sábado, 6 de outubro de 2012

I had to see everything (p. 154)


O que poderá fazer com que uma pessoa ocupe algumas das suas preciosas horas de leitura com a autobiografia do comandante de Auschwitz, Rudolph Hoess, um monstro entre monstros ao serviço do mal?

O homem que "tinha que ver tudo. ... Que tinha que olhar pelo buraco das câmaras de gás e ver o processo da morte em si, porque os médicos queriam que visse."(154); embora a ideia de usar o Zyklon B, como meio mais eficaz (uma das palavras-chave do nazismo), tivesse sido sua.

Este é o homem que, nos dias em que sentia "profundamente afectado por algum acidente" e como forma de poder regressar a casa, ao jardim e aos filhos, "montava o seu cavalo até que a terrível imagem desaparecesse"(155). Mas como pôde ele, e os seus homens, suportar tudo aquilo? A resposta que ele nos dá é que "... a determinação de ferro com a qual tínhamos de obedecer às ordens de Hitler só poderia ser obtida através de uma asfixia de todas as emoções humanas" (155).

Que tipo de homem é esse que pôde organizar e comandar o maior campo de extermínio da Alemanha nazi, durante vários anos e, depois de capturado e condenado à morte, termina o livro afirmando: "Tive uma vida preenchida e variada"(180)?

Hoess pergunta si próprio: "Quais são hoje as minhas opiniões no que respeita ao terceiro reich? (...)
Permaneço, nas minhas atitudes perante a vida, um nacional socialista convicto, como sempre fui. Quando um homem aderiu a uma crença e a uma atitude há quase vinte cinco anos, cresceu com ela e está a ela ligado de corpo e alma, ele não pode simplesmente atirá-la para o lado só porque o corpo desse ideal, o Estado Nacional-Socialista e os seus lideres usaram os seus poderes de forma errada e criminosa, e porque, como resultado dessa falha e de más orientações, o seu mundo ruiu e todo o povo alemão mergulhou por décadas em grande miséria. Eu, pelo menos, não consigo." (176)

Todavia, é Primo Levi que, na introdução que escreveu em 1985 para o livro, nos dá algumas razões para o valorizarmos. A primeira razão é contingente e prende-se com os factos. Ainda há quem negue quer o número real de vítimas, quer a utilização de gás como arma de extermínio. "No que concerne a estes dois pontos, o testemunho de Rudolph Hoess é completo e explícito. (...) Hoess mente muitas vezes, como forma de se justificar, mas nunca mente acerca de factos; na verdade ele parece orgulhoso do seu trabalho organizacional".
A segunda razão é essencial: "surpreende-me, numa altura em que muitas lágrimas são derramadas sobre o fim das ideologias,  a forma como este texto revela de forma exemplar até onde uma ideologia pode ir quando é aceite de forma radical como o foi pelos alemães de Hitler; de facto pelos extremistas em geral. As ideologias podem ser boas ou más, e é bom conhecê-las, confrontá-las e tentar avaliá-las. Mas é sempre mau abraçar uma ideologia mesmo que ela esteja camuflada de palavras respeitáveis como 'País' e 'Dever'. As consequências últimas da aceitação cega do Dever - isto é, o Führerprinzip da Alemanha nazi, o princípio da devoção inquestionável a um Grande Líder - são demonstradas pela história de Rudolph Hoess." (25)

Rudolf Hoess, Commandant of Auschwitz, (introduced by Primo Levi), Phoenix, 2000 (1ª ed. inglesa 1959). Tr. de excertos de LFB.

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