"No serão de um Outono próximo do fim, um estudante de Paris sentou-se na minha cozinha, em Berlim, e perguntou, a propósito de nada, onde é que estava quando ouvi as notícias. Este estudante podia ter vindo de Boston, de Santiago ou de Zagreb. Onde quer que estivéssemos, quem quer que sejamos, foi um momento que não esquecemos e que devemos recordar repetidamente - tivemos de ver o World Trade Center cair, uma e outra vez, na televisão, até nos sentirmos suficientemente enjoados para termos a certeza de que era real. Isto é a globalização. Será também Lisboa? [ a autora refere-se ao terramoto de 1755]
O paralelismo é inegável. A surpresa e a rapidez dos ataques parecem-se com uma catástrofe natural. Não houve aviso. Também não havia mensagem. A ausência de ambos criou o tipo de medo que nos fez saber que não tínhamos, até essa altura, compreendido o significado do terrorismo internacional. Como os terramotos, os terroristas atacam ao acaso: quem vive e quem não vive depende de acasos que não podem ser merecidos ou previstos. Pensadores como Voltaire encolerizaram-se contra Deus por falhar na protecção das regras morais elementares que os seres humanos tentam seguir. As crianças não deviam ser súbita e brutalmente torturadas; coisas tão importantes como a diferença entre a vida e a morte não deviam depender de algo tão trivial como a sorte. O desastre natural é cego quanto a distinções morais que mesmo a justiça mais brutal define. O terrorismo desafia-as deliberadamente. Ao sublinhar a contingência, o 11 de Setembro sublinhou a nossa infinita fragilidade. Mesmo em Nova Iorque há muitas pessoas que não conheciam ninguém que estivesse no World Trade Center à hora dos ataques, mas toda a gente parece conhecer alguém que estivesse a curar uma ressaca ou a levar uma criança ao jardim de infância. Quando uma falta ao trabalho se torna uma maneira de salvar a vida, o nosso sentimento de impotência torna-se opressivo. Os terroristas escolheram alvos para o aumentar. Wall Street e o Pentágono são, ao mesmo tempo, um símbolo e a realidade da força ocidental, e não é claro o que foi mais assustador: o colapso das manifestamente notáveis Torres Gémeas ou o assalto aos impenetráveis centros do poderia militar. Nem a visibilidade nem a invisibilidade serviram de protecção. Ao ver ambos serem despedaçados tão depressa, ninguém podia sentir-se em segurança. Pessoas normais em todo o lado ecoavam as palavras de Hannah Arendt: o impossível tornou-se realidade.
(...) Ainda não podemos dizer até que ponto o mundo se modificará. Enfrentamos novas formas de perigo. Mas sugiro que não são novas formas de mal. As dificuldades em fazer frente ao terrorismo não são dificuldades conceptuais. Aqueles que levaram a cabo o assassínio de massa a 11 de Setembro encarnaram uma forma de mal tão antiquada que o seu ressurgimento faz parte do nosso choque. É antiquado, mas não por ter sido concretizado por defensores de ideologias fundamentalistas indiferentes a escrúpulos modernos. Ver o poder da crença num deus que recompensa com uma caricatura detestável de paraíso aqueles que destroem os seus inimigos apenas pode deixar-nos gratos ao cepticismo, mas o conteúdo da crença dos terroristas não é o aspecto principal da questão. A decisão de alguns nazis de morrerem em vez de se renderem nos últimos dias da guerra aproximou-se de fantasias primitivas arrepiantes, ainda que eu tenha defendido que o Terceiro Reich corporizou o mal contemporâneo. O 11 de Setembro constituiu um exemplo de mal antiquado na sua estrutura. O mal banal emerge da estrutura da vida normal que o 11 de Setembro dilacerou.
