Gravações do Trio Fragata no bandcamp

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Nathaniel Hawthorne, A letra Encarnada (The Scarlet letter), tr. Fernando Pessoa, Pub. D. Quixote, 2009
"É uma boa lição - ainda que por vezes dura - para um homem que sonhou com a glória literária, e com o talhar-se um lugar, por esse meio, entre os grandes do mundo, o sair um pouco do círculo estreito dentro do qual se aceitam suas pretensões, e ver quão vazio de sentido, fora desse círculo, é tudo quanto ele faz ou quer." ( "alfândega, introdução a A Letra Escarlate, p.25")
"...o facto é que ela sentia ou imaginava que a letra encarnada a tinha dotado de um novo sentido. Estremecia ao crer, mas não podia deixar de crer, que lhe dava um conhecimento sensível do pecado oculto em outros corações." (85)
"Quando uma multidão inculta tenta ver com os próprios olhos, corre grande risco de enganar-se. Quando, porém, forma o seu juízo sobre as intuições do seu grande e ardente coração, as conclusões a que assim chega são muitas vezes tão profundas e certas que assumem o aspecto de uma verdade sobrenaturalmete revelada." (128)
"O público é despótico por natureza; é capaz de negar a justiça vulgar quando insistentemente se lha exige como um direito; mas com igual frequência dará mais que justiça, quando o apelo é feito, como os déspotas gostam que se lhes faça, inteiramente para a sua generosidade." (166)
"O futuro está ainda cheio de experiências e de triunfos também. Há felicidade a gozar! Há bem a fazer! Troca esta vida falsa por uma vida verdadeira. (...) Levanta-te e parte." (206)
"Nenhum homem, durante um espaço razoável de tempo, pode usar uma cara para si e outra para a multidão, sem que por fim fique confuso sobre qual delas é a verdadeira" (227)
"Era uma época em que o que chamamos talento tinha muito menos consideração do que tem agora, mas em que os materiais pesados que produziam a estabilidade e a dignidade do carácter tinham muito mais." (248)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

- Poderíamos ficar, para toda a eternidade, a ler contos filosóficos, o que acham? - Perguntou um mestre aos seus discípulos, depois de lerem alguns contos do livro Tértúlia de Mentirosos - Contos Filosóficos do Mundo Inteiro.
Ao que uma discípula respondeu - toda a eternidade não, porque eu tenho que ir pagar a caixa à minha mãe!

(LFB)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O inquérito educativo

"Enfim, a hipnopedia, a maior força moralizadora de todos os tempos. (...)

- Até que o espírito da criança seja essas coisas sugeridas e que a soma dessas coisas sugeridas seja o espírito da criança. E não apenas o espírito da criança, mas igualmente o espírito do adulto, e para toda a vida. O espírito que julga, deseja e decide, constituído por essas coisas sugeridas. Mas todas essas coisas sugeridas são aquelas que nós sugerimos, nós!

- Com entusiasmo, o Director quase gritou. - Que o Estado sugere. "

(Huxley, A., Admirável mundo Novo, (tr.M.H.L.) Livros do Brasil,p.44. Os itálicos estão no texto original e são muito significativos)

Vivemos também o tempo dos inquéritos. Ninguém sabe nada sobre nada, por conseguinte, só realizando inquéritos vagos e preenchidos à pressa é que podemos saber o que se deve fazer. Na maioria dos casos, decide-se a posteriori, sem ter em conta o que quer que seja e na esperança de que os inquiridos fiquem com a ligeira sensação que contam para alguma coisa. Noutros casos, o que se faz é, vagamente, aquilo que a maioria dos inquiridos deseja, o que, como é de ver, nem sempre é o melhor.

Os dirigentes educativos regionais, como era esperado, andam sem norte e a bater pano (e os nacionais como andarão? Antes, diziam-me que na RAA um professor estava melhor do que 'lá fora', de repente, parece que é ao contrário...). Paulo Portas gritou a necessidade de repor a autoridade dos professores e logo chegaram às escolas pedidos de parecer sobre o tema. Muitas sugestões e indicações foram dadas pelas escolas. Resultado: nada e, dado o significado de autoridade docente, outra coisa não seria possível.

Fala-se de desburocracia. Resultado: os directores de turma deixaram de controlar as faltas dos professores do conselho de turma, coisa que já há anos é considerada absurda; embora muitos professores o fizessem, como noutras acções do mesmo género, de bom grado. Pensar que a imensidão de burocracia que submerge as escolas é aliviada com uma medida particular revela bem o rumo desta política educativa. Mas de imediato tal medida é anunciada em jornais e telejornais como medida exemplar de desburocratização.

A RTP-Açores e os jornais anunciaram, em voz pretensamente neutra, que no início do ano lectivo, todos os professores tiveram acções de formação sobre avaliação. Resultado: um professor dito formador passa um dia inteiro a ler em powerpoint o texto que todos os formandos têm nas suas mãos na vã esperança - e contra todas as boas regras didácticas e pedagógicas - que toda aquela massa de orientações, sugestões, critérios e grelhas fique, em triex (3X quer dizer: leitura em voz alta do texto projectado que é lido pelo leitor e ouvinte; espécie de hipnopedia), gravada nas cabeças vagamente atentas e prisioneiras da e na última sexta-feira antes do início das aulas.

No dia-a-dia, proliferam comissões que planeiam inquéritos sobre os mais variados assuntos mas que não têm tempo para perceber até que ponto são inúteis.

Ninguém parece olhar à sua volta. E esse é o grande objectivo político.

Todos projectam o seu futuro longe de tudo isto. E o futuro nunca foi problema político.

