Agora que o anti-judaísmo ignóbil resurgiu em força e com a conivência ‘tolerante’ de alguns dirigentes políticos portugueses, vale a pena reler com atenção algumas das respostas de Primo Levi a questões colocadas pelos seus leitores.
Entrevista Retirada de: Primo Levi, “The Author´s Answers to His Readers Questions” pp.381-398, in, If This Is a Man & The Truce, Abacus, 1999.
"1. No livro não há um sentimento de ódio pelos Alemães, nem um desejo de vingança. Perdoou-os?
R: O Meu temperamento pessoal não está inclinado para o ódio. Vejo-o como animalesco e cruel, prefiro que as minhas acções e pensamentos sejam o resultado da razão (…) Se o fizesse estaria a seguir os preceitos dos Nazismo.
Acredito na razão e na discussão como instrumentos do progresso, e por isso reprimo o ódio, mesmo dentro de mim. Prefiro a justiça. Por essa razão, ao descrever o mundo trágico de Auschwitz, adoptei a linguagem sóbria e calma da testemunha, e não os tons lamentáveis da vítima nem a voz irada de alguém que procura vingança. Penso que a minha tarefa seria tanto mais útil e credível quanto mais fosse objectiva e quanto menos soasse excessivamente emocional. Só desta forma pode uma testemunha realizar a sua função em termos de justiça; isto é, fornecer elementos válidos para o juiz poder julgar. Os juízes são os meus leitores.
De qualquer modo, não gostaria que o facto de eu me abster de fazer um juízo explícito fosse confundido com um perdão indiscriminado. Não, eu não perdoei nenhum dos culpados, nem desejo perdoar nenhum deles, a não ser que eles mostrem (com acções, e não com palavras e não muito tempo depois) que estão conscientes dos crimes e erros do fascismo e estejam determinados em condená-lo (…). Só nestas condições estou pronto a perdoar.
2. Sabia o povo alemão o que estava a acontecer?
Como seria possível que a exterminação de milhões de seres humanos tivesse acontecido no coração da Europa sem o conhecimento das pessoas?
As democracias têm uma tremenda vantagem sobre os estados autoritários: toda a gente pode saber tudo sobre tudo. A informação é um quarto poder (...). No estado autoritário a verdade é só uma e vem de cima. Todos os jornais são iguais e repetem as mesmas coisas. Não se pode ouvir a rádio de outros países. Os livros são censurados, muitos são queimados, e só aqueles que agradam ao estado são publicados e traduzidos. Isto aconteceu na Itália entre 1924 e 1945, e continuou depois na Alemanha de leste (…).
Num estado autoritário é considerado permissível alterar a verdade; reescrever a história retrospectivamente, distorcer as notícias, suprimir a verdade, adicionar o falso, a propaganda substitui a informação. Nestes estados não se é um cidadão com direitos, mas sim um sujeito, e como tal deves ao estado uma lealdade fanática e uma obediência cega. Nestas condições torna-se possível apagar pedaços da realidade. Hitler e o seu ministro da propaganda (Goebbels) tornaram-se especialistas nesta tarefa de controlar e mascarar a verdade.
Contudo, não era possível esconder do povo alemão a existência de campos de concentração. Nem tal era necessário do ponto de vista dos nazis. Criar e manter no país uma atmosfera de terror indefinido fazia parte dos objectivos dos nazis. Centenas de milhares de alemães foram presas nos campos desde os primeiros meses do nazismo: comunistas, social-democratas, liberais, judeus, protestantes, católicos. Todo o país sabia disso e sabia que nos campos sofriam e morriam pessoas.
Mas não deixa de ser verdade que a grande maioria dos Alemães desconhecia os detalhes das enormes atrocidades que ocorreram mais tarde nos campos. Nomeadamente a exterminação industrializada numa escala de milhões; as câmaras de gás; os fornos crematórios, o despojo perverso dos corpos. Tudo isto deveria permanecer desconhecido, e de facto poucos foram os que souberam disso antes do fim da guerra. Para manter o segredo, só certos eufemismos – estudados cuidadosamente – eram usados: não se escrevia “exterminação”, mas sim ”solução final”; não “deportação, mas sim ”transferência”, não “gás mortal”, mas “tratamento especial”, e por aí a fora. (…).
O relato que, a meu ver, melhor retrata a situação alemã na altura é o de Eugene Kogon, que passo a citar:
“… e contudo não havia um único alemão que não soubesse da existência dos campos ou que acreditasse que eles eram sanatórios … todos os alemães foram testemunhas da barbárie anti-semita. Milhões estiveram presentes – com indiferença ou com curiosidade; com desdém ou com uma alegria maligna – na destruição de sinagogas pelo fogo, ou na humilhação de judeus que se tinham que ajoelhar no meio das ruas enlameadas.”
(…) A maioria dos alemães não sabia porque não queria saber. É verdade que um estado terrorista é uma arma muito forte, muito difícil de resistir. Mas também é verdade que o povo alemão como um todo não quis, nem tentou, resistir.
Usava-se um código na Alemanha de Hitler: aqueles que sabiam não falavam; aqueles que não sabiam não perguntavam; aqueles que faziam perguntas não recebiam respostas. (…) Saber e fazer com que as coisas fossem conhecidas era uma forma de uma pessoa se manter afastada do nazismo. Penso que o povo alemão não procurou este recurso e para mim são totalmente culpados desta omissão deliberada.
3. Como pode ser explicado o ódio fanático dos nazis pelos judeus?
O anti-semitismo é uma forma particular de intolerância; durante séculos teve um carácter mais religioso. Essa intolerância foi espalhada por toda a Europa pela eficiência da propaganda nazi e fascista que necessitava de um bode expiatório para carregar todas as culpas e ressentimentos (…). Mas estas explicações não me satisfazem, são redutoras, e não proporcionais aos factos que necessitam de explicação. (…).
Eu partilho da humildade de alguns grandes historiadores que confessam não compreender o anti-semitismo de Hitler e da Alemanha que o suportava. Talvez não se possa, ou melhor não se deva compreender o que aconteceu, porque compreender é quase justificar. “Compreender” uma proposta, ou um comportamento, significa abrangê-la, pôr-mo-nos no seu lugar, identificarmo-nos com ela. Nunca nenhum ser humano normal será capaz de se identificar com Hitler (…) Isso desanima-nos, porque não compreendemos, mas ao mesmo tempo causa-nos uma sensação de alívio, porque talvez seja desejável que as suas palavras (e, infelizmente, os seus actos) sejam compreendidas por nós. (…) Não o podemos compreender, mas podemos compreender a árvore que o brotou e podemos permanecer alerta. Se compreender é impossível, ter conhecimento é imperativo, porque o que aconteceu pode acontecer novamente. A consciência pode ser seduzida e obscurecida novamente – mesmo a nossa própria consciência. Por esta razão é um dever de todos reflectir sobre o que aconteceu. Toda a gente deve saber, ou recordar, que Hitler e Mussolini falavam em público, que as pessoas acreditavam neles, aplaudiam, admiravam-nos, adoravam-nos como se fossem deuses. Eram líderes carismáticos (…).
É necessário suspeitar daqueles que nos querem convencer com outros meios que não a razão; e é preciso suspeitar dos líderes carismáticos: é preciso muito cuidado ao delegarmos a nossa vontade e os nossos juízos. Uma vez que é muito difícil distinguir os falsos profetas dos verdadeiros, é melhor suspeitar de todos. É melhor renunciar a verdades reveladas (…), é melhor contentarmo-nos com verdades mais modestas e menos excitantes, aquelas que são adquiridas a custo, a pouco e pouco, com estudo, discussão e raciocínio crítico (…)."
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