“Toivi estava bem ciente de que ajudava os nazis a fazer funcionar o campo, muito embora o aceitasse a contragosto. Na verdade, era claro para ele que a tarefa de cortar cabelos, separar peças de vestuário, retirar as bagagens dos comboios, limpar o campo – a maior parte das tarefas práticas necessárias para a manutenção da capacidade operacional de Sobibór – eram levadas a cabo por judeus: «Sim», diz ele, «pensei sobre isto. Mas ninguém fazia nada. [Eu tinha] quinze anos e havia pessoas com experiência de adultos em meu redor que não faziam nada para contrariar essa situação. As pessoas mudam em determinadas circunstâncias. As pessoas perguntavam-me: “O que aprendeste?” E penso que só há uma coisa de que tenho a certeza – ninguém se conhece a si próprio. Encontramos uma pessoa simpática na rua, a quem perguntamos “Onde fica a Rua do Norte”, e essa pessoa é capaz de nos acompanhar ao longo de um quarteirão e indicar-nos a rua, sempre simpática e amável. Mas essa mesma pessoa, numa situação ou circunstâncias diferentes, pode ser o pior dos sádicos. Ninguém se conhece a si próprio. Todos nós podemos ser boas ou más pessoas, nestas [diferentes] situações. Por vezes, quando alguém é simpático, dou comigo a pensar: “Como é que ele seria em Sobibór?”».
(…) Toivi Blatt salienta o facto de haver uma mudança fundamental em circunstâncias extremas, a qual tem menos a ver com uma mudança comportamental – muito embora essa também ocorra – e mais com uma mudança que se verifica no essencial do carácter das pessoas. É como se as pessoas como Toivi Blatt, quando se encontravam nos campos, se tivessem apercebido de que os seres humanos têm semelhanças com os elementos susceptíveis a mudanças de acordo com a temperatura ambiente. Do mesmo modo que a água existe na sua qualidade de água somente a determinadas temperaturas, passando a ser vapor ou gelo em outras, também os seres humanos podem vir a ser pessoas diferentes de acordo com os extremos das circunstâncias.”
Rees, L., Auschwitz - os nazis e a «solução final» (Dom Quixote, Booket, tr. 2008, pp.291-292)
De forma recorrente, as pessoas que, de uma maneira ou de outra, deram conta do meu interesse pelo estudo dos diferentes aspectos da Shoah perguntam-me como é que eu suporto estudar e ensinar esse tema. Não fico eu deprimido? A questão é perturbadora e a resposta nem sempre está disponível de forma clara na minha mente. Várias coisas têm que ser equacionadas. É certamente verdade que a leitura de certos (e muitos) acontecimentos – como a descrição dos acontecimentos (colaboração e indiferença de muitos Franceses («desonra perpétua» p.166), frieza diabólica dos nazis, percepção sensível da devastação causada pelo “trauma emocional” (180) pelo qual os pais passavam ao ter que abandonar as suas crianças pensando que elas teriam alguma possibilidade de sobreviver) que terminaram em comboios carregados com milhares de crianças que haviam sido barbaramente separadas dos pais, também eles enviados para Auschwitz – provoca tristeza, choro, angústia e um nó na garganta que impede a respiração e obriga a colocar o livro de lado.
Mas, para alguém fortemente empenhado na questão de saber o que somos e o que andamos aqui a fazer, o estudo deste período histórico revela-se mais enriquecedor do que o melhor dos tratados sobre a natureza humana. Nada mais revelador do (in)humano do que os testemunhos das pessoas que sobreviveram ao horror nazi. Nada mais inquietante do que o testemunho, acima transcrito e com destaques meus, que mostra a fraqueza do nosso carácter e o quanto somos moldáveis, para o bem e para o mal; que mostra a total ignorância acerca de nós mesmos. O que eu sinto é que tenho a obrigação de, através do estudo e do ensino, narrar o que de mais verdadeiro e terrível há em nós. É sempre na desgraça (quer seja natural, quer seja moral) que nos revelamos. As consequências e as interrogações são muitas e variadas. O que dizer disso que hoje chamamos 'a nossa vida', será ela, por uma vez que seja, real e confiável? Os bons, sinceros e bem-intencionados sê-lo-ão realmente? Ou tudo não passa de uma vã aparência? E se fosse eu que tivesse vivido esse tempo? De que lado estaria? Como me comportaria? Seria um colaboracionista, um nazi, um kapo? Uma criança?:
“ «Parecia que tínhamos deixado de ser humanos.» Apesar de tudo, as crianças cantavam enquanto caminhavam para a estação” (175).
As questões são intermináveis e o que dizer do dever de ensiná-las? Que efeito produzirão nas mentes dos estudantes do ensino secundário? O que sei é que o ensino destas matérias - seja através da exemplificação ou do estudo aprofundado de uma questão - gera sempre um silêncio e uma atenção na sala de aula que revelam, pelo menos, que algo de fundamental está aqui em causa. Talvez resida aqui a esperança.
1 comentário:
Caros amigos
Estou em Campinas, SP, Brasil. Estudo e ensino sobre o Holocausto, ou melhor, tento implantar esse ensino, mas não estou vinculada a nenhuma escola. Esta é uma iniciativa particular, pois abandonei tudo quando entendi o que foi o Holocausto, e decidi ensinar as pessoas. Hoje dou palestras e cursos para capacitação de professores, para que eles sejam motivados a ensinar os seus alunos.
Seu artigo é muito bom e eu gostaria de estar em contato com vocês, peço que por favor me escrevam. Quem sabe tenhamos experiências para trocar?
Um grande abraço
Ana Parreira - psicóloga (autora de "Assédio Moral - Um Manual de Sobrevivência", editora Russell.
Email: anaparreira@uol.com.br
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