"Durante os piores momentos da seca da década de oitenta, o meu pai possuía cerca de trinta cabras. A origem do rebanho fora uma cabra com uma pata partida que vira no mercado. Comprara-a para lhe tratar do ferimento, mas, quando a pata ficou curada, achou que devia ter companhia e comprou um bode. Partindo daí, chegou às trinta, e não lhe trouxeram nada mais além de trabalho árduo e mágoa.
O período da seca foi terrível para quem viveu numa quinta. Vacas e ovelhas eram abatidas e enterradas em valas porque não havia nada com que as alimentar. (...) Quando o meu pai ficou sem outra forma de alimentar as cabras, cortou a erva na berma da estrada com uma gadanha (...)
Ocasionalmente, matava uma cabra para comer, mas matava-as sobretudo para alimentar os cães. Tinha muito pouco dinheiro para comprar carne e tanto ele como a mulher viviam das suas pensões de reforma, uma boa parte das quais era usada para pagar as contas dos veterinários. Quando a minha filha Eva soube que por vezes matava as cabras, sentiu-se incomodada. Sendo uma amante dos animais, gostava de visitar o meu pai porque havia quase sempre pintos, patos pequenos ou bezerros. Por vezes, um deles estaria abrigado na cozinha, doente e a precisar de calor. «Como consegue fazê-lo?», perguntou-me. Referia-se à forma como ele, entre todas as pessoas, podia ser capaz de tal acto quando se preocupava tanto com o seu bem-estar. Perguntei-lhe se conhecia ou ouvira falar de alguém que fosse tão bondoso para os animais como o seu avô. Respondeu-me que não.
Não pretendi que esta conversa com Eva respondesse às questões que lhe ocorressem sobre se era ou não justificado matar animais para comer. No entanto, esperei que aprendesse alguma coisas sobre o que significa matá-los. Quis saber como era possível que o avô pudesse preocupar-se tanto com os animais e ao mesmo tempo matá-los, matar os mesmos animais por que trabalhara tanto e pelos quais prejudicara a sua saúde. A sua primeira reacção foi pensar que o facto de matar animais mostrava que se importava menos com eles do que pensara. A pergunta que lhe fiz fê-la perceber que tal não abalava necessariamente a compaixão que sentia por eles.
Instintivamente, Eva soube que não se podia limitar a dizer que, se o meu pai matava animais, então, a sua compaixão por eles não poderia ser genuína. Afinal, de que forma aprenderemos a reconhecer a compaixão e os seus limites se não for através de uma reflexão sobre exemplos concretos? Creio que foi a comunhão do meu pai com o mundo natural, a piedade que sentia pelos males que lhe eram infligidos pelos seres humanos, que fez com que o seu exemplo marcasse Eva. Mas, para que a autoridade do exemplo fosse justificada, a sua compaixão teria de ser complementada por uma compreensão do que significa matar um animal.
Existem pessoas maravilhosas, pessoas cuja compaixão é tão profunda como era a do meu pai, que acham moralmente impossível matar um animal, sendo essa percepção inseparável da consciência do que significa matar um animal para comer. No entanto, o seu exemplo não poderá, em minha opinião, ser aplicável ao meu pai. Não conheci ninguém que apreciasse de igual forma a generosidade com que os animais se entregam a nós e que sentisse maior gratidão pela graça que conferem às nossas vidas. Por vezes, consideramos algo moralmente impossível, mas não pensamos que as pessoas que consideram a mesma coisa possível estejam enganadas ou que possuam morais deficientes. Até mesmo exemplos de autoridade inegável e pura podem atingir-nos de formas diversas. Portanto, acerca deste asunto, qualquer coisas que possa dizer será sempre subjectiva."
(Raimond Gaita, O cão do filósofo, (tr. R.C.) Casa das letras, 2007, pp. 217-218.)
Assim termina este livro sobre a nossa relação com os animais e sobre a forma como atribuímos "sentido" (meaning, no seguimento do Wittgenstein das Investigações Filosóficas) às relações complexas que estabelecemos com pessoas e animais. O autor defende que a moralidade da nossa relação com os animais é secundária em relação ao sentido que construímos no mundo. Sendo que este sentido varia muito com as experiências das pessoas, com as suas emoções e com aquilo que vai no seu coração, com a sua cultura. Por conseguinte, não pode haver uma resposta única à questão de como tratar os animais. Gaita coloca-se, no debate sobre a ética animal, numa posição extravagante, uma vez que é contra a retórica dos direitos que considera uma ilusão. Acredita que as palavras que usamos devem transportar a força da obrigação de uma certa acção, caso contrário, de nada valem. Defende que "quase tudo o que a vida tem de importante ocorre no reino do sentido" (p.115). Parte da nossa compreensão desse sentido é possibilitada pela literatura, por essa forma de usar a linguagem "na sua plenitude" (Gaita cita Cora Diamond, uma autora a que também é preciso dar atenção) onde forma e conteúdo são inseparáveis, mas não é por isso, defende também o autor, que o texto literário deixa de ter valor cognitivo.
Apesar de considerar o livro interessante e as suas ideias valiosas - sobretudo porque parte de uma concepção ética baseada na experiência, fundamentada na linguagem e e na literatura - foi algo penoso lê-lo e isto devido à fraca tradução que, parece-me (não consultei o original), torna muitas passagens do livro dificilmente compreensíveis (como se comprova pelo texto acima transcrito). É um daqueles livros de filosofia que é facilmente estragado por uma má tradução. Começando logo pelo título que em inglês é: The Philosopher's Dog: Friendships with Animals. Em português não aparece a 'amizade', escondendo-se assim a tónica que o autor coloca na questão das relações para explicar a moralidade. É pena.
A melhor citação que o livro contém é a seguinte, retirada da autobiografia de Pablo Casals:
«Ao longo dos últimos oitenta anos, comecei cada dia da mesma forma. Não se trata de uma rotina mecânica, mas de algo essencial à minha vida quotidiana. Sento-me ao piano e toco dois prelúdios e fugas de Bach. Não consigo conceber não o fazer. É uma espécie de bênção da casa. Mas não é esse o único significado que lhe atribuo. É uma redescoberta de um mundo que tenho tido a felicidade de integrar. Preenche-me com uma percepção da maravilha da vida, com um sentimento de incrível assombro perante a condição humana...
Não houve um único dia na minha vida em que não tenha olhado com espanto renovado para o milagre da natureza» (p.145)
(LFB)
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