LFB

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Machado de Assis, Dom Casmurro, (Pub. D. Quixote, 2009)


"Os sonhos do acordado são como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinações e das nossas recordações." (p.75)



"Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos." (p.138)



A natureza é simples. A arte é atrapalhada." (p. 208)

sexta-feira, 31 de julho de 2009

inconstitucionalidades

Ontem o Tribunal Constitucional declarou várias normas do Estatuto Político Administrativo dos Açores inconstitucionais. É também para isso que serve a Constituição da República; para se perceber que a política não é só interesses partidários, jogos eleitorais e conveniências para iludir os eleitores. A política é também - e deveria sê-lo em primeiro lugar - o respeito pela Lei fundamental. Agora todos os senhores deputados da assembleia da República e da Regional - o estatuto foi aprovado por unanimidade - encabeçados por César façam favor de dar a mão à palmatória e retirar as insconstitucionalidades. Agora e já que é tempo de eleições.

(LFB)

Contra biotério em Portugal

Para quem está, de facto, preocupado com o bem-estar animal e não apenas com o humano, aqui está algo que vale a pena ser contra.





sexta-feira, 19 de junho de 2009

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Jacques Ellul sobre técnica e televisão

"(...)

Em primeiro lugar, a técnica como um sistema obedece à sua própria lei, à sua própria lógica. Por outras palavras, estamos a lidar com uma autonomia da técnica, um fechamento da técnica em si própria. A margem de possibilidade de intervenção vinda de fora - da economia, da politica ou de outro qualquer domínio - é muito pequena. Para além disso, a técnica é autónoma no que diz respeito à moralidade, à política e por aí adiante.(...)
Ao descrever o sistema como autónomo, não quero dizer uma autonomia capaz de se direccionar e de se reproduzir a si própria sem a intervenção humana. O que acontece é que o sistema determina quem deve tomar as decisões e quem deve agir. As únicas acções e decisões permitidas são aquelas que promovem o crescimento da técnica. O resto é rejeitado e rapidamente esquecido. Aqueles que tomam as decisões não são nem peritos em arte, nem cépticos, nem críticos, nem pessoas livres de obrigações. Desde a infância que se acostumaram à técnica: sentem que apenas a técnica é importante e que apenas o pensamento progressivo é válido: aprenderam técnicas para o seu trabalho e para o seu lazer. Deste modo as suas decisões suportam sempre a autonomia da técnica.
Aqui surge um problema. A técnica, como qualquer sistema, deveria ter a sua auto-regulação, o seu feedback. Contudo, não é nada disto que acontece. Por exemplo, se se observa um conjunto de efeitos negativos causados por um grupo de técnicos, deveríamos não apenas reparar os danos mas ir até à origem das técnicas envolvidas e modificar a sua aplicação na origem - no caso dos fertilizantes, por exemplo, ou relativamente a certos métodos de trabalho, ou produtos químicos. Mas esta acção nunca é tomada. Preferimos que os revezes e os problemas se desenvolvam (sob pretexto de que não estão completamente demonstrados) e preferimos criar novas técnicas para "reparar" os problemas. De facto, isto implica um feedback positivo. Não há nenhum tipo de auto-regulação no sistema da técnica. Isto não quer dizer que não seja um sistema. Mas significa que estamos a lidar com um sistema que perdeu o controlo - um sistema incapaz de se auto-controlar. Por isso, contrariamente ao que possamos acreditar, não podemos esperar nenhuma racionalidade. Isto, posso dizer, será o principal perigo, a principal questão quando nos pensamos como estando dentro do sistema. Este é um primeiro conjunto de consequências.
Um segundo conjunto de consequências é que, contrariamente ao que normamente fazemos, já não podemos entender a técnica em si mesma. E isto porque ela existe apenas em termos do todo. Contudo, isto é o que sempre fazemos quando, por exemplo, pensamos na televisão. Perguntamo-nos: "quais os efeitos da televisão? poderá alguém escapar ao impacto da televisão? Poderá alguém controlar a televisão?" A reacção é sempre totalmente elementar: "eu não estou nem um bocadinho viciado em televisão. Eu posso desligar o meu televisor sempre que quiser. Eu sou completamente livre." Respondemos como se a a televisão fosse um fenómeno separado, como se fosse independente do sistema. O mesmo se pode dizer do automóvel. (...)
Contudo, se quisermos compreender a televisão, temos que colocá-la dentro do sistema da técnica, isto é, temos que relacioná-la com a publicidade, com o facto de que o mundo se está a tornar cada vez mais num mundo visual, com o facto de estarmos constantemente a aprender que apenas as imagens correspondem à realidade ou com o facto do consumismo crescente. É este o mundo em que estamos constantemente obrigados a manter-nos actualizados acerca de tudo o que acontece. De maneira nenhuma sou livre de ver, ou de não ver, televisão porque amanhã de manhã as pessoas falarão comigo sobre tal e tal programa, e eu não quero ficar à margem do grupo.
Do mesmo modo, faço parte de um mundo no qual as operações técnicas requerem um certo conhecimento. Não posso entrar num meio ou num trabalho se não possuir conhecimentos, e uma boa parte destes conhecimentos são transmitidos pela televisão. Por conseguinte, na realidade, eu não sou independente do meu televisor. Ele pertence-me e eu estou integrado numa totalidade que é a sociedade dominada pela técnica, daqula a televisão é uma parte e eu sou absolutamente não livre nas minhas escolhas, nas minhas decisões.
Aparentemente, posso decidir não ver um certo filme ou um certo programa. Mas tenho eu a certeza de que posso decidir isso? Eu sou também uma pessoa que passa o dia num trabalho técnico, dessinteressante, repetitivo e tudo menos absorvente. À noite o que faço eu para relaxar e aliviar a tensão nervosa crescente que experienciei durante o dia? Televisão. Por isso, num certo sentido, eu vejo televisão ao fim do dia como recompensa e isto é também causado pelo facto de eu viver neste meio. Logo, sou absolutamente dependente no que diz respeito à televisão e de nada serve tentar compreender os efeitos da televisão como um fenómeno isolado. O verdadeiro problema é a situação dos seres humanos na totalidade da sociedade dominada pela técnica."