O mais importante é que foi terrivelmente intencional. A premeditação envolvida foi sólida. (...) O mais claro uso da racionalidade instrumental foi correspondido pela mais clara ostentação de raciocínio moral. A natureza não olha a distinções entre qualquer tipo de culpa ou qualquer género de inocência; os terroristas desprezaram-nos activamente. Mesmo que tivesse sido feita uma exigência para uma negociação, não havia a mais pequena desculpa para a destruição de vidas comuns. Os objectivos dos terroristas foram, pelo contrário, produzir o que moralidade tenta impedir: a morte e o medo. (...) A maldade e a premeditação, componentes clássicas da intenção malévola, raramente estiveram tão bem combinadas. Os terroristas contornaram modelos complexos como o de Mefistófeles e devolveram-nos a Sade. Alguns hão-de contrapor, sem dúvida, que eles acreditavam na justeza da sua causa. Mas a ausência de algo como um ultimato torna infrutífera qualquer tentativa de mostrar a razão de ser do terrorismo - mesmo para aqueles que gostam de defender contradições. Destruir, ao acaso, pessoas de uma cultura que se acha inaceitável não conta como causa admissível.
Mais tarde o ataque pareceu de mau agoiro. A lenta e inexorável destruição dos dois Budas gigantes no Afeganistão provocou calafrios na espinha de um mundo há muito acostumado a ver crianças a morrer à fome diante das câmaras. A explosão ordenada pelos talibãs no que afinal eram apenas estátuas e pedras prendeu, inexplicavelmente, a atenção global durante dias. Tratar-se-ia de um prenúncio da implosão das torres alguns meses depois? Heine escreveu que quem tivesse a inclinação para queimar livros não hesitaria em queimar pessoas. A sentença foi escrita muito antes da rejubilante juventude nazi ter empilhado livros banidos em grandes fogueiras públicas, e essa presciência chegou a parecer sinistra. (...)
O mal não é apenas o oposto do bem, mas o seu inimigo. O verdadeiro mal procura destruir até as distinções morais. Uma maneira de o fazer é transformar as vítimas cúmplices. Os sonderkommandos, que faziam o trabalho que permitia às câmaras de gás funcionar, foram implicados nelas, apesar de qualquer oportunidade para resistir se ter dissipado no momento em que souberam o que estavam a fazer. O pior horror do 11 de Setembro foi aqueles que comandavam os aviões que embateram no World Trade Center não só terem atirado vidas comuns para a morte, mas terem feito que essas pessoas se tornassem parte das explosões que mataram milhares de outras. Foi pelo menos esta leitura de uma cheia de passageiros a bordo do quarto avião, que se dirigia para um alvo incerto em Washington. Ao contrário dos passageiros dos outros voos, tiveram conhecimento das razões por que haviam de agir. Sem isso, estariam tão desamparados como aqueles que eram confrontados com o inimaginável quando as portas das carruagens de gado se abriam. Antes de aquilo ter acontecido, quem suporia que era possível exterminar seres humanos como insectos, ou transformados em bomba vivas?
Aqueles aviões desfeitos em pedaços deixam-nos pouca esperança de um dia chegarmos a saber tudo o que aconteceu, mas o que já sabemos é suficiente. Informadas por telemóvel de que outros aviões desviados tinham sido conduzidos contra as torres, algumas pessoas decidiram lutar. Não conseguiram vencer os terroristas, mas foram capazes de assegurar que o avião se despenhava em campo aberto. Morreram como morrem os heróis. De maneira diferente do indivíduo hipotético do exemplo de Kant, que prefere morrer a prestar um falso testemunho, a recusa deles em tornarem-se instrumentos do mal tornou-se mais do que um gesto. Nunca saberemos que tipo de destruição evitaram, mas sabemos que evitaram alguma. Provaram não só que os seres humanos têm liberdade, mas também que podemos usar essa liberdade para influenciar um mundo que receamos não controlar.
Isto não é uma teodiceia. Nem sequer é um consolo - embora seja toda a esperança que temos."
(Neiman, Susan, O mal no pensamento moderno, Gradiva, pp.313-320)
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