quinta-feira, 23 de agosto de 2012

O Artista, O filósofo e o Guerreiro

"
«Não publicarei nem divulgarei tais coisas devido à natureza perversa dos homens.» Antes, Leonardo mostrara-se disposto a divulgar os planos de algumas das mais horripilantes máquinas de guerra, sem pensar aparentemente nas consequências. Mas agora a maneira como encarava o seu trabalho tivera uma alteração significativa. (...) A clareza absoluta de cada visão individual permaneceria, no entanto, o conjunto perdia-se na incoerência. A ciência da percepção - aquela filosofia unificadora da visão que o levara a ver e a investigar tanto - nunca seria alcançada no meio da desordem generalizada do seu trabalho.
Leonardo faria várias tentativas para superar essa desordem. Elaboraria listas e planos para organizar por temas os elementos separados dos seus cadernos de apontamentos, começando depois a dar-lhes uma sequência. Mas algo, «a natureza perversa dos homens», impedi-lo-ia de completar essa tarefa, para poder legar ao mundo. deve ter sido alguma coisa que ele viveu enquanto trabalhava para Bórgia. Durante o massacre em Fossombrone? No meio do caos em Siniogallia? Depois das atrocidades em Sam Quirico? Ou teria sido um acontecimento mais cerebral: talvez a compreensão aniquiladora de alguma coisa? Podemos imaginar Leonardo a desenhar aqueles esboços do retrato de Bórgia com este estendido junto à lareira na sua câmara. Talvez, ao tentar reconciliar a clareza absoluta em que via os traços fisionómicos de Bórgia com a aura mortal de caos, assassínio, incesto e traição que o envolvia, Leonardo tenha compreendido que essa clareza de percepção nunca poderia ser inocente, no final. Por isso, nunca haveria final - retirar-se-ia disso, deixando o horror último sem ser visto, a visão final inacabada, o esquema global incompleto. Em vez da ordem global, o caos global." (316)

Apesar de tão nobres sentimentos, Maquiavel estava fora das boas graças, fora do trabalho e num limbo político. E fez o que à primeira vista poderia parecer uma escolha surpreendente - voltou a escrever poesia. Maquiavel não tinha de facto abandonado a ideia de que alguma dia cumpriria o seu sonho de juventude de alcançar a fama literária. De facto, de muitas maneiras, o seu trabalho proporcionara-lhe numerosas oportunidades para praticar a sua arte e refinar o seu estilo. A clareza e a precisão dos despachos que escrevia durante as suas missões revelavam a sua originalidade, bem como a sua independência de espírito, enquanto as suas cartas mais informais lhe davam margem para a sua vivacidade de espírito e de imaginação (para já não falar de algum exagero). A consciência trocista que tem de si próprio, juntamente com a análise psicológica que faz das figuras que vai conhecendo, a sua visão dos acontecimentos históricos que se desenrolam à sua volta podem não ter sido literatura enquanto tal, mas podiam transformar-se nela, e parece que Maquiavel alimentava essa ideia havia já algum tempo. Tudo isto é inevitavelmente especulativo - mas acontecimentos como a cena do seu primeiro encontro arrepiante  à luz da vela com Bórgia, no palácio de Urbino, terão de certo despertado a sua imaginação poética. (324)

Bórgia morreu, neste obscuro campo de batalha, a 12 de março de 1507, com apenas 31 anos. Quando a notícia da sua morte chegou a Itália, todos os governantes - desde Nápoles a Milão - suspiraram de alívio. Só em Ferrara é que a sua morte foi chorada. Quando Lucrécia teve conhecimento da morte do irmão adorado, conta-se que terá gritado: «Quanto mais eu me viro para Deus, mais ele se afasta de mim.» Manteve a compostura até se retirar finalmente para o seu quarto, onde a ouviram gritar pelo nome de César, uma e outra vez, num agonia sem fim.
Alguns anos antes, o historiador contemporâneo Andrea Bernardi escreveu que, quando Bórgia cavalgava ao encontro dos seus inimigos, tinha gritado: «é melhor morrer em cima da cela do que na cama». Mas foi preciso a empatia de uma irmã para compreender  a verdade que havia por trás destas palavras. Conta-se que Lucrécia teria suspeitado de que, no seu desespero perante o fracasso final de todas as suas ambições, a temeridade de Bórgia terá sido uma forma de suicídio.
Bórgia estava morto, mas o seu nome perduraria como exemplo, de uma maneira que ele nunca podia ter previsto. O responsável por isso seria o seu amigo Maquiavel, que o vira em ação e compreendera como ele foi quase bem-sucedido na sua enorme ambição. Para Maquiavel apenas um homem assim podia salvar a Itália das guerras autodestruidoras, que ameaçavam despedaçá-la no meio do seu grande Renascimento cultural." (365-6)

Paul Strathern, O Artista, O filósofo e o Guerreiro - Da Vinci, Maquiavel e Bórgia e o mundo que eles criaram, Clube do Autor, (tr. AGL), 2012.

Aqui temos um livro que mistura muito bem o rigor da investigação histórica (587 notas, lista com caracterização de personagens, ilustrações e mapas), com o carácter ficcional da narrativa (não há propriamente ficção, o que há é uma imaginário tecido em torno dos prováveis encontros entre os três gigantes) que nos transporta para a Itália de 1500. Como leitura de verão, não poderia haver melhor.
Foi o primeiro livro que li com a leitura perturbada pela ausência legal de letras e outros erros acordados. A experiência não é agradável: "projeto de nada"; "suscetível ato"; "fações"; "exceção", "percetuais". E ainda o absurdo de os nomes dos meses estarem escritos com letra minúscula. Mas porquê?

Sem comentários: