domingo, 8 de fevereiro de 2009

A Inquietação humana e o estudo da shoah

“Toivi estava bem ciente de que ajudava os nazis a fazer funcionar o campo, muito embora o aceitasse a contragosto. Na verdade, era claro para ele que a tarefa de cortar cabelos, separar peças de vestuário, retirar as bagagens dos comboios, limpar o campo – a maior parte das tarefas práticas necessárias para a manutenção da capacidade operacional de Sobibór – eram levadas a cabo por judeus: «Sim», diz ele, «pensei sobre isto. Mas ninguém fazia nada. [Eu tinha] quinze anos e havia pessoas com experiência de adultos em meu redor que não faziam nada para contrariar essa situação. As pessoas mudam em determinadas circunstâncias. As pessoas perguntavam-me: “O que aprendeste?” E penso que só há uma coisa de que tenho a certeza – ninguém se conhece a si próprio. Encontramos uma pessoa simpática na rua, a quem perguntamos “Onde fica a Rua do Norte”, e essa pessoa é capaz de nos acompanhar ao longo de um quarteirão e indicar-nos a rua, sempre simpática e amável. Mas essa mesma pessoa, numa situação ou circunstâncias diferentes, pode ser o pior dos sádicos. Ninguém se conhece a si próprio. Todos nós podemos ser boas ou más pessoas, nestas [diferentes] situações. Por vezes, quando alguém é simpático, dou comigo a pensar: “Como é que ele seria em Sobibór?”».
(…) Toivi Blatt salienta o facto de haver uma mudança fundamental em circunstâncias extremas, a qual tem menos a ver com uma mudança comportamental – muito embora essa também ocorra – e mais com uma mudança que se verifica no essencial do carácter das pessoas. É como se as pessoas como Toivi Blatt, quando se encontravam nos campos, se tivessem apercebido de que os seres humanos têm semelhanças com os elementos susceptíveis a mudanças de acordo com a temperatura ambiente. Do mesmo modo que a água existe na sua qualidade de água somente a determinadas temperaturas, passando a ser vapor ou gelo em outras, também os seres humanos podem vir a ser pessoas diferentes de acordo com os extremos das circunstâncias.”
Rees, L., Auschwitz - os nazis e a «solução final» (Dom Quixote, Booket, tr. 2008, pp.291-292)

De forma recorrente, as pessoas que, de uma maneira ou de outra, deram conta do meu interesse pelo estudo dos diferentes aspectos da Shoah perguntam-me como é que eu suporto estudar e ensinar esse tema. Não fico eu deprimido? A questão é perturbadora e a resposta nem sempre está disponível de forma clara na minha mente. Várias coisas têm que ser equacionadas. É certamente verdade que a leitura de certos (e muitos) acontecimentos – como a descrição dos acontecimentos (colaboração e indiferença de muitos Franceses («desonra perpétua» p.166), frieza diabólica dos nazis, percepção sensível da devastação causada pelo “trauma emocional” (180) pelo qual os pais passavam ao ter que abandonar as suas crianças pensando que elas teriam alguma possibilidade de sobreviver) que terminaram em comboios carregados com milhares de crianças que haviam sido barbaramente separadas dos pais, também eles enviados para Auschwitz – provoca tristeza, choro, angústia e um nó na garganta que impede a respiração e obriga a colocar o livro de lado.
Mas, para alguém fortemente empenhado na questão de saber o que somos e o que andamos aqui a fazer, o estudo deste período histórico revela-se mais enriquecedor do que o melhor dos tratados sobre a natureza humana. Nada mais revelador do (in)humano do que os testemunhos das pessoas que sobreviveram ao horror nazi. Nada mais inquietante do que o testemunho, acima transcrito e com destaques meus, que mostra a fraqueza do nosso carácter e o quanto somos moldáveis, para o bem e para o mal; que mostra a total ignorância acerca de nós mesmos. O que eu sinto é que tenho a obrigação de, através do estudo e do ensino, narrar o que de mais verdadeiro e terrível há em nós. É sempre na desgraça (quer seja natural, quer seja moral) que nos revelamos. As consequências e as interrogações são muitas e variadas. O que dizer disso que hoje chamamos 'a nossa vida', será ela, por uma vez que seja, real e confiável? Os bons, sinceros e bem-intencionados sê-lo-ão realmente? Ou tudo não passa de uma vã aparência? E se fosse eu que tivesse vivido esse tempo? De que lado estaria? Como me comportaria? Seria um colaboracionista, um nazi, um kapo? Uma criança?:

“ «Parecia que tínhamos deixado de ser humanos.» Apesar de tudo, as crianças cantavam enquanto caminhavam para a estação” (175).

As questões são intermináveis e o que dizer do dever de ensiná-las? Que efeito produzirão nas mentes dos estudantes do ensino secundário? O que sei é que o ensino destas matérias - seja através da exemplificação ou do estudo aprofundado de uma questão - gera sempre um silêncio e uma atenção na sala de aula que revelam, pelo menos, que algo de fundamental está aqui em causa. Talvez resida aqui a esperança.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Adicionados à minha "wish list", depois da leitura do Público de sexta 30 de Jan.:

Michael Pollan, O Dilema do Omnívoro (D.Quixote, tr.2008);

Robert Skidelsky, John Maynard Keynes 1883-1946: Economist, Philosopher, Statesman, (Penguin);

Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism: The Founders, The Golden Age, The Breakdown, (Norton).

