domingo, 24 de março de 2013

How diabolic can one get? (p.113)

Precioso testemunho de um médico que, como "participante involuntário" (p.11), nos revela o que foi trabalhar como médico legista junto dos sonderkomando («comando especial» constituído por presos encarregados de retirar os cadáveres das câmaras de gás e de os levar até aos fornos crematórios).

Enquanto milhares morriam diariamente - a grande maioria era, à chegada ao  KZ, seleccionada para a fila da esquerda pelo infame Mengele (o que significava a morte imediata nas câmaras de gás); os outros, os que eram seleccionados para a direita, morreriam em pouco tempo de exaustão causada pela violência, pela dureza do trabalho e pela falta de condições de vida - alguns conseguiam, quem saberá dizer se por sorte se por azar, viver com o mínimo de decência (roupa , comida, muito álcool - só ébrios, quer prisioneiros quer nazis, conseguem "aguentar" esse inferno - e, para os médicos, quarto individual). Entre estes 'privilegiados' contava-se o grupo dos sonderkomando do qual o médico húngaro Miklos Nyiszli fez parte e cuja experiência de cerca de um ano nesse inferno que englobava câmaras de gás, crematórios e sala de autópsias é aqui relatada.

Lendo o livro, vemos o Dr. Nyiszli deitado na cama do seu quarto, mas o cheiro que paira no ar não o deixa descansar. Aguarda Mengele que em breve chegará com mais corpos para autopsiar. Assistimos à forma como os dois médicos mantém uma relação cordial e ao modo como o Dr. Myiszli, através do seu brio profissional, se tornou um quase protegido de Mengele. Desse relação muitas vantagens resultaram: Mengele assinou o passe que permitiu que Myiszli circulasse, pelos vários campos de Auschwitz à procura da sua mulher e filha; permitiu que Myiszli, beneficiando de informação privilegiada, conseguisse que elas fossem transferidas para outro campo pouco antes de serem enviadas para as câmaras de gás, salvando-lhes assim as vidas, e salvou-lhe a própria vida protegendo-o das "limpezas" feitas na mudança de um comando para outro.
Assistimos à chegada do gueto de Litzmannstadt; depois de cinco anos de gueto "chegaram completamente apáticos. (...) A selecção mandou 95% para a esquerda" (p. 175). Assistimos à última paragem das famílias vindas do gueto de Theresienstadt: " foram precisas 48 horas para os exterminar a todos" (p. 189). Assistimos à última ceia de pai e filho (foram enviados por Mengele para o Dr. Nyiszli estudar as suas deficiências; desvio de coluna e hipomielia) e, quando começamos a ganhar simpatia por eles, logo chega a sua morte (ler o relato aqui).

Alguns questões inquietantes sobre o conteúdo do livro são colocadas no prefácio de Bruno Bettelheim (1).

Nyiszli tornou-se o médico legista de confiança de Mengele tendo feito todo o tipo de autópsias pseudo-científicas. O que terá levado este médico a "ajudar as SS nas suas experiências com seres humanos?" (Bettelheim, p.v).

Dos catorze sonderkomando que existiram em Auschwitz  (ao fim de três meses, para eliminar testemunhas, todos os elementos (centenas de pessoas) eram mortos com um tiro na nuca e um novo grupo era formado; a sua primeira tarefa era transportar para os crematórios os colegas recém abatidos. Era-se mais bem tratado, mas sabia-se que por pouco tempo). Que se saiba só um sonderkomando - o décimo segundo - ofereceu resistência aos nazis, matando setenta SS e destruindo um crematório. Todos os oitocentos e cinquenta e três prisioneiros do komando foram mortos pelos nazis.
Segundo Bettelheim: esse grupo "redescobriu a liberdade nos últimos dias de existência e no último dia recuperou-a, por isso morreram como homens , não como cadáveres vivos. (...) Se eles o fizeram também outros o podiam fazer. Porque não o fizeram? Porque desperdiçaram as suas vidas em vez de dificultar as coisas para o inimigo?" (p.vi);

O que terá levado "milhões de pessoas  a andarem calmamente, e sem resistência, em direcção à sua morte quando mesmo à sua frente, tinham exemplos como o desse comando (...)?" (xvii)

Bettelheim tem uma visão muito negativa sobre a responsabilidade dos judeus na sua própria aniquilação. Para ele o que é único no holocausto é o facto de "milhões de pessoas terem marchado passivamente em direcção à sua própria morte" (p.vii).

O seu principal princípio explicativo, fundado na ideia freudiana da luta contra o instinto de morte, é o de que a passividade perante os campos de extermínio começa com o que Bettelheim designa de: "business as usual" ou princípio da inércia. Essa é a força que levava os prisioneiros a servir os seus carrascos ao ponto de "abrirem a porta à sua própria morte" (p.viii). É isso que explica a passividade e a submissão perante a criação dos guetos, que explica a atitudes dos médicos cooperantes e que, mesmo nos casos onde houve resistência organizada - como no gueto de Varsóvia -  explica a sua acção tardia, quando já havia poucas pessoas no gueto para lutar.

O conhecido caso da família Frank, que também não acreditou em Auschwitz, é outro exemplo do mesmo fenómeno: eles podiam ter fugido ou ter lutado (podiam ter arranjado armas e "podiam ter morto pelo menos um ou dois SS", p.xiv) em vez de, como família, se esconderem à espera que o inimigo chegasse para os levar. E o reconhecimento mundial do diário (a nossa parte da culpa) de Anne Frank -  que também "só queria continuar com a vida de costume e ninguém a pode culpar" - resulta de "queremos esquecer as câmaras de gás e glorificar a atitude do "business as usual", acreditamos na bondade humana e esquecemos Auschwitz. 

Mas o homem do princípio único ainda tem mais para explicar:
"Tudo isto seriam histórias passadas se não fosse o caso de o mesmo "business as usual" estar por detrás da nossa tentativa de esquecer duas coisas: que homens do século vinte como nós enviaram milhões para as câmaras de gás, e que milhões de homens como nós marcharam para a sua morte sem resistência." (p.xi)

A shoah é um fenómeno complexo demais poder ser explicado de forma tão simplificadora;
parafraseando Michael Berenbaum (aqui),  é tão "imenso" que a única forma de olhar para ele é através do particular, estudando cada vida, cada história, cada imagem, cada facto particular. Não defendo que tudo o que Nyiszli fez seja desculpável pelo facto de ele ser uma vítima inocente nas mãos dos nazis. Mas não podemos ignorar que a sua sobrevivência - nas suas palavras, o motivo porque quis continuar vivo foi o de poder testemunhar - deu-nos um relato único do que foi ser assistente de Mengele no inferno que foram as câmaras de gás.

Bettelheim esquece as revoltas de Sobibor e de Treblinka, os muitos grupos de resistência activa que se refugiaram nos bosques e que dificultaram a vida aos nazis mas, sobretudo, ignora o facto de a resistência ser uma acção, não apenas colectiva, mas também individual, onde cada gesto - veja-se a recusa de Korczak, outro médico, em usar a estrela amarela no gueto de Varsóvia desafiando abertamente os nazis e colocando a cada momento a sua vida em perigo, e ele poderia ter fugido mas escolheu não o fazer para permanecer junto das crianças do seu orfanato - cada silêncio, cada obediência esconde, muitas vezes, uma resistência interior contra o inimigo tão fina que escapa à lente grosseira de Bettelheim.

Mais um exemplo talvez seja suficiente. É Filip Müller, um dos poucos sobreviventes dos sonderkomando, quem conta a história (2). Depois de várias horas a realizar exercícios absurdos até à exaustão ("o que em Auschwitz tinha o nome de sport"), depois de vários prisioneiros, por não aguentarem mais, terem sido mortos à bastonada pelo Kapo de serviço, eis que uma voz se ergue contra o "tormento diabólico":
"Herr Kommandant, como ser humano e advogado desejo reportar que o funcionário do bloco - apontando a Vacek - matou arbitrariamente várias pessoas inocentes. Os seus corpos estão deitados ali. Estou convencido que o funcionário do bloco matou estes prisioneiros sem conhecimento quer dos seus superiores imediatos quer das autoridades. Enviaram-nos para aqui para trabalhar não para sermos mortos (...) Surpreendidos pela coragem e determinação os prisioneiros suspenderam a respiração e fixaram Schlage.(...)
 O resultado foi que, por ordem de Schlage, o kapo matou o queixoso à bastonada.
 "Depois Schlage, que tinha observado a acção de Vacek com satisfação, virou-se para nós e cinicamente perguntou: 'Mais alguém quer apresentar queixa?'"
O que teria feito o Dr. Bettelheim nesta situação?
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(1) Este psicólogo austríaco também passou pela experiência dos campos de concentração - esteve em Dachau e Buchenwald entre 1938 e 1939, numa altura em que o pior ainda estava para vir. Tal facto terá levado Primo Levi a escrever: "Ele não viveu, pois, a experiência fundamental da alienação, que foi a nossa. Suportou sofrimentos graves físicos, foi espancado, sofreu de fome e de cansaço, mas a deportação com o desenraizamento que implica, não a conheceu." Levi, O Dever da Mémória, Brevíssima, 1997, p.58). 

(2) Müller, Eyewitness Auschwitz - Three years in the Gas Chambers, Ivan R. Dee, 1999, pp. 3-5.

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