(Ellul, Jacques, (ed. Willem H. Vanderburg) Perspectives on our age - Jacques Ellul speaks on his life and work, Anansi, 2004, pp.51-54. Tr. LFB)

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Os Açores

Os Açores são um pequeno jardim.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

O processo

"
... A civilização ocidental é composta de comunidades ligadas entre si por um processo político e pelos direitos e deveres do cidadão, nos termos em que este [estes] é definido por aquele processo. É paradoxal o facto de ser a própria existência deste processo político que nos permite viver sem política. Tendo entregue a tarefa da governação a instâncias definidas, ocupadas sucessivamente por indivíduos que estão ao serviço, e não acima, de quem os elegeu, podemos dedicar-nos ao que nos verdadeiramente importa: os interesses privados, os afectos pessoais e os costumes sociais nos quais encontramos satisfação. Ou seja, a política permite separar a sociedade do estado, retirando assim a política da nossa vida privada. Onde não existe processo político não existe esta separação. Num estado totalitário ou numa ditadura militar tudo é político precisamente porque nada é político. Onde não existe processo político, tudo o que acontece diz directamente respeito a quem está no poder, uma vez que tudo representa para este uma ameaça potencial."

(Scruton, Roger, O ocidente e o Resto, Guerra e Paz, tr. V.F.P., 2006, pp.30-31[infelismente, a tradução e a revisão do livro revelam-se fracas])

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Como se percebeu, pela lista das pessoas que votaram a favor e contra a sorte de varas (dos deputados da Terceira só um votou contra - o do Bloco de Esquerda), a discussão não era, afinal, sobre ética animal mas sim mais um episódio do eterno despique entre a Terceira e S.Miguel.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Animais

"Não gostamos de considerar como iguais os animais que por nós foram escravizados."
(Darwin, 1837)

"Todos os animais, excepto o homem, sabem que a principal regra da vida é viver bem (enjoy it) e eles vivem bem tanto quanto o homem e outras circunstâncias o permitem."
(Butler, 1903)

"Quatro pernas bom, duas pernas mau."
"Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que outros."
(Orwell, 1945)

O touro às vezes sofre: a prova?

Nesta coisa de toiros a razão parece ter muito menos peso do que a emoção e isto de ambos os lados da discussão.

Os defensores da introdução da sorte de varas andam no parlamento regional meio escondidos (um está mesmo desaparecido) e sem terem a certeza do que vai realmente acontecer. A pressão económica associada ao ímpeto irracional do turismo não parece ter sido suficiente para convencer a maioria. Folia, dinheiro e tradição nunca se deram bem com a avaliação serena de razões.
Do lado dos amigos dos animais, vejamos a opinião do professor Carlos Enes. Para ele, as touradas à corda são "brincar com os toiros". E é bonito ver o povo. Mas as touradas na praça já são uma barbárie. Pergunto eu, que sou um defensor do vegetarianismo (apesar de nem sempre ser vegetariano): como é que o Exmo. professor prova que o sofrimento total dos touros à corda (incluindo transporte, estacionamento e corrida, por vezes bastante sanguinária como se sabe, embora o sangue não seja, necessariamente prova de sofrimento) é menor do que o provocado nas touradas de praça? E, admitindo que é menor - o que não me parece nada claro - por que é que isso tornaria as touradas de corda eticamente aceitáveis? Não pode ser apenas por tradição. Como sabemos os argumentos baseados na tradição são altamente falaciosos. A escravatura já foi tradição e tivemos que acabar com ela. O incentivo ao consumo de álcool por menores é tradição nos costumes das "nossas gentes", mas teremos que acabar com ele. Simplesmente porque é errado.

(LFB)

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Uns gostam do toiro, outros não!

Os argumentos contra a legalização da sorte de varas nas praças de toiros açorianas são, do ponto de vista ético, bastante fracos. Podíamos pensar que é uma questão de impedir o sofrimento e a dor do toiro. Mas vistas as coisas em termos do tempo de vida do animal, é certo que o toiro é dos animais com mais qualidade de vida, no cômputo geral. Pelo que, na relação custos/benefícios, mesmo aceitando que há grande sofrimento durante o tempo em que o toiro está na praça, isso não será suficiente para retirar a dignidade de toda a sua vida. Em prol da coerência, veja-se como outros animais, comparativamente, vivem toda, ou grande parte, da sua vida em grande stress e sofrimento. Muitos deles nem sequer chegam ver a luz do dia uma única vez. Refiro-me à designada indústria das carnes – olhem bem para a falta de qualidade de vida dos porcos, vacas, galinhas, já para não falar nos animais aquáticos, dos circos, das experiências de laboratório... A questão a colocar aos defensores da não introdução da sorte de varas é a de saber se estão prontos a levar os seus argumentos até ao ponto de terem que defender o fim das criações intensivas de animais para alimentação humana (vulgo fábricas de carne), de fechar ou alterar drasticamente os matadouros e talhos e de reflectir sobre a linguagem - essa sim obscena, e nada artística - a eles associada. No fim, trata-se de saber se estão prontos a abandonar o bife e o frango em prol da defesa dos animais. Se estão prontos para isso, então têm muito trabalho pela frente e nesta luta os problemas dos toiros são uma insignificância (a título de exemplo, basta pegar em qualquer manual de ética animal e ver que a questão dos toiros é claramente marginal ou inexistente). Se não querem abandonar o prato de carne – e há boas razões para não o fazerem – então estão metidos numa inconsistência flagrante.
A questão que valeria a pena discutir é a da natureza perversa de um estatuto político que, para além de nos separar cada vez mais de Portugal (como se fosse viável não sermos portugueses), permite a aprovação de qualquer lei com o fundamento do “interesse publico”, seja lá o que isso for. Se é possível introduzir uma coisa que não é tradição nos Açores, então o que não será possível fazer? Enredados nas malhas dos Media - basicamente um instrumento de propaganda do governo, veja-se como a questão do estatuto e agora a dos toiros foram usadas para distrair e não avaliar as políticas desastrosas de César na saúde e na educação, só para falar em duas áreas– os defensores do bem-estar total do toiro não parecem estar genuinamente interessados em discutir o sofrimento animal e as suas implicações nem em discutir a governação invisível de César e o totalitarismo impune resultante de um estatuto duvidoso que permite desrespeitar a Constituição e as leis gerais da República com a maior das facilidades.
Que fique claro que a argumentação para a introdução da sorte de varas não é, do meu ponto de vista, melhor. É populista e impõe rotundas com toiros monumentais que quase ninguém pediu mas que todos vamos pagar, e é sectária com colóquios e conferências onde não se vislumbra uma única voz contra. Mas, pelo menos, não é inconsistente.
A questão fica então resumida a uma posição subjectiva: uns gostam de toiros, outros não; saber quem está de que lado, não é fácil. Eu não gosto particularmente de touradas, mas já vi touradas à corda picadas na ilha Terceira, e são tradição! Choca-me, contudo, muito mais toda a linguagem obscena da alimentação e indústria carnívoras e o tratamento violento dados a esses animais e a forma como tudo isto é quase natural e universalmente aceite.

(LFB)

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Os filósofos e o nazismo (2)

"Salvo raras excepções, os filósofos académicos têm tido pouco que dizer sobre o holocausto. Houve um tempo em que considerei isso um ultraje. Como é que uma disciplina que examina os valores e as aspirações humanas pode ignorar um dos mais significantes - senão o mais significante - acontecimento do século? Desdenhamos correctamente os cientistas e professores que na Alemanha continuaram os seus estudos cercados por algum do mais demoníaco mal alguma vez imaginado. Como é que os podemos criticar se a comunidade filosófica actual não vê nada no holocausto que valha a penas discutir? A não ser que defendamos a tese duvidosa de que a filosofia não tem nada que ver com as circunstâncias históricas nas quais é feita, temos que perguntar como é que os acontecimentos na Alemanha forçam um reexame das categorias filosóficas." (...)

Kenneth Seeskin, "What Philosophy Can and Cannot Say about evil", in Morgan (ed.) A Holocaust Reader, O.U.P., pp.321-322, (Tr. LFB)

domingo, 19 de abril de 2009

Os filósofos e o nazismo (1)


Jonathan Glover, Humanity – A moral History of the Twentieth Century, Yale U.P., 2001
"

O caso Martin Heidegger
Martin Heidegger que descobriu em si próprio a missão de re-acordar as pessoas para a compreensão do Ser, foi o mais famoso filósofo a apoiar os nazis. O seu entusiasmo foi muito mais além do conformismo; as suas aulas e conferências incluíam a saudação nazi. Ele foi contra a influência judaica na vida cultural alemã: em 1929 escreveu, “ou voltamos a encher a nossa vida espiritual com forças e educadores nativos genuínos ou então rendemo-nos de uma vez por todas à Judaicização crescente “(…).
O interesse pelo lado corporal do Ser ia muito mais além de fazer o pino. Quando Karl Jaspers lhe perguntou: “Como pode um homem tão ordinário como Hitler governar a Alemanha?” Heidegger respondeu, “A cultura não tem importância. Olha só para as suas maravilhosas mãos.”
(367-8)
Uma nota sobre Gottlob Frege
(…) [Frege foi outro dos filósofos que acreditou no anti-semitismo.] (…) Frege tinha as coisas na sua mente muito bem separadas. Quando pensava sobre filosofia e lógica, não ligava a convencionalismos. Destruía-os através de argumentos e construía alternativas racionalmente fundamentadas. Quando pensava sobre a sociedade e sobre a política, aceitava de forma acrítica os piores e os mais convencionais preconceitos do seu lugar e do seu tempo.
Existe a esperança de que o hábito filosófico de expor certas afirmações ao pensamento claro e racional torne mais difícil a sobrevivência de preconceitos e de crenças injustificadas. A história de Frege é, para aqueles de nós que têm esta esperança, um desânimo. Ela mostra como mesmo um trabalho soberbo na filosofia pode deixar o resto do pensamento de uma pessoa intocável. A aceitação acrítica de um conjunto de crenças religiosas não impede a obtenção de prémios e distinções na Biologia molecular ou na Química. A Filosofia, feita ao estilo de Frege, torna-se também uma matéria técnica entre outras.
Muita da Filosofia Ocidental recente tem sido dividida em tradição “analítica” que teria começado com Frege, e tradição “continental” que teria começado, pelo menos em parte, com Heidegger (os nomes, de forma absurda, contrastam um método de pensamento com uma localização geográfica). As histórias de Heidegger e de Frege são uma caricatura hostil das duas tradições: uma cheia de retórica intelectual e sonante a condição humana, mas incapaz de colocar criticamente questões ao nazismo; a outra cheia de análise lógica, mas mantida separada de todo e qualquer importância humana.
Os erros de Heidegger têm sido repetidos muitas vezes. Dado o mérito de Frege como filósofo, o seu falhanço frente ao nazismo é mais perturbador. Nenhum filósofo seguiu as suas visões políticas. Alguns dos seus seguidores, como Michael Dummett, expressaram repugnância pelo seu pensamento político. Todavia, na filosofia actual, existe alguma pressão para tratar a filosofia de forma compartimentada, tal como Frege fazia.

Não é mau que algumas pessoas o façam. Existem muitas formas de fazer Filosofia e nem toda a gente pode pensar em todos os assuntos. Há espaço para filósofos especializados em questões altamente abstractas e com um domínio restrito. Todavia, seria uma perda se isto se tornasse a norma. Tal coisa impediria a Filosofia de criar dificuldades à crendice.
(376-378)

"

Tradução e adaptação de LFB. Excertos retirados de Glover, J., Humanity – A moral History of the Twentieth Century, Yale U.P., 2001

sábado, 21 de fevereiro de 2009

JOHN UPDICKE

Estados Unidos

1932-1993


AÇORES


Grandes navios verdes

eis que navegam

ancoradas, para sempre;

sob as águas


enormes raízes de lava

prendem-nas firmes

a meio do Atlântico

ao passado


Os turistas, pasmando

do convés

proclamam aos guinchos lindas

as encostas malhadas


De casinhas

(confettis) e

doces losangos

de chocolate (terra).


Maravilham-se com

os campos graciosos

e os socalcos

feitos à mão para conter


Os modestos frutos

das vinhas e das árvores

importadas pelos

portugueses:


paisagem rural

vindo à deriva

de há séculos;

a distância


amplia-se.

O navio segue,

Outra vez a constante

música alimenta


um vazio à popa,

os Açores sumidos.

O vácuo atrás e o vácuo

à frente são o mesmo.


Poesia do Século XX (ant., tr., pre. e notas de Jorge de Sena, Fora do Texto, 1994, pp.454-455)

domingo, 8 de fevereiro de 2009

A Inquietação humana e o estudo da shoah

“Toivi estava bem ciente de que ajudava os nazis a fazer funcionar o campo, muito embora o aceitasse a contragosto. Na verdade, era claro para ele que a tarefa de cortar cabelos, separar peças de vestuário, retirar as bagagens dos comboios, limpar o campo – a maior parte das tarefas práticas necessárias para a manutenção da capacidade operacional de Sobibór – eram levadas a cabo por judeus: «Sim», diz ele, «pensei sobre isto. Mas ninguém fazia nada. [Eu tinha] quinze anos e havia pessoas com experiência de adultos em meu redor que não faziam nada para contrariar essa situação. As pessoas mudam em determinadas circunstâncias. As pessoas perguntavam-me: “O que aprendeste?” E penso que só há uma coisa de que tenho a certeza – ninguém se conhece a si próprio. Encontramos uma pessoa simpática na rua, a quem perguntamos “Onde fica a Rua do Norte”, e essa pessoa é capaz de nos acompanhar ao longo de um quarteirão e indicar-nos a rua, sempre simpática e amável. Mas essa mesma pessoa, numa situação ou circunstâncias diferentes, pode ser o pior dos sádicos. Ninguém se conhece a si próprio. Todos nós podemos ser boas ou más pessoas, nestas [diferentes] situações. Por vezes, quando alguém é simpático, dou comigo a pensar: “Como é que ele seria em Sobibór?”».
(…) Toivi Blatt salienta o facto de haver uma mudança fundamental em circunstâncias extremas, a qual tem menos a ver com uma mudança comportamental – muito embora essa também ocorra – e mais com uma mudança que se verifica no essencial do carácter das pessoas. É como se as pessoas como Toivi Blatt, quando se encontravam nos campos, se tivessem apercebido de que os seres humanos têm semelhanças com os elementos susceptíveis a mudanças de acordo com a temperatura ambiente. Do mesmo modo que a água existe na sua qualidade de água somente a determinadas temperaturas, passando a ser vapor ou gelo em outras, também os seres humanos podem vir a ser pessoas diferentes de acordo com os extremos das circunstâncias.”
Rees, L., Auschwitz - os nazis e a «solução final» (Dom Quixote, Booket, tr. 2008, pp.291-292)

De forma recorrente, as pessoas que, de uma maneira ou de outra, deram conta do meu interesse pelo estudo dos diferentes aspectos da Shoah perguntam-me como é que eu suporto estudar e ensinar esse tema. Não fico eu deprimido? A questão é perturbadora e a resposta nem sempre está disponível de forma clara na minha mente. Várias coisas têm que ser equacionadas. É certamente verdade que a leitura de certos (e muitos) acontecimentos – como a descrição dos acontecimentos (colaboração e indiferença de muitos Franceses («desonra perpétua» p.166), frieza diabólica dos nazis, percepção sensível da devastação causada pelo “trauma emocional” (180) pelo qual os pais passavam ao ter que abandonar as suas crianças pensando que elas teriam alguma possibilidade de sobreviver) que terminaram em comboios carregados com milhares de crianças que haviam sido barbaramente separadas dos pais, também eles enviados para Auschwitz – provoca tristeza, choro, angústia e um nó na garganta que impede a respiração e obriga a colocar o livro de lado.
Mas, para alguém fortemente empenhado na questão de saber o que somos e o que andamos aqui a fazer, o estudo deste período histórico revela-se mais enriquecedor do que o melhor dos tratados sobre a natureza humana. Nada mais revelador do (in)humano do que os testemunhos das pessoas que sobreviveram ao horror nazi. Nada mais inquietante do que o testemunho, acima transcrito e com destaques meus, que mostra a fraqueza do nosso carácter e o quanto somos moldáveis, para o bem e para o mal; que mostra a total ignorância acerca de nós mesmos. O que eu sinto é que tenho a obrigação de, através do estudo e do ensino, narrar o que de mais verdadeiro e terrível há em nós. É sempre na desgraça (quer seja natural, quer seja moral) que nos revelamos. As consequências e as interrogações são muitas e variadas. O que dizer disso que hoje chamamos 'a nossa vida', será ela, por uma vez que seja, real e confiável? Os bons, sinceros e bem-intencionados sê-lo-ão realmente? Ou tudo não passa de uma vã aparência? E se fosse eu que tivesse vivido esse tempo? De que lado estaria? Como me comportaria? Seria um colaboracionista, um nazi, um kapo? Uma criança?:

“ «Parecia que tínhamos deixado de ser humanos.» Apesar de tudo, as crianças cantavam enquanto caminhavam para a estação” (175).

As questões são intermináveis e o que dizer do dever de ensiná-las? Que efeito produzirão nas mentes dos estudantes do ensino secundário? O que sei é que o ensino destas matérias - seja através da exemplificação ou do estudo aprofundado de uma questão - gera sempre um silêncio e uma atenção na sala de aula que revelam, pelo menos, que algo de fundamental está aqui em causa. Talvez resida aqui a esperança.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Adicionados à minha "wish list", depois da leitura do Público de sexta 30 de Jan.:

Michael Pollan, O Dilema do Omnívoro (D.Quixote, tr.2008);

Robert Skidelsky, John Maynard Keynes 1883-1946: Economist, Philosopher, Statesman, (Penguin);

Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism: The Founders, The Golden Age, The Breakdown, (Norton).

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Livros novos

adquiridos na nova livraria da Praia da Vitória que, de novo, volta a ter um espaço para venda de livros. Apesar de a livraria ser pequena, encontrei várias coisas interessantes e comprei três livros (todos com 10% de desconto). Os últimos dois já estavam na lista de desejados, o primeiro foi completa surpresa: eu sabia já da sua existência pois tinha visto o ano passado a série televisiva da BBC com o mesmo nome e conhecia outros livros do autor sobre a Shoah e o nazismo, desconhecia era a tradução que, até à página 74, se tem revelado excelente:
Laurence Rees, Auschwitz - os nazis e a «solução final» (Dom Quixote, Booket, tr. 2008).
Ron Aharoni, Aritmética para Pais, (Gradiva, temas de matemática, tr. 2008).


Janet Browne, A Origem das Espécies de Charles Darwin, Gradiva, Ciência aberta, tr. 2008.

Felicidades pois para a nova livraria.
De que vale uma cidade se não tem livrarias?

LFB

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Eu, hoje, reduziria a questão da educação a três termos:

Ler
falar
agir.

As três questões que cada um dos implicados no assunto deve responder são:

O que devo ler?

Com quem devo falar sobre o que li?

O que devo fazer para ensinar/educar/melhorar?


O resto são cantigas políticas/económicas/sociais com muitos erros à mistura.
(LFB)

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Porquê estudar a shoah?

“Teremos aprendido alguma coisa? As pessoas raramente aprendem a partir da história e a história do regime Nazi não constitui excepção. Também falhámos na compreensão do contexto geral. Nas nossas escolas falamos, por exemplo, de Napoleão e do modo como ele venceu a batalha de Austerlitz. Ganhou-a por si só? Alguém o terá ajudado nesse feito? Talvez uns tantos milhares de soldados? E o que aconteceu às famílias dos soldados mortos, aos feridos de ambos os lados, aos habitantes das cidades que foram destruídas, às mulheres que foram violadas, aos bens e posses que foram saqueados? Continuamos a ensinar acerca dos generais, acerca dos políticos e dos filósofos. Tentamos não reconhecer o lado negro da história – os assassínios em massa, a agonia, o sofrimento que, vindo de toda a história, nos esbofeteia. Não ouvimos o lamento de Clio. Continuamos a não compreender que nunca seremos capazes de lutar contra a nossa tendência para a aniquilação recíproca se não a estudarmos e a ensinarmos e se não enfrentarmos o facto de que os humanos são os únicos mamíferos capazes de aniquilar a sua própria espécie.”
BAUER, Yehuda, Rethinking the Holocaust, Yale U.P., 2001, p.262. (tr. L.F.B.)

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Putnam e a filosofia judaica (iii) "Rosenzweig on Revelation and Romance" (pp. 37-54).

"Aqui uma frase não se segue da sua antecessora, mas, e isto é muito mais o caso, da sua sucessora." (Rosenzweig, "the New Thinking", in Philosophical and Theological Writings, citado por Putnam, p.38)

A citação surge no contexto inicial do capítulo onde se fornecem algumas explicações sobre o porquê da obra principal de Rosenzweig - The Star of Redemption - , ao contrário de USH, ser uma obra muito difícil. A razão da dificuldade passa por ter que ler toda a obra e por perceber a crítica já apresentada à filosofia como a procura das essências. Rosenzweig ironiza com os filósofos que, lendo as primeiras páginas de uma obra e encontrando alguma falha lógica, dão por refutada toda a obra, senão mesmo todo o trabalho do autor.

Rosenzweig profetiza o fim da filosofia como metafísica e propõe uma nova maneira de filosofar: a filosofia narrativa, também designada de filosofia experiencial ("experiential philosophy", p.40). As próximas páginas são dedicadas à explicação desta nova concepção. Em primeiro lugar, esta escrita pretende levar "o leitor a encontrar-se com o autor" (p.41) promovendo mudanças profundas no leitor. É "prosa existencial" e, por isso, pretende realizar, através da escrita, o tipo de diálogo descrito anteriormente como "falando-pensando". É também "escrita revelatória", no sentido de experiência teológica, uma experiência de encontros, uma experiência de "um acontecimento entre os dois". (Paul Franks, citado por Putnam, p. 41).
Putnam estabelece aqui uma relação entre Rosenzweig e Levinas afirmando que também na filosofia ética deste se pode ler um tipo de narrativa semelhante: "quando Levinas nos diz que cada um de nós deve aprender a dizer "aqui estou eu" ao outro, o seu «aqui estou eu» é, na verdade, modelado no hineni de Abraão: que é o que Abraão diz a Deus quando Deus o chama para sacrificar o seu querido filho Isaac ..." (p.43). Ainda que, como Putnam afirmará mais adiante (p.49), haja diferenças assinaláveis entre os dois filósofos: para Rosenzweig surge primeiro a percepção de que se é amado por Deus e só depois a ordem de amar o outro. Para Levinas é o contrário.
Nas páginas seguintes Putnam explica, através do amor de Deus por Abraão em particular (e pelo povo judeu, em geral), a relação amorosa entre Deus e a alma humana/Abraão: "é esta imagem de Deus como amante que domina a narrativa na secção acerca da Revelação (Livro II da Parte II) da Star." (P.46)
Deus diz a cada pessoa "ama-me" e se esse apelo for correspondido haverá "consequências" relacionadas com a redenção de que fala Rosenzweig: implica imitar Deus e amar "todo e cada ser humano como ser humano." (p. 49). Este "matrimónio" implica sair de "uma mera relação "interior" com Deus". A grande tragédia da alma humana na sua não-relação com Deus é fechar-se dentro de si própria, é tornar-se uma alma "Metaética" (p.47). Neste contexto Putnam cita Auden:

The error bred in the bone
of each woman and each man
not universal love, but to be loved alone.

e outro verso do mesmo poeta:

"Always the soft idiot softly me"

Mas o matrimónio/redenção não acontece apenas pela aceitação ética de amar o outro individualmente. A redenção será um estado onde "o amor de Deus e o amor do próximo serão verdadeiramente universalizados." (p.51) Ainda que a redenção seja projectada para o futuro, o homem deve agir de forma a experienciá-la no presente: a analogia com o amor entre as pessoas é esclarecedora: a redenção está no futuro e no presente do mesmo modo que duas pessoas que se amam, experienciam o seu amor no presente e querem continuar a experienciá-lo no futuro.
"A redenção tem um lado pessoal - é algo experienciado por cada pessoa religiosa; e tem um lado comunal - é algo exemplificado e modelado pela comunidade religiosa judaica como um todo; e tem um lado escatológico, mas não é apenas escatológico porque a sua futura ocurrência é algo que está "presente" ao judeu individual agora." (p.54)
(LFB)

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Putnam e a filosofia judaica (ii) "Rosenzweig and Wittgenstein"(pp. 9-36).

O primeiro capítulo começa com duas citações de Wittgenstein:
"Sem alguma coragem, ninguém pode escrever uma frase genuína acerca de si próprio."
"Algumas vezes acredito." (p.9)

Putnam discutirá aqui algumas semelhanças entre as atitudes de Wittgenstein e as de Rosenzweig em relação à filosofia. Mas primeiro alguns esclarecimentos sobre a filosofia Wittgensteiniana:
1) Putnam acha errada a visão de que wittgenstein é um anti-filósofo cuja missão é mostrar que os problemas filosóficos são apenas confusões e que encara a filosofia como uma doença que pode ser curada através de uma terapia acerca do significado da linguagem. "O que preocupava Wittgenstein era algo que ele via como estando profundamente enraizado nas nossas vidas com a linguagem ..." (p.11). Se compreendermos que a procura de clareza (exemplificada pelo trabalho de Wittgenstein) é necessária sempre que pensamos seriamente então veremos que o trabalho de Wittgenstein, em vez de ser o fim da reflexão filosófica, é uma forma de levá-la para áreas onde antes não víamos nada de filosófico.
2) Wittgenstein nunca aceitou a ideia de que "a religião é essencialmente uma confusão conceptual". É certo que as pessoas são vítimas de confusões religiosas, desde a superstição até "à tentação de tornar a religião numa teoria em vez de a encarar (aquilo que ele achava que deveria ser) como uma vida de aprofundamento" (a deep-going way of life, p.11), daqui o interesse de wittgenstein em Kierkegaard. "... Seria mais correcto afirmar que ele atacou os aspectos anti-religiosos do «Iluminismo com um I maiúsculo» em nome do próprio iluminismo." (p. 12). A religião não é uma teoria. Pretender que a religião pode ser criticada ou defendida apelando a factos científicos é um erro.

Comparação Rosenzweig/Wittgenstein:

a) ambos defendem que é uma confusão querer provar a verdade de uma religião apelando a "factos históricos": "uma confusão entre a transformação interior da vida de uma pessoa - para Wittgenstein a verdadeira função da religião - e os objectivos e actividades da explicação e previsão científicas" (pp. 13-14). Nas páginas seguintes Putnam analisa citações de Rosenzweig onde o significado do judaísmo é discutido;

b) ambos defendem que a procura da essência das coisas é um projecto “absurdo”; Rosenzweig argumenta no seu livro Understanding the Sick and the Healthy (USH) usando a “ironia redescritiva” (ironic redescription, penso que é uma expressão de Rorty, mas não tenho a certeza). O exemplo hilariante dado por Rosenzweig é a procura da essência de uma barra de manteiga. Putnam também ironiza apresentando um hipotético diálogo entre professores que, numa conferência, discutem metafísica. O diálogo termina assim: “(prof. D) Eu sugiro: «X quer uma barra de manteiga» significa «X quer que seja verdadeira uma frase que esteja numa relação de sinonímia com a seguinte frase: «eu tenho uma barra de manteiga»”. Ainda que os conferêncistas se defendessem afirmando que a sua discussão é sobre a semântica de certos tipos de frases, isso de nada serviria uma pois: “a «semântica» contemporânea é quase sempre apenas metafísica à moda antiga, mas disfarçada.” (p.21 Putnam com o apoio de C. Travis).
Apesar do ataque à metafísica não se pode dizer que os filósofos aqui em causa sejam nominalistas, isto é que estejam a defender uma tese metafísica sobre as essências: Por exemplo que, em relação ao problema da identidade pessoal, estejam a afirmar que "... não há nada que as diferentes coisas juntas sob um nome tenham realmente em comum" (p. 23, uma tese defendida, por exemplo, por D. Parfit). Rosenzweig defende que é essencial para nós podermos pensar que somos a mesma pessoa em diferentes tempos, a frase que Putnam cita do USH é "o senso comum em acção preocupa-se com a permanência do nome, não com a essência, ". Putnam interpreta "o senso comum em acção" como o mesmo que Locke defendeu ao ligar a identidade com as recordações de coisas que nos aconteceram ou com a ideia de Kant de ligar o pensamento racional com "o facto de eu encarar os meus pensamentos, experiências, memórias e outras coisas que tais como sendo minhas" (p. 24).

"Kant, tal como Locke, podem ser encarados como defensores da ideia de que o "jogo" de pensar os meus pensamentos e acções em diferentes tempos como sendo meus não depende de uma premissa metafísica acerca de "substâncias auto-idênticas", e é, mesmo assim, um jogo do qual não podemos optar por sair enquanto estivermos empenhados no "senso comum em acção.""
A ideia comum que Putnam encontra "nestes pensadores" é a de que colocar o problema da identidade pessoal (" de quantas substâncias auto-idênticas sou eu composto?") ou outro problema filosófico qualquer, é afastarmo-nos daquilo que realmente importa, "daquilo que é necessário para o "senso comum em acção"" (p.25).

A questão importante é então: "o que significa o senso comum em acção para o homem religioso?" (p.26) Da mesma maneira que um homem não se relaciona com outro homem através de teorias ou de essências também não poderá relacionar-se com Deus através de uma teoria ou de uma essência. A tarefa do homem não é apresentar provas de Deus, do mundo e do homem, mas reconhecer (acknowledge) Deus, o homem e o mundo (aqui Putnam faz outra comparação com Wittgenstein socorrendo-se da interpretação de S. Cavell que interpreta Wittgenstein como alguém que encontrou uma verdade no cepticismo). E não poderá reconhecer um sem reconhecer os outros.

É correcto entender Rosenzweig como um filósofo existencialista (na linha de Kierkgaard), mas não é correcto afirmar que o ataque à metafísica que é feito no USH se dirige apenas ao Idealismo Alemão. É verdade que o idealismo alemão é atacado mas é também atacada uma grande ilusão filosófica: a ilusão de que a filosofia pode fornecer conhecimento das "essências". (p.17) (daqui que Rosenzweig dê exemplos do materialismo, do positivismo e do empirismo e não apenas do idealismo). A filosofia é encarada no USH não como uma coisa técnica mas como uma "tentação que quem quer que se pensa a si próprio como religioso pode estar sujeito" (p.17). A tentação filosófica assim entendida é "a de substituir palavras, especialmente palavras que não têm conteúdo religioso porque não têm relação interna com uma vida religiosa genuína, por esse tipo de vida (...) "Tal como Wittgenstein e Kierkgaard, Rosenzweig encarava a metafísica como uma forma de tentação exagerada, de facto, como uma «doença» à qual estamos todos sujeitos." (p.18)

O ataque à metafísica também não é um ataque à capacidade de espanto. Capacidade que não pertence apenas ao domínio filosófico mas também à vida comum (ordinary life). Para Rosenzweig, o filósofo é aquele que não consegue "que o seu espanto, armazenado como está, se liberte para a corrente da vida". À medida que ele se abstrai do concreto para poder compreender o problema , à medida que procura o ponto de vista imaginário, à medida que procura colocar-se a sí próprio de um ponto de vista neutro, a sua capacidade de espanto fica paralizada e a "corrente da vida é substituída por algo submissivo" (p.28, extratos de citações feita por Putnam de USH). E é esta a doença presente no título do livro. A doença do filósofo é a paralisia perante o decorrer da vida. Isto acontece, diz Rosenzweig, porque o filósofo tem "medo de viver" e mais do que isso porque procura iludir a morte:

"...então ele prefere sair fora da vida. Se viver significa morrer, ele prefere não viver". (Rosenzweig, USH, citado por Putnam, p. 29).

Quando li o livro de Rosenzweig fiquei espantado com o facto de o livro apresentar a paralisia, ainda que metaforicamente, como a doença dos filósofos. Não é que eu não estivesse consciente dos perigos da filosofia, basta pensar, por exemplo, na distinção entre agir e pensar, no filósofo e no homem prático, na utilidade da filosofia (Hume), etc. O espanto adveio do facto de ter ficado a saber que, pouco tempo depois de ter terminado o livro, Rosenzweig descobriu os primeiros sintomas da doença de Lou Gehrig e em poucos anos ficou paralisado (num estado semelhante ao de S. Hawking). O homem religioso que escreveu sobre o filósofo paralisado, tornou-se, pelos infortúnios da vida, o homem religioso paralisado. Espanto e arrepio.

Apesar de tudo Rosenzweig continuou a viver de acordo "com as exigências da sua própria filosofia existencial" (Putnam, p.29). A comunicação ficou reduzida ao piscar dos olhos. [Também noutro caso que deu origem ao livro, e depois ao filme, O Escafandro e a Borboleta o autor usa o mesmo processo de comunicação através do piscar de olhos e dita/escreve o livro dessa forma. Quem terá inventado esta forma de comunicação?]. Rozensweig continuou a escrever, traduziu, do hebraico, a Bíblia, conjuntamente com Buber, e não deixou de transmitir a confiança e a determinação que já eram suas antes da doença (já havia rejeitado um lugar na Universidade porque "as lutas com as pessoas e as condições tornaram-se agora a substância da minha existência" carta de Rosenzweig citada por Putnam, p.31).

A proposta existencial de Rosenzweig é o "novo pensar" (new thinking). Em que consiste? Três características são apresentadas por Putnam:
i) "falando pensando", determina a necessidade de outra pessoa (que houve e fala) e de tempo; não sabemos o que outro irá dizer nem quando terminará (os diálogos de Platão são criticados porque quem escreve já sabe o que o dialogante irá dizer);
ii) a teologia e a filosofia devem ser humanizadas;
iii) é preciso estar pronto (readiness) em vez de ter um plano; (desejo de Rosenzweig de reviver todas as formas de aprendizagem judaica e de restaurar a vida judaica em Weimar: "as coisas superiores não podem ser planeadas, para elas a prontidão é tudo").

O capítulo termina com a crítica de Putnam ao facto de Rosenzweig afirmar - no considerado obscuro e inacessível livro intitulado The Star of Redemption (versão inglesa) - que só duas religiões têm significado genuíno - o judaísmo (por ser a única religião a-histórica no sentido em que as mudanças nunca são mudanças "reais") e o cristianismo (a religião histórica por excelência). Putnam vê aqui resquícios do Hegalianismo outrora defendido por Rosenzweig.

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Ideia geral defendida por Putnam: Apesar de a filosofia necessitar de "análise de argumentos e técnicas lógicas" é muito importante não esquecer que estas técnicas devem estar ao serviço da filosofia com um modo de vida (= transformar o nosso modo de vida e compreender o nosso lugar na comunidade), é esta visão da filosofia que é comum aos quatro filósofos estudados neste livro.

(LFB)