uma "tentação que quem quer que se pensa a si próprio como religioso pode estar sujeito" (p.17). A tentação filosófica assim entendida é "a de substituir palavras, especialmente palavras que não têm conteúdo religioso porque não têm relação interna com uma vida religiosa genuína, por esse tipo de vida (...) "Tal como Wittgenstein e Kierkgaard, Rosenzweig encarava a metafísica como uma forma de tentação exagerada, de facto, como uma «doença» à qual estamos todos sujeitos." (p.18)

O ataque à metafísica também não é um ataque à capacidade de espanto. Capacidade que não pertence apenas ao domínio filosófico mas também à vida comum (ordinary life). Para Rosenzweig, o filósofo é aquele que não consegue "que o seu espanto, armazenado como está, se liberte para a corrente da vida". À medida que ele se abstrai do concreto para poder compreender o problema , à medida que procura o ponto de vista imaginário, à medida que procura colocar-se a sí próprio de um ponto de vista neutro, a sua capacidade de espanto fica paralizada e a "corrente da vida é substituída por algo submissivo" (p.28, extratos de citações feita por Putnam de USH). E é esta a doença presente no título do livro. A doença do filósofo é a paralisia perante o decorrer da vida. Isto acontece, diz Rosenzweig, porque o filósofo tem "medo de viver" e mais do que isso porque procura iludir a morte:

"...então ele prefere sair fora da vida. Se viver significa morrer, ele prefere não viver". (Rosenzweig, USH, citado por Putnam, p. 29).

Quando li o livro de Rosenzweig fiquei espantado com o facto de o livro apresentar a paralisia, ainda que metaforicamente, como a doença dos filósofos. Não é que eu não estivesse consciente dos perigos da filosofia, basta pensar, por exemplo, na distinção entre agir e pensar, no filósofo e no homem prático, na utilidade da filosofia (Hume), etc. O espanto adveio do facto de ter ficado a saber que, pouco tempo depois de ter terminado o livro, Rosenzweig descobriu os primeiros sintomas da doença de Lou Gehrig e em poucos anos ficou paralisado (num estado semelhante ao de S. Hawking). O homem religioso que escreveu sobre o filósofo paralisado, tornou-se, pelos infortúnios da vida, o homem religioso paralisado. Espanto e arrepio.

Apesar de tudo Rosenzweig continuou a viver de acordo "com as exigências da sua própria filosofia existencial" (Putnam, p.29). A comunicação ficou reduzida ao piscar dos olhos. [Também noutro caso que deu origem ao livro, e depois ao filme, O Escafandro e a Borboleta o autor usa o mesmo processo de comunicação através do piscar de olhos e dita/escreve o livro dessa forma. Quem terá inventado esta forma de comunicação?]. Rozensweig continuou a escrever, traduziu, do hebraico, a Bíblia, conjuntamente com Buber, e não deixou de transmitir a confiança e a determinação que já eram suas antes da doença (já havia rejeitado um lugar na Universidade porque "as lutas com as pessoas e as condições tornaram-se agora a substância da minha existência" carta de Rosenzweig citada por Putnam, p.31).

A proposta existencial de Rosenzweig é o "novo pensar" (new thinking). Em que consiste? Três características são apresentadas por Putnam:
i) "falando pensando", determina a necessidade de outra pessoa (que houve e fala) e de tempo; não sabemos o que outro irá dizer nem quando terminará (os diálogos de Platão são criticados porque quem escreve já sabe o que o dialogante irá dizer);
ii) a teologia e a filosofia devem ser humanizadas;
iii) é preciso estar pronto (readiness) em vez de ter um plano; (desejo de Rosenzweig de reviver todas as formas de aprendizagem judaica e de restaurar a vida judaica em Weimar: "as coisas superiores não podem ser planeadas, para elas a prontidão é tudo").

O capítulo termina com a crítica de Putnam ao facto de Rosenzweig afirmar - no considerado obscuro e inacessível livro intitulado The Star of Redemption (versão inglesa) - que só duas religiões têm significado genuíno - o judaísmo (por ser a única religião a-histórica no sentido em que as mudanças nunca são mudanças "reais") e o cristianismo (a religião histórica por excelência). Putnam vê aqui resquícios do Hegalianismo outrora defendido por Rosenzweig.

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Ideia geral defendida por Putnam: Apesar de a filosofia necessitar de "análise de argumentos e técnicas lógicas" é muito importante não esquecer que estas técnicas devem estar ao serviço da filosofia com um modo de vida (= transformar o nosso modo de vida e compreender o nosso lugar na comunidade), é esta visão da filosofia que é comum aos quatro filósofos estudados neste livro.

(LFB)

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