quinta-feira, 8 de setembro de 2011

10 anos passados sobre o 11 de Setembro - textos essenciais (3)

"Os guerreiros suicidas que atacaram Washington e Nova Iorque a 11 de Setembro de 2011 fizeram mais do que matar milhares de civis e demolir o World Trade Center. Destruíram o mito dominante do Ocidente.
As sociedades ocidentais regem-se pela crença de que a modernidade é uma condição única, idêntica em todo o lado e sempre benigna. À medida que as sociedades se tornam mais modernas, mais parecidas se tornam. Ao mesmo tempo tornam-se melhores. Ser moderno significa realizar os nossos valores - os valores do iluminismo, como gostamos de os pensar.
Não há cliché mais surpreendente do que aquele que descreve a Al-Qaeda como uma regressão aos tempos medievais. Ela é um produto secundário da globalização. Como os cartéis mundiais da droga e as empresas virtuais que se desenvolveram na década de 90, evoluiu num tempo em que a desordem económica criava vastas aglomerações de riqueza em países onde os impostos eram menos pesados e o crime organizado se tornara global. O seu aspecto mais evidente - projectar uma forma clandestina de violência organizada a nível mundial - era impossível no passado. Do mesmo modo, a convicção de que é possível acelerar a criação de um mundo novo através de actos espectaculares de destruição não se encontra em parte nenhuma na época medieval. Os precursores mais próximos da Al-Qaeda são os revolucionários anarquistas dos finais o século XIX da Europa.
Quem pensa que o terror revolucionário não é uma invenção moderna está a esquecer a história recente. A União Soviética foi uma tentativa de dar corpo ao ideal do iluminismo de um mundo sem poder e sem conflitos. Em nome desse ideal matou e escravizou dezenas de milhões de seres humanos. A Alemanha nazi cometeu o pior acto de genocídio de todos os tempos. Fê-lo com o objectivo de produzir um novo tipo de ser humano. Nenhuma época anterior acalentou projectos semelhantes. As câmaras de gás e os gulags são modernos.

Há muitas maneiras de ser moderno, algumas delas monstruosas. Contudo, a convicção de que há uma única maneiras de o ser, e que é sempre uma coisa boa, tem raízes profundas. A partir do século XVIII chegou a acreditar-se que o crescimento do conhecimento científico e a emancipação da humanidade caminhavam  a par e passo. (...) O conhecimento científico geraria uma moralidade universal em que o objectivo da sociedade seria produzir tanto quanto possível. Com o uso da tecnologia, a humanidade estenderia o seu poder aos recursos da Terra e venceria as piores formas de escassez natural. A pobreza e a guerra poderiam ser abolidas. Através do poder que lhe era dado pela ciência, a humanidade seria capaz de criar um novo mundo.

Houve sempre divergências acerca da natureza desse novo mundo. Para Marx e Lenine ele seria uma anarquia igualitária sem classes, para Fukuyama e os neoliberais, um mercado livre universal. estas visões de um futuro alicerçado na ciência são muito diferentes; mas isso não enfraqueceu de modo nenhum a força da fé que elas expressam.

Através da sua profunda influência sobre Marx, as ideias positivistas inspiraram a desastrosa experiência soviética no planeamento da economia central. Quando o sistema soviético se desmoronou, as mesmas ideias reemergiram no culto do mercado livre. Chegou-se mesmo a acreditar que só o «capitalismo democrático» ao estilo americano seria verdadeiramente moderno, e que estaria destinado a propagar-se a todo o mundo. Quando tal se verificasse surgiria uma civilização universal, e a história deixaria de existir.

Esta poderá parecer uma crença fantástica, e de facto é. O mais fantástico é que se continua a acreditar largamente nela. é ela que modela os programas dos partidos políticos de maior relevo em todo o mundo. É ela que orienta as políticas de organizações como o Fundo Monetário Internacional. É ela que estimula a «guerra contra o terrorismo», em que a Al-Qaeda é vista como uma relíquia do passado.

Esta visão está simplesmente errada. Tal como o comunismo e o nazismo, o Islão é moderno. Apesar de alegar que é antiocidente, é tão modelado pela ideologia ocidental como pelas tradições islâmicas. à semelhança dos marxistas e dos neoliberais, os islamitas radicais vêem a história como um prelúdio para um novo mundo. Todos eles estão convencidos de que podem refazer a condição humana. Se acaso existe um mito exclusivamente moderno, é este.

No novo mundo, tal como a Al-Qaeda o imagina, o poder e o conflito desapareceram. Esta é uma invenção da imaginação revolucionária, e não a receita para uma sociedade moderna viável; mas neste aspecto o novo mundo imaginado pela Al-Qaeda em nada difere das fantasias planeadas por Marx e Bakunin, por Lenine e Mao, e pelos evangelistas do neoliberalismo, que tão recentemente anunciaram o fim da história. E tal como aconteceu com esses movimentos ocidentais modernos, a Al-Qaeda encalhará nas imutáveis necessidades humanas.

O mito moderno é que a ciência permite à humanidade ser senhora do seu destino; mas a «humanidade» é ela própria um mito, um resíduo empoeirado da fé religiosa. A verdade é que existem apenas humanos, fazendo uso do conhecimento crescente que lhes é dado pela ciência para prosseguirem os seus objectivos conflituosos."
(Gray, John, Al-Qaeda e o Significado de Ser Moderno, (tr. M.P.) Relógio d'Água, 2004, pp. 15-18)

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