Em primeiro lugar, a técnica como um sistema obedece à sua própria lei, à sua própria lógica. Por outras palavras, estamos a lidar com uma autonomia da técnica, um fechamento da técnica em si própria. A margem de possibilidade de intervenção vinda de fora - da economia, da politica ou de outro qualquer domínio - é muito pequena. Para além disso, a técnica é autónoma no que diz respeito à moralidade, à política e por aí adiante.(...)
Ao descrever o sistema como autónomo, não quero dizer uma autonomia capaz de se direccionar e de se reproduzir a si própria sem a intervenção humana. O que acontece é que o sistema determina quem deve tomar as decisões e quem deve agir. As únicas acções e decisões permitidas são aquelas que promovem o crescimento da técnica. O resto é rejeitado e rapidamente esquecido. Aqueles que tomam as decisões não são nem peritos em arte, nem cépticos, nem críticos, nem pessoas livres de obrigações. Desde a infância que se acostumaram à técnica: sentem que apenas a técnica é importante e que apenas o pensamento progressivo é válido: aprenderam técnicas para o seu trabalho e para o seu lazer. Deste modo as suas decisões suportam sempre a autonomia da técnica.
Aqui surge um problema. A técnica, como qualquer sistema, deveria ter a sua auto-regulação, o seu feedback. Contudo, não é nada disto que acontece. Por exemplo, se se observa um conjunto de efeitos negativos causados por um grupo de técnicos, deveríamos não apenas reparar os danos mas ir até à origem das técnicas envolvidas e modificar a sua aplicação na origem - no caso dos fertilizantes, por exemplo, ou relativamente a certos métodos de trabalho, ou produtos químicos. Mas esta acção nunca é tomada. Preferimos que os revezes e os problemas se desenvolvam (sob pretexto de que não estão completamente demonstrados) e preferimos criar novas técnicas para "reparar" os problemas. De facto, isto implica um feedback positivo. Não há nenhum tipo de auto-regulação no sistema da técnica. Isto não quer dizer que não seja um sistema. Mas significa que estamos a lidar com um sistema que perdeu o controlo - um sistema incapaz de se auto-controlar. Por isso, contrariamente ao que possamos acreditar, não podemos esperar nenhuma racionalidade. Isto, posso dizer, será o principal perigo, a principal questão quando nos pensamos como estando dentro do sistema. Este é um primeiro conjunto de consequências.
Um segundo conjunto de consequências é que, contrariamente ao que normamente fazemos, já não podemos entender a técnica em si mesma. E isto porque ela existe apenas em termos do todo. Contudo, isto é o que sempre fazemos quando, por exemplo, pensamos na televisão. Perguntamo-nos: "quais os efeitos da televisão? poderá alguém escapar ao impacto da televisão? Poderá alguém controlar a televisão?" A reacção é sempre totalmente elementar: "eu não estou nem um bocadinho viciado em televisão. Eu posso desligar o meu televisor sempre que quiser. Eu sou completamente livre." Respondemos como se a a televisão fosse um fenómeno separado, como se fosse independente do sistema. O mesmo se pode dizer do automóvel. (...)
Contudo, se quisermos compreender a televisão, temos que colocá-la dentro do sistema da técnica, isto é, temos que relacioná-la com a publicidade, com o facto de que o mundo se está a tornar cada vez mais num mundo visual, com o facto de estarmos constantemente a aprender que apenas as imagens correspondem à realidade ou com o facto do consumismo crescente. É este o mundo em que estamos constantemente obrigados a manter-nos actualizados acerca de tudo o que acontece. De maneira nenhuma sou livre de ver, ou de não ver, televisão porque amanhã de manhã as pessoas falarão comigo sobre tal e tal programa, e eu não quero ficar à margem do grupo.
Do mesmo modo, faço parte de um mundo no qual as operações técnicas requerem um certo conhecimento. Não posso entrar num meio ou num trabalho se não possuir conhecimentos, e uma boa parte destes conhecimentos são transmitidos pela televisão. Por conseguinte, na realidade, eu não sou independente do meu televisor. Ele pertence-me e eu estou integrado numa totalidade que é a sociedade dominada pela técnica, daqula a televisão é uma parte e eu sou absolutamente não livre nas minhas escolhas, nas minhas decisões.
Aparentemente, posso decidir não ver um certo filme ou um certo programa. Mas tenho eu a certeza de que posso decidir isso? Eu sou também uma pessoa que passa o dia num trabalho técnico, dessinteressante, repetitivo e tudo menos absorvente. À noite o que faço eu para relaxar e aliviar a tensão nervosa crescente que experienciei durante o dia? Televisão. Por isso, num certo sentido, eu vejo televisão ao fim do dia como recompensa e isto é também causado pelo facto de eu viver neste meio. Logo, sou absolutamente dependente no que diz respeito à televisão e de nada serve tentar compreender os efeitos da televisão como um fenómeno isolado. O verdadeiro problema é a situação dos seres humanos na totalidade da sociedade dominada pela técnica."
(Ellul, Jacques, (ed. Willem H. Vanderburg) Perspectives on our age - Jacques Ellul speaks on his life and work, Anansi, 2004, pp.51-54. Tr. LFB)
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