sexta-feira, 11 de maio de 2012

Diálogo sobre a ciência e os homens

Uma tradução recente (2012) de um texto antigo (1984). No entanto, tudo o que aqui se pode ler é refrescante. Tullio Regge escreve como um físico fascinante; Primo Levi - ainda que exerça sobretudo o papel de entrevistador - escreve como um químico sábio. O prefácio é do professor emérito de física J. Moreira Araújo e pode ser lido aqui.

"Levi: (...) Esperava ir muito longe, até ao ponto de possuir o Universo, entender o porquê das coisas. Agora, eu sei que não existe o porquê das coisas, pelo menos é o que julgo. (...) Tinha uma sensação curiosa: que havia um conluio contra mim, que família e escola mantinham alguma coisa escondida, e que eu procurava nos lugares que me eram reservados: por exemplo, a química ou, também, a astronomia (...)"

Regge: (...) eu também achava que havia uma conspiração, que era o que se ensinava na escola. (...) Na verdade a ciência era tão mal ensinada que desencorajava mesmo os mais interessados. (...) A escola não me deu nada. Com o velho telescópio que o meu pai comprou num mercado de rua, aprendi a reconhecer todas as constelações; observei estrelas duplas, nebulosas anulares, os planetas, as galáxias. O meu professor de Ciências Naturais não estava minimamente interessado nestes assuntos.
 (43-54)
Levi: E, depois, [ na Universidade] o laboratório: todos os anos tinham o seu laboratório. Passávamos lá cinco horas por dia; era uma bela obrigação, uma experiência extraordinária. em primeiro lugar porque trabalhávamos com as mãos, literalmente, e foi a primeira vez que isso me aconteceu, sem nos importarmos se as escaldávamos ou cortávamos. Era um regresso às origens. A mão é um orgão nobre, mas a escola, toda preocupada com o cérebro tinha-a desprezado. (...) Era um trabalho de grupo, que, na escola precedente, era desconhecido (...). É uma experiência fundamental, cometer erros em grupo. Participa-se muito nas vitórias e derrotas mútuas. (...)
 (49-50)
Para mim, havia uma complicação, como contei nos meus livros: as leis raciais. A libertação universitária coincidiu com o trauma de me ser dito: cuidado, tu não és como os outros, na verdade vales menos que eles; tu és avarento, tu és um estranho, tu és sujo, tu és perigoso, tu és pérfido. (...)
 (50-51)
Regge: Outra qualidade rara de Wataghin era reconhecer num primeiro relance se uma pessoa era medíocre ou não.

Levi: Isso talvez não seja assim tão difícil, dados alguns parâmetros. deve pôr-se de lado sentimentos de simpatia ou antipatia. Sobretudo, simpatia. A simpatia é, muitas vezes, um meio de esconder a incompetência. A Itália está cheia de pessoas simpáticas que nada sabem dos seus ofícios. é uma operação básica ser capaz de avaliar a pessoa na sua frente, pesá-la. Suponho que, também entre os físicos, há aqueles que representam um papel.
(53)
Regge: (...) É designado por «redução dimensional», e postula a existência de uma quinta dimensão, para além das quatro do espaço-tempo. Um objecto move-se em três dimensões espaciais, mas também se deve mover na quarta, mesmo que não a consigamos ver. Esta quarta dimensão deve ter alguma coisa muito diferente das outras, já que estamos impedidos de a ver no sentido tradicional. A razão de esta percepção estar inibida é essa dimensão ser muito pequena. É o mesmo que percorrer um caminho que se fecha sobre si próprio, de modo que somos imediatamente devolvidos ao ponto de partida. Podemos comparar o espaço a um cilindro onde as dimensões normais se realizam ao longo do eixo do cilindro, enquanto a quinta dimensão completa uma volta em torno do cilindro. Uma volta incrivelmente curta, 10 -33 centímetros. (...)
(68)
Levi: Desenvolvi o hábito de escrever de forma compacta, evitando o supérfluo. Precisão e concisão, que, dizem-me, são a minha forma de escrever, surgiram-me da profissão de químico. E também o hábito da objectividade, de não me deixar enganar facilmente por aparências. (...)
Outra virtude que a profissão de químico desenvolve é a paciência, não ter pressa. Hoje, a química está completamente mudada; é química rápida. (...) Agora, acontece que, tal como nas escolas elementares decorre uma discussão sobre se as crianças devem ser ensinadas a usar uma calculadora em vez de fazerem a sua aritmética manualmente, para o químico surge a questão de avaliar se vale a pena ensinar o método de análise manual, a chamada análise sistemática, que exige muito tempo e também muito material. (...) Mas a análise manual, tal como o trabalho manual, tem um valor formativo, é demasiado semelhante às nossas origens, como mamíferos, para ser desprezada. No fim de contas, nós devemos saber usar as nossas mãos, os nossos olhos, o nosso nariz. (...)
Compreendi que hoje podemos, seguramente, viver sem um computador, mas é uma vida nas margens e condena-nos a ficar cada vez mais desligados da sociedade activa. Os Gregos diziam de uma pessoa inculta: «Ele não sabe escrever nem nadar.» Hoje, devia-se juntar: «Nem usar um computador.»"
(93-97)
(Levi & Regge, Diálogo sobre a ciência e os homens, Gradiva, 2012, tr. mui cuidada de E.L.)

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