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Livros novos

adquiridos na nova livraria da Praia da Vitória que, de novo, volta a ter um espaço para venda de livros. Apesar de a livraria ser pequena, encontrei várias coisas interessantes e comprei três livros (todos com 10% de desconto). Os últimos dois já estavam na lista de desejados, o primeiro foi completa surpresa: eu sabia já da sua existência pois tinha visto o ano passado a série televisiva da BBC com o mesmo nome e conhecia outros livros do autor sobre a Shoah e o nazismo, desconhecia era a tradução que, até à página 74, se tem revelado excelente:
Laurence Rees, Auschwitz - os nazis e a «solução final» (Dom Quixote, Booket, tr. 2008).
Ron Aharoni, Aritmética para Pais, (Gradiva, temas de matemática, tr. 2008).


Janet Browne, A Origem das Espécies de Charles Darwin, Gradiva, Ciência aberta, tr. 2008.

Felicidades pois para a nova livraria.
De que vale uma cidade se não tem livrarias?

LFB

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Eu, hoje, reduziria a questão da educação a três termos:

Ler
falar
agir.

As três questões que cada um dos implicados no assunto deve responder são:

O que devo ler?

Com quem devo falar sobre o que li?

O que devo fazer para ensinar/educar/melhorar?


O resto são cantigas políticas/económicas/sociais com muitos erros à mistura.
(LFB)

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Porquê estudar a shoah?

“Teremos aprendido alguma coisa? As pessoas raramente aprendem a partir da história e a história do regime Nazi não constitui excepção. Também falhámos na compreensão do contexto geral. Nas nossas escolas falamos, por exemplo, de Napoleão e do modo como ele venceu a batalha de Austerlitz. Ganhou-a por si só? Alguém o terá ajudado nesse feito? Talvez uns tantos milhares de soldados? E o que aconteceu às famílias dos soldados mortos, aos feridos de ambos os lados, aos habitantes das cidades que foram destruídas, às mulheres que foram violadas, aos bens e posses que foram saqueados? Continuamos a ensinar acerca dos generais, acerca dos políticos e dos filósofos. Tentamos não reconhecer o lado negro da história – os assassínios em massa, a agonia, o sofrimento que, vindo de toda a história, nos esbofeteia. Não ouvimos o lamento de Clio. Continuamos a não compreender que nunca seremos capazes de lutar contra a nossa tendência para a aniquilação recíproca se não a estudarmos e a ensinarmos e se não enfrentarmos o facto de que os humanos são os únicos mamíferos capazes de aniquilar a sua própria espécie.”
BAUER, Yehuda, Rethinking the Holocaust, Yale U.P., 2001, p.262. (tr. L.F.B.)

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Putnam e a filosofia judaica (iii) "Rosenzweig on Revelation and Romance" (pp. 37-54).

"Aqui uma frase não se segue da sua antecessora, mas, e isto é muito mais o caso, da sua sucessora." (Rosenzweig, "the New Thinking", in Philosophical and Theological Writings, citado por Putnam, p.38)

A citação surge no contexto inicial do capítulo onde se fornecem algumas explicações sobre o porquê da obra principal de Rosenzweig - The Star of Redemption - , ao contrário de USH, ser uma obra muito difícil. A razão da dificuldade passa por ter que ler toda a obra e por perceber a crítica já apresentada à filosofia como a procura das essências. Rosenzweig ironiza com os filósofos que, lendo as primeiras páginas de uma obra e encontrando alguma falha lógica, dão por refutada toda a obra, senão mesmo todo o trabalho do autor.

Rosenzweig profetiza o fim da filosofia como metafísica e propõe uma nova maneira de filosofar: a filosofia narrativa, também designada de filosofia experiencial ("experiential philosophy", p.40). As próximas páginas são dedicadas à explicação desta nova concepção. Em primeiro lugar, esta escrita pretende levar "o leitor a encontrar-se com o autor" (p.41) promovendo mudanças profundas no leitor. É "prosa existencial" e, por isso, pretende realizar, através da escrita, o tipo de diálogo descrito anteriormente como "falando-pensando". É também "escrita revelatória", no sentido de experiência teológica, uma experiência de encontros, uma experiência de "um acontecimento entre os dois". (Paul Franks, citado por Putnam, p. 41).
Putnam estabelece aqui uma relação entre Rosenzweig e Levinas afirmando que também na filosofia ética deste se pode ler um tipo de narrativa semelhante: "quando Levinas nos diz que cada um de nós deve aprender a dizer "aqui estou eu" ao outro, o seu «aqui estou eu» é, na verdade, modelado no hineni de Abraão: que é o que Abraão diz a Deus quando Deus o chama para sacrificar o seu querido filho Isaac ..." (p.43). Ainda que, como Putnam afirmará mais adiante (p.49), haja diferenças assinaláveis entre os dois filósofos: para Rosenzweig surge primeiro a percepção de que se é amado por Deus e só depois a ordem de amar o outro. Para Levinas é o contrário.
Nas páginas seguintes Putnam explica, através do amor de Deus por Abraão em particular (e pelo povo judeu, em geral), a relação amorosa entre Deus e a alma humana/Abraão: "é esta imagem de Deus como amante que domina a narrativa na secção acerca da Revelação (Livro II da Parte II) da Star." (P.46)
Deus diz a cada pessoa "ama-me" e se esse apelo for correspondido haverá "consequências" relacionadas com a redenção de que fala Rosenzweig: implica imitar Deus e amar "todo e cada ser humano como ser humano." (p. 49). Este "matrimónio" implica sair de "uma mera relação "interior" com Deus". A grande tragédia da alma humana na sua não-relação com Deus é fechar-se dentro de si própria, é tornar-se uma alma "Metaética" (p.47). Neste contexto Putnam cita Auden:

The error bred in the bone
of each woman and each man
not universal love, but to be loved alone.

e outro verso do mesmo poeta:

"Always the soft idiot softly me"

Mas o matrimónio/redenção não acontece apenas pela aceitação ética de amar o outro individualmente. A redenção será um estado onde "o amor de Deus e o amor do próximo serão verdadeiramente universalizados." (p.51) Ainda que a redenção seja projectada para o futuro, o homem deve agir de forma a experienciá-la no presente: a analogia com o amor entre as pessoas é esclarecedora: a redenção está no futuro e no presente do mesmo modo que duas pessoas que se amam, experienciam o seu amor no presente e querem continuar a experienciá-lo no futuro.
"A redenção tem um lado pessoal - é algo experienciado por cada pessoa religiosa; e tem um lado comunal - é algo exemplificado e modelado pela comunidade religiosa judaica como um todo; e tem um lado escatológico, mas não é apenas escatológico porque a sua futura ocurrência é algo que está "presente" ao judeu individual agora." (p.54)
(LFB)

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Putnam e a filosofia judaica (ii) "Rosenzweig and Wittgenstein"(pp. 9-36).

O primeiro capítulo começa com duas citações de Wittgenstein:
"Sem alguma coragem, ninguém pode escrever uma frase genuína acerca de si próprio."
"Algumas vezes acredito." (p.9)

Putnam discutirá aqui algumas semelhanças entre as atitudes de Wittgenstein e as de Rosenzweig em relação à filosofia. Mas primeiro alguns esclarecimentos sobre a filosofia Wittgensteiniana:
1) Putnam acha errada a visão de que wittgenstein é um anti-filósofo cuja missão é mostrar que os problemas filosóficos são apenas confusões e que encara a filosofia como uma doença que pode ser curada através de uma terapia acerca do significado da linguagem. "O que preocupava Wittgenstein era algo que ele via como estando profundamente enraizado nas nossas vidas com a linguagem ..." (p.11). Se compreendermos que a procura de clareza (exemplificada pelo trabalho de Wittgenstein) é necessária sempre que pensamos seriamente então veremos que o trabalho de Wittgenstein, em vez de ser o fim da reflexão filosófica, é uma forma de levá-la para áreas onde antes não víamos nada de filosófico.
2) Wittgenstein nunca aceitou a ideia de que "a religião é essencialmente uma confusão conceptual". É certo que as pessoas são vítimas de confusões religiosas, desde a superstição até "à tentação de tornar a religião numa teoria em vez de a encarar (aquilo que ele achava que deveria ser) como uma vida de aprofundamento" (a deep-going way of life, p.11), daqui o interesse de wittgenstein em Kierkegaard. "... Seria mais correcto afirmar que ele atacou os aspectos anti-religiosos do «Iluminismo com um I maiúsculo» em nome do próprio iluminismo." (p. 12). A religião não é uma teoria. Pretender que a religião pode ser criticada ou defendida apelando a factos científicos é um erro.

Comparação Rosenzweig/Wittgenstein:

a) ambos defendem que é uma confusão querer provar a verdade de uma religião apelando a "factos históricos": "uma confusão entre a transformação interior da vida de uma pessoa - para Wittgenstein a verdadeira função da religião - e os objectivos e actividades da explicação e previsão científicas" (pp. 13-14). Nas páginas seguintes Putnam analisa citações de Rosenzweig onde o significado do judaísmo é discutido;

b) ambos defendem que a procura da essência das coisas é um projecto “absurdo”; Rosenzweig argumenta no seu livro Understanding the Sick and the Healthy (USH) usando a “ironia redescritiva” (ironic redescription, penso que é uma expressão de Rorty, mas não tenho a certeza). O exemplo hilariante dado por Rosenzweig é a procura da essência de uma barra de manteiga. Putnam também ironiza apresentando um hipotético diálogo entre professores que, numa conferência, discutem metafísica. O diálogo termina assim: “(prof. D) Eu sugiro: «X quer uma barra de manteiga» significa «X quer que seja verdadeira uma frase que esteja numa relação de sinonímia com a seguinte frase: «eu tenho uma barra de manteiga»”. Ainda que os conferêncistas se defendessem afirmando que a sua discussão é sobre a semântica de certos tipos de frases, isso de nada serviria uma pois: “a «semântica» contemporânea é quase sempre apenas metafísica à moda antiga, mas disfarçada.” (p.21 Putnam com o apoio de C. Travis).
Apesar do ataque à metafísica não se pode dizer que os filósofos aqui em causa sejam nominalistas, isto é que estejam a defender uma tese metafísica sobre as essências: Por exemplo que, em relação ao problema da identidade pessoal, estejam a afirmar que "... não há nada que as diferentes coisas juntas sob um nome tenham realmente em comum" (p. 23, uma tese defendida, por exemplo, por D. Parfit). Rosenzweig defende que é essencial para nós podermos pensar que somos a mesma pessoa em diferentes tempos, a frase que Putnam cita do USH é "o senso comum em acção preocupa-se com a permanência do nome, não com a essência, ". Putnam interpreta "o senso comum em acção" como o mesmo que Locke defendeu ao ligar a identidade com as recordações de coisas que nos aconteceram ou com a ideia de Kant de ligar o pensamento racional com "o facto de eu encarar os meus pensamentos, experiências, memórias e outras coisas que tais como sendo minhas" (p. 24).

"Kant, tal como Locke, podem ser encarados como defensores da ideia de que o "jogo" de pensar os meus pensamentos e acções em diferentes tempos como sendo meus não depende de uma premissa metafísica acerca de "substâncias auto-idênticas", e é, mesmo assim, um jogo do qual não podemos optar por sair enquanto estivermos empenhados no "senso comum em acção.""
A ideia comum que Putnam encontra "nestes pensadores" é a de que colocar o problema da identidade pessoal (" de quantas substâncias auto-idênticas sou eu composto?") ou outro problema filosófico qualquer, é afastarmo-nos daquilo que realmente importa, "daquilo que é necessário para o "senso comum em acção"" (p.25).

A questão importante é então: "o que significa o senso comum em acção para o homem religioso?" (p.26) Da mesma maneira que um homem não se relaciona com outro homem através de teorias ou de essências também não poderá relacionar-se com Deus através de uma teoria ou de uma essência. A tarefa do homem não é apresentar provas de Deus, do mundo e do homem, mas reconhecer (acknowledge) Deus, o homem e o mundo (aqui Putnam faz outra comparação com Wittgenstein socorrendo-se da interpretação de S. Cavell que interpreta Wittgenstein como alguém que encontrou uma verdade no cepticismo). E não poderá reconhecer um sem reconhecer os outros.

É correcto entender Rosenzweig como um filósofo existencialista (na linha de Kierkgaard), mas não é correcto afirmar que o ataque à metafísica que é feito no USH se dirige apenas ao Idealismo Alemão. É verdade que o idealismo alemão é atacado mas é também atacada uma grande ilusão filosófica: a ilusão de que a filosofia pode fornecer conhecimento das "essências". (p.17) (daqui que Rosenzweig dê exemplos do materialismo, do positivismo e do empirismo e não apenas do idealismo). A filosofia é encarada no USH não como uma coisa técnica mas como uma "tentação que quem quer que se pensa a si próprio como religioso pode estar sujeito" (p.17). A tentação filosófica assim entendida é "a de substituir palavras, especialmente palavras que não têm conteúdo religioso porque não têm relação interna com uma vida religiosa genuína, por esse tipo de vida (...) "Tal como Wittgenstein e Kierkgaard, Rosenzweig encarava a metafísica como uma forma de tentação exagerada, de facto, como uma «doença» à qual estamos todos sujeitos." (p.18)

O ataque à metafísica também não é um ataque à capacidade de espanto. Capacidade que não pertence apenas ao domínio filosófico mas também à vida comum (ordinary life). Para Rosenzweig, o filósofo é aquele que não consegue "que o seu espanto, armazenado como está, se liberte para a corrente da vida". À medida que ele se abstrai do concreto para poder compreender o problema , à medida que procura o ponto de vista imaginário, à medida que procura colocar-se a sí próprio de um ponto de vista neutro, a sua capacidade de espanto fica paralizada e a "corrente da vida é substituída por algo submissivo" (p.28, extratos de citações feita por Putnam de USH). E é esta a doença presente no título do livro. A doença do filósofo é a paralisia perante o decorrer da vida. Isto acontece, diz Rosenzweig, porque o filósofo tem "medo de viver" e mais do que isso porque procura iludir a morte:

"...então ele prefere sair fora da vida. Se viver significa morrer, ele prefere não viver". (Rosenzweig, USH, citado por Putnam, p. 29).

Quando li o livro de Rosenzweig fiquei espantado com o facto de o livro apresentar a paralisia, ainda que metaforicamente, como a doença dos filósofos. Não é que eu não estivesse consciente dos perigos da filosofia, basta pensar, por exemplo, na distinção entre agir e pensar, no filósofo e no homem prático, na utilidade da filosofia (Hume), etc. O espanto adveio do facto de ter ficado a saber que, pouco tempo depois de ter terminado o livro, Rosenzweig descobriu os primeiros sintomas da doença de Lou Gehrig e em poucos anos ficou paralisado (num estado semelhante ao de S. Hawking). O homem religioso que escreveu sobre o filósofo paralisado, tornou-se, pelos infortúnios da vida, o homem religioso paralisado. Espanto e arrepio.

Apesar de tudo Rosenzweig continuou a viver de acordo "com as exigências da sua própria filosofia existencial" (Putnam, p.29). A comunicação ficou reduzida ao piscar dos olhos. [Também noutro caso que deu origem ao livro, e depois ao filme, O Escafandro e a Borboleta o autor usa o mesmo processo de comunicação através do piscar de olhos e dita/escreve o livro dessa forma. Quem terá inventado esta forma de comunicação?]. Rozensweig continuou a escrever, traduziu, do hebraico, a Bíblia, conjuntamente com Buber, e não deixou de transmitir a confiança e a determinação que já eram suas antes da doença (já havia rejeitado um lugar na Universidade porque "as lutas com as pessoas e as condições tornaram-se agora a substância da minha existência" carta de Rosenzweig citada por Putnam, p.31).

A proposta existencial de Rosenzweig é o "novo pensar" (new thinking). Em que consiste? Três características são apresentadas por Putnam:
i) "falando pensando", determina a necessidade de outra pessoa (que houve e fala) e de tempo; não sabemos o que outro irá dizer nem quando terminará (os diálogos de Platão são criticados porque quem escreve já sabe o que o dialogante irá dizer);
ii) a teologia e a filosofia devem ser humanizadas;
iii) é preciso estar pronto (readiness) em vez de ter um plano; (desejo de Rosenzweig de reviver todas as formas de aprendizagem judaica e de restaurar a vida judaica em Weimar: "as coisas superiores não podem ser planeadas, para elas a prontidão é tudo").

O capítulo termina com a crítica de Putnam ao facto de Rosenzweig afirmar - no considerado obscuro e inacessível livro intitulado The Star of Redemption (versão inglesa) - que só duas religiões têm significado genuíno - o judaísmo (por ser a única religião a-histórica no sentido em que as mudanças nunca são mudanças "reais") e o cristianismo (a religião histórica por excelência). Putnam vê aqui resquícios do Hegalianismo outrora defendido por Rosenzweig.

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Ideia geral defendida por Putnam: Apesar de a filosofia necessitar de "análise de argumentos e técnicas lógicas" é muito importante não esquecer que estas técnicas devem estar ao serviço da filosofia com um modo de vida (= transformar o nosso modo de vida e compreender o nosso lugar na comunidade), é esta visão da filosofia que é comum aos quatro filósofos estudados neste livro.

(LFB)

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

A política segundo César

Quem ainda não sentiu os dissabores da política democrática que Salazar expressou quando disse que 'detestava a política do fundo do seu coração; todas aquelas promessas incoerentes e barulhentas, as exigências impossíveis (...) o oportunismo que não se preocupa nem com a verdade nem com a justiça, a busca inglória da fama não merecida, (...) a distorção dos factos, todo aquela fervorosa e barulhenta excitação'?
(Huizinga in The Times, 16 November 1961, citado em Crick, In defense of Politics, Continuum, 5ª ed. 2005)


César tornou-se uma daquelas pessoas perigosas para quem a política é sempre uma coisa desagradável, uma coisa palaciana.

Recentemente, aquando da apresentação e discussão do programa de governo regional - após o novo presidente da Assembleia Regional (F. Coelho) ter dito que afinal se deveria votar o programa, contradizendo aquilo que havia dito na noite anterior onde teimou que, tendo o governo maioria e não havendo moções, o programa não teria de ser votado pela Assembleia -, gerou-se um mal-estar entre partidos da oposição e o partido do Governo Regional. Aqueles - na noite em que não puderam votar contra o novo orçamento - gritaram que era uma injustiça anti-democrática, uma coisa nunca vista, que não podia ser. O surpreendente foi que, no dia seguinte - quando Coelho deu o dito por não dito - estes mesmos indignados votaram contra mas não abriram bico, nem declarações de voto, nem protestos, nada, até hoje silêncio absoluto sobre o assunto. Segundo as notícias, o seu silêncio teria sido trocado pelo adiamento sine die da proposta da maioria para reduzir os custos da Assembleia. As subvenções dos grupos parlamentares seriam reduzidas e, por consequência, haveria menos pessoas a entrar na assembleia. Na rádio (RDP -Açores) ainda houve alguma informação e indignação, nomeadamente de Álvaro Monjardino quando disse que, a ser verdade, 'o pacto de silêncio' era gravíssimo. NA RTP-Açores apenas uma breve referência à mudança de posição de Coelho, mas nada de imagens da votação contra, nada de perguntar à oposição porque estava tão calada. De seguida 10 minutos sobre o Estatuto dos Açores e o Presidente da República (note-se que isto se passou há sensivelmente três semanas e nada de novo tinha acontecido quanto ao Estatuto). César, questionado pela RTP Açores sobre o comportamento de Francisco Coelho, disse que não tinha tempo para "intrigas palacianas."
Ontem, depois de saber que Cavaco Silva promulgara o malogrado Estatuto, César volta a classificar o desentendimento entre partidos e Presidente como "intrigas palacianas".

Para um residente no palácio de Sant'Ana, a sinceridade não poderia ser mais genuína.
(LFB)

A América vista por Zappa em 1966

"Anscombe era, naquela altura, uma fervorosa admiradora de Kafka e, num esforço para partilhar o seu entusiasmo, emprestou a Wittgenstein alguns dos livros de Kafka. 'Este homem', disse Wittgenstein ao devolvê-los,' não escrevendo sobre os seus problemas, cria para si próprio imensos problemas [gives himself a great deal of trouble not writing about his trouble]."

Ray Monk, Ludwig Wittgenstein - The Duty of Genius, (Penguin, 1991), p.498. (Tr. LFB)
"... Se pudéssemos escolher, qual seria a melhor morte?
César respondeu imediatamente.
- Súbita e inesperada, mesmo que sangrenta e dolorosa. Seria imensamente preferível a uma morte prolongada. De entre todos os episódios que referes, Lépido, a morte de Pompeio foi a melhor. Todos os outros avistaram a sombra da morte muito antes de ela os atingir, e devem tê-la contemplado com temor, mas Pompeio manteve, mesmo até ao fim, uma esperança, ainda que frágil; e o fim chegou-lhe de forma surpreendente, ainda que chocante. É certo que o corpo dele foi profanado mas, quando me entregaram os restos, eu tratei de que fossem purificados, e de que fossem objecto de todos os ritos adequados. O lémure dele repousa em paz."

Steven Saylor, Roma, Bertrand editora (Tr. M. J. Figueiredo), p.598.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Putnam e a filosofia judaica (i) "introduction (autobiographical)"(pp. 1-8).


1) Putnam é um filósofo de tradição anglo-saxónica. Formado na U.C.L.A, diz-nos que que o seu mestre foi Hans Reichenbach, sendo muito influenciado pela forma científica de pensar (p.1). Nesta introdução autobiográfica Putnam fala de si como um filósofo naturalista mas não reducionista; no sentido que não defende que tudo possa ser reduzido a propriedades físicas. Para ele, por exemplo, "o nível da acção moral significante" (p.5) não é redutível. E há uma relação entre a realidade e a moralidade no sentido em que "realidade exige coisas de nós". Os valores, ainda que criados pelos humanos, são uma resposta às exigências da realidade e estas não são criadas por nós. "É a realidade que determina se as nossas respostas são, ou não, adequadas" (p.6) Na linha do "pragmatismo clássico" (Dewey).
Putnam escreve aqui sobre Rosenzweig, Buber e Levinas - filósofos judeus pouco valorizados na filosofia anglo-saxónica. E também sobre Wittgenstein que, não sendo propriamente judeu (o seu bisavô tornou-se cristão) é muito importante para o objectivo de Putnam: estudar, através dos textos destes quatro pensadores, a relação entre o filósofo, o religioso e o ético. Nas suas palavras:

"o que fiz, filosoficamente falando, das actividades religiosas das quais passei a fazer parte?" (p.3).

No passado operava uma separação entre o filósofo ateísta e o homem crente. Dentro da sua tradição filosófica: separar o humano/religioso do filósofo/académico.

2) Putnam estabelece semelhanças e diferenças entre as teses dos autores sobre os quais o livro versa e as teses defendidas por filósofos analíticos contemporâneos (T. Nagel, Parfit, Rorty). Será que esta aproximação entre duas formas de filosofar representa um enriquecimento filosófico? Se sim, qual?

3) Putnam é judeu e o livro procura fazer uma intersecção/depuração entre diferentes formas de vida (estudar e rezar). A sua relação com as práticas judaicas começou nos anos 70 com uma Ever Shabbat (conferência de sexta-feira à noite) e solidificou-se com a preparação, em diálogo com o rabi local, do bar mitzavh para o seu filho Samuel.
Putnam refere a meditação transcendental muito em voga nesses anos: "... Pensei: bem em vinte minutos posso rezar as orações judaicas tradicionais (daven). Porquê experimentar algo vindo de outra religião? (...) Descobri que era uma actividade transformadora" (p.3).
A questão de como lidar com o lado religioso da vida surgiu também da reflexão sobre a linguagem religiosa de Wittgenstein, em particular sobre a ideia de que "para o homo religiosus, o sentido das suas palavras (...) está profundamente interligado com o tipo de pessoa que o indivíduo religioso particular escolheu ser e com as imagens que são a fundação dessa vida individual" (p.5). O ponto importante que ajudou Putnam a reconciliar os vários níveis da sua vida foi o facto de, em 1997, ter decidido leccionar um curso de filosofia judaica, curso este que está na origem do livro.

(LFB)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

EU DIRIA QUE:

A nova secretária da educação - conduzida pela mão experiente de César - ao retirar a investigação da grelha da avaliação e ao afirmar que vai desburocratizar a escola, é mais uma a juntar ao grupo daqueles que confundem as árvores com a floresta.
Alterando um (1) item na grelha, cede aos representantes dos sindicatos (por vezes, "profissionais do sector") que devem agora estar muito felizes, mas não percebe que o mal está por toda a grelha - subjectividade e ambiguidade parecem não ser preocupações nem para eles nem para ela.
Participar em projectos de investigação é necessário em qualquer nível de docência, o que está mal é não haver tempo para o fazer. Reconhecessem isto os "lutadores" e poderiam ter exigido quatro dias de aulas e um de liberdade para investigar. Como é óbvio sem investigação individual não se pode nem ensinar nem saber (neste contexto investigar é igual a ler, falar e escrever sobre o que se lê), ah mas isso é demais para os professores. "Trabalho em equipa", isso sim. Para isso temos tempo.
O resultado, já se vê: professores todos iguais, redondinhos, sem nada na cabeça (= é sempre a mesma matéria), mas com muita dinâmica (= conversa de café) e trabalho em equipa (= uns trabalham - esteja descansado, há sempre um - e todos assinam).
A ideia de desburocratizar é óptima, não fosse ela mais uma armadilha em que a senhora educadora de infância caiu. Ainda que tal palavra funcione como calmante para os lutadores, isso implicaria uma nova maneira de olhar para a docência - basicamente reconhecer que o trabalho de um professor é dar aulas sob condições dignas (coisa que nem todos os professores desejam) - que teria de passar pela alteração profunda do Estatuto, das escolas, dos auxiliares. E não é todo o conteúdo da grelha uma grande burocracia?
Alterações profundas, não. Desburocratização, sim.
Como educadora de infância e leitora (tem que ter investigado alguma coisa, ou não?) talvez tenha tropeçado na ideia de que transformar "jardins-de-infância" em bunkers gigantes (eu conheço um (e você?) onde as criancinhas almoçam numa sala cuja única janela para o exterior é uma televisão ("é para entreter"), antes chamavam-se a estes espaços arrecadações agora: "sala multiusos") sem espaços verdes, com pouco luz, e com a gritaria de centenas de miúdos de outros níveis de ensino como pano de fundo, é algo monstruoso e que ilustra bem o desrespeito com que esta sociedade trata as suas crianças. Ah, mas isto já é outro post.
- Então o que é que, do seu ponto de vista , vai mudar? Bom, não sabemos até porque, para além de que a senhora educadora é do PS não se vê o seu "saber". Foi apresentada por César como tendo mestrado em ciências da educação. Mas também o Sr. Contente como professor universitário!
- Eu diria que: é preciso mudar para que tudo permaneça na mesma (perdoe senhor Lampedusa pela desproporção qualitativa).



(LFB)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

«nunca li outro livro que me fizesse lembrar tanto a Bíblia como O Castelo»

"Ao mesmo tempo que Rosenzweig estava a escrever Compreendendo o Doente e o Saudável - Uma visão do Mundo, do Homem e de Deus (Understanding the Sick and the Healthy, na tradução inglesa)", Franz Kafka estava a trabalhar no Castelo. Neste livro um agrimensor, K, recebe uma chamada para trabalhar num castelo; ao chegar à aldeia que é dominada pelo castelo descobre que o castelo lhe é inacessível, que nem mesmo os oficiais de mais baixa patente podem ser contactados e que a sua crença de que foi chamado não pode ser verificada. Os aldeões, que vivem sem colocar questões e estão protegidos por um sentido ingénuo de segurança, olham para K como um estranho: «não precisamos de um agrimensor, os limites das nossas terras estão bem definidos». K permanece isolado quer do castelo quer da aldeia. O seu conhecimento afasta-o das pessoas que nada sabem, mas ele não consegue trazer esse conhecimento para a vida porque a vida real, eterna e significativa está no castelo e inalcançável para o homem que tem saber. A situação trágica do homem resulta do facto de ter comido da árvore do conhecimento e de não ter comido da árvore da vida" (...) Com a expulsão do Paraíso o homem perdeu o seu nome (os heróis de Kafka usam apenas a letra inicial), perderam a linguagem (não há verdadeira comunicação), perderam o seu amor (apenas o sexo permanece); o tempo que poderia ser agora o do homem, não é outra coisa senão eternidade paralizada, distorcida e confusa. Homem (K), Mundo (aldeia) e Deus (castelo) existem, mas as suas existências não estão correlacionadas.
Rosenzweig percebeu que Kafka estava lidar com um problema bíblico genuíno e afirmou: «nunca li outro livro que me fizesse lembrar tanto a Bíblia como O Castelo». Rosenzweig encontra o homem exactamente onde Kafka o deixou. À questão bíblica de Kafka, o escritor existencialista, Rosenzweig, o pensador co-existencialista, fornece a resposta bíblica, pois ele admite a ideia bíblica de revelação (amor). Assim o homem encontra o seu lugar ao lado do seu companheiro, no mundo e perante Deus. Ele fala e falam com ele. É chamado pelo seu nome e nomeia os seres à sua volta. Ultrapassou a sua desconfiança sobre o tempo, aprendeu a esperar (o homem, diz Kafka, foi expulso do paraíso por impaciência) até que «compreende no tempo certo,» até que o tempo se torne um espelho da eternidade."

Nahum Glatzer, introdução ao livro de Franz Rosenzweig, Understanding the Sick and the Healthy - A view of World, Man, and God, (com uma introdução de Hilary Putnam), Harvard U.P.,1999, p.31-32. (tradução livre LFB)


Esta citação/tradução surge do facto de eu, após ter começado a ler o muito recente livro de Putnam, Jewish Philosophy as a Guide to Life: Rosenzweig, Buber, Levinas, Wittgenstein, (Indiana U. P. 2008) do qual espero apresentar aqui algumas notas e traduções, ter pegado de novo no pequeno livro de Rosenzweig que é, entre muitas outras coisas importantes, uma refutação da ideia de que "a filosofia pode fornecer conhecimento das essências" (Putnam, 17).

(LFB)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

"Resistir muito, obedecer pouco."
(Walt Whitman)


Aproveito que estou em greve (já lá vamos aos motivos) para escrever algumas coisas sobre o estado da educação nos Açores.
Na educação as coisas também estão como César quer.

Desde há vários anos que a política educativa tem sido feita na base do tirar muito com uma mão e, depois do diálogo com os sindicatos (depois da 'luta' como estes gostam de dizer), dar um pouco menos com a outra.

Nas escolas açorianas não há distinção entre professores titulares e professores não titulares, nem há cotas para progressão. E ainda bem, uma vez que tais distinções constituem uma violação do princípio fundamental da igualdade de oportunidades.
Mas tal não significa que por aqui as coisas não estejam mal.
Independentemente do que venha a ser a avaliação nas escolas açorianas, elas estão transformadas (e não é de agora) em espaços de ilusão:

a) a ilusão do sucesso: o que importa é o sucesso (significa passar de ano, quer se saiba quer não, ou mudar de escalão quer se saiba quer não). Mas o sucesso é uma coisa para o Marco Paulo, é uma categoria do espectáculo. Na escola o que importa é saber e agir. E quem não sabe tem que aprender; quer seja aluno quer seja professor;

b) a ilusão da igualdade: somos todos iguais, não há bons nem maus, há é 'dinâmicas' e 'interacção'. E muita ignorância à mistura. O que os professores precisam é de exigir respeito e reconhecimento da sua autoridade educativa. Uma autoridade, por natureza, nunca pode ser igual. Se os professores se afirmassem - não apenas pela via de estarem a ficar mais pobres e sem poder de escapar - mas pela via da autoridade científica; apresentando projectos realizáveis dentro da escola, investigando, melhorando e avaliando as suas práticas, criando espaços internos de discussão, criando, criando, criando uma escola como quem cria uma criança… Acima de tudo mostrando-se capazes de exigir respeito - então poderiam argumentar: alto lá, quem manda aqui somos nós;

c) a ilusão de que qualquer um pode ensinar e os que já ensinam já sabem: ser professor é ser investigador e quem não investiga não pode e, portanto, não deve, ensinar. A investigação faz-se de muitas maneiras; envolve experiência, muita leitura, discussão crítica, escrita e humildade. Nada disto é permitido nas escolas. Não há tempo, dizem. Então o que preciso é mais tempo para se poder ser professor;

d) a ilusão da avaliação: o modelo de avaliação, introduzido à pressa nas escolas, nada avalia. Para além de ter criado num só dia (por artes mágicas a que alguns chamaram 'acção de formação'!) um conjunto de professores avaliadores - pobre ilusão esta de se pensar que qualquer um pode avaliar seriamente qualquer um - baseia-se num "conjunto de evidências" que ou são subjectivas ou são facilmente manipuláveis, ou as duas coisas.Para se avaliar o trabalho de um professor é preciso ter mais conhecimentos (e não só mais experiência), ter feito investigação prolongada no domínio da pedagogia e da didáctica, ter sido avaliado por pessoas com mais sabedoria. Nas escolas há poucas pessoas com este saber, logo a avaliação dos professores não pode ser feita por pares.
A avaliação deveria basear-se em três pilares: i) uma avaliação externa dos professores feita por investigadores doutorados; ii) uma avaliação feita com base naquilo que os alunos realmente sabem ao fim um ciclo - um exame externo aos alunos que permitisse ver o que é que os professores ensinaram ou não ensinaram; e iii) uma avaliação feita com base no trabalho de investigação de cada docente - formação que deveria ser feita no local de trabalho, ao longo do ano escolar e orientada por especialistas, no fim do ano o docente apresentaria à comunidade a sua investigação;

e) a ilusão de que o importante é fazer, sem questionar, aquilo que nos pedem, por muito absurdo que isso seja. Os professores ocupam muito do seu tempo com tarefas burocráticas, repetitivas e, em muitos casos, desnecessárias, só porque sim.
Não, o que realmente importa é garantir a liberdade. Em primeiro lugar, a liberdade do professor enquanto professor: o professor é livre porque sabe. Tem um saber a transmitir, pode decidir o que fazer, como fazer, o que avaliar e deve ser livre no trabalho e na avaliação que faz - livre de politiquices e de pequenos favores, de fazer de conta, de assistir a reuniões entediantes e vazias, livre para recusar tarefas que atentam contra a sua dignidade. Mas a liberdade implica mostrar competência científica, pedagógica e didáctica - são estas as condições essenciais para uma escola séria e para garantir qualidade e independência. Isso consegue-se com estudo e requer manutenção constante e demonstração, demonstração essa que passa pela avaliação objectiva por uma entidade externa, de preferência estrangeira.

Triste país aquele que tem medo de ser livre.

É por tudo isto que hoje faço greve.


(LFB)

A política açoriana

Ao contrário das aparências, a política nos Açores está como César quer que ela esteja.
O número de deputados,  em vez de reduzir, aumentou - actualmente são 57 para 250 mil habitantes. Se as outras regiões do País seguissem a mesma insanidade seriam precisos 2200 deputados para representar todos os portugueses!
Somos uma região ultra-periférica, com especificidades próprias, dizem-nos. Pois, pois. E Vinhais não? E Jorumenha não? Só um raciocínio do mais provincianismo imaginável pode dizer que as aldeias mais recônditas de Portugal não têm especificidades próprias, mas o Corvo têm.
É claro que o problema está nos Açores e não nas outras regiões. À custa da noção de autonomia, tornamo-nos uma região despótica, anticonstitucionalista (veja-se o desrespeito pelo constitucionalismo manifestado nos últimos meses), despesista, manipuladora, e onde a política é mera propaganda e divertimento - é nestas duas últimas categorias que entram coisas como o 'diálogo' com os sindicatos, governar para os açorianos, o futuro dos Açores, etc.
O líder demissionário do PSD, num raro momento de sinceridade, disse bem: "agora vou ser deputado e vou ter tempo para jogar bowling com o meu filho" (ao que se sabe, afinal já suspendeu o seu mandato de deputado, vai gerir uma empresa, mas voltará, quando ao bowling nada de novo).

Carlos César gritou democracia por terem sido eleitas outras forças políticas, mas é brincadeira. A questão é que, dado o sistema político e eleitoral vigente, as maiorias fazem o que querem. E pior, se não houver maioria a região torna-se ingovernável. Como César tem a maioria fará o que quer. Os Açores precisam é de um órgão com poder efectivo de avaliar as leis do governo e de as recusar por votação. Com excepção das leis de Base da República (segurança e pouco mais), César e o seu clã podem legislar como muito bem entenderem que ninguém pode fazer nada.

(LFB)

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

OBAMA



"Deixai que venham as consequências, isso não me importa. Nenhum homem pode sofrer em demasia, nem tombar demasiado depressa, se sofrer ou se tombar em defesa das liberdades e da Constituição do seu país".

Daniel Webster, in John F. Kennedy, Retratos de Coragem (Profiles in Courage), Esfera do Caos, p.109.

(LFB)

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

ROMA de Steven Saylor

"Que mal nos fizeram os clusinos? - perguntou Breno. - O mal de terem demasiado, enquanto nós temos muito pouco! O mal de serem poucos enquanto nós somos muitos! Quanto aos deuses, é possível que os vossos sejam diferentes dos nossos, mas a lei da natureza é igual em toda a parte. Os fracos submetem-se aos fortes. Assim é entre os deuses e entre os animais, como é entre os homens. E, pelo que ouvi contar, os Romanos são iguais a nós. Vocês não andaram também a apoderar-se do que pertencia aos outros, reduzindo homens livres à escravatura, pelo simples facto de serem mais fortes do que eles e porque isso vos convinha? Bem me parecia!"
(p.285)


domingo, 28 de setembro de 2008