"No verão de 2006 voltei a viver no Reino Unido após dois anos e meio na América do Sul. Mantenho que não me tornei mais fascista nesse ínterim - aos pés de um Galtieri, digamos, ou ajoelhado perante um Pinochet. Mas em política é surpreendentemente fácil movermo-nos de um lado para o outro enquanto permanecemos no mesmo sítio; e o terreno médio, descobri eu, não está onde costumava estar. A extensão dessa mudança tornou-se-me dramaticamente nítida num direto televisivo, quando apareci no "Tempo de Perguntas" (o programa interativo de debate da BBC) e me inquiriram acerca do nosso progresso naquilo a que agora chamam a Longa Guerra.
A resposta que dei foi, pensava eu, quase fastidiosamente centrista. Eu disse que o Ocidente deveria ter ocupado os últimos cinco anos a construir um modelo democrático e pluralista no Afeganistão, enquanto se ía meramente limitando a conter o Iraque. No Afeganistão já vimos, não o "genocídio" avidamente previsto por Noam Chomsky e outros, mas a "genogénese" (para usar o termo de Paul Berman) - um florescente censo. Desde 2001, a população aumentou em 25 por cento. (...)
Nesse ponto comecei a olhar para um rosto e para outro na assistência, e o que eu vi eram os esgares e as caretas, não da discórdia, mas da incredulidade. Tomou então a palavra uma rapariga. Numa quase-lacrimosa voz de apaixonada presunção, dizendo que tinham sido os americanos quem armara os islamitas no Afeganistão, e que por conseguinte os Estados Unidos, para responderem ao 11 de Setembro, "deviam bombardear-se a eles próprios!" Tive tempo para imaginar os F-16 a uivarem sobre Chicago, e o USS Abraham Lincoln a lançar projécteis do tamanho de Volkswagens para o centro de Miami - em destemida expiação pelo World Trade Center, pelo Pentágono, pelo voo 93 da United, o voo 11 da United e o voo 77 da American. Mas depois os meus pensamentos foram dispersos pelo som de um unânime aplauso.
Estamos solenemente acostumados, hoje em dia, à fetichização do "equilíbrio", à regra básica da "equivalência moral", em todos os conflitos entre o Ocidente e o Oriente, à incapacidade a 100 por cento e a 360 graus para ajuizarmos sobre qualquer etnia que não seja a nossa (exceto no caso de Israel). E contudo os que batiam palmas no "Tempo de Perguntas" tinham ido além da velha fórmula da piedosa paralisia. Isto não era equivalência, isto era abjeção hemisférica. Em consequência, dada a escolha entre George Bush e Osama bin Laden, o relativista liberal, ao que parece, é obrigado a apoiar o saudita, tornando-se assim conciliador de uma doutrina armada com os seguintes lemas: é racista, misógina, homofóbica, totalitária, inquisitória, imperialista e genocida.
Recolhendo o que podemos das obras de pensadores como Sayyid Qutb (...) e a partir de diversas declarações, fatwas, ultimatos, ameaças de morte e notas de suicídio, podemos comparar o islão radical aos movimentos políticos tanatoides que conhecemos melhor, nomeadamente o bolchevismo e o nazismo (de cada um dos quais o islamismo é devedor). Das muitas afinidades que emergem, poderemos enumerar, para começar, algumas características secundárias. A exaltação de um líder divino; a exigência, não somente de submissão à causa, mas de inteira transformação em nome dela; um romantismo autoindulgente; um ódio à sociedade liberal, ao individualismo e à copiosa inércia (ou Konformismus); uma obsessão pelo sacrifício e o martírio; uma mórbida rebeldia adolescente combinada com um amor pueril pela destruição; o "agonismo", ou aceitação da permanente e insaciável rivalidade; o uso e a invocação do muito novo e do muito velho; uma mania da purificação; e um feroz antissemitismo.
Mas estas são incidentais. O tanatismo deriva a sua verdadeira energia, a sua febre e a sua magia, de algo muito mais radical. E aproximamo-nos aqui de uma patologia que no final poderá não ser assimilável pelo espírito dos não-crentes. Refiro-me à rejeição da razão - à rejeição do sequitur, da causa e efeito, do dois mais dois. Extraordinariamente, nas suas obras escritas e na sua conversa de mesa, Hitler e Estaline (e Lenine) raramente permitem que o substantivo abstrato "razão" passe sem que lhe atribuam um adjetivo depreciativo: razão inútil, razão frouxa, razão cobarde. Quando aqueles sanguinários saloios, os talibãs, entoam a sua palavra de ordem, "Lancem a razão aos cães", eles estão procedendo ao mesmo tipo de jogada faustiana: esmagai a razão, matai a razão, e toda e qualquer coisa parece possível - o restaurado califado, por exemplo, presidindo a um império planetário expurgado de todos os infiéis. Transcender a razão é evidentemente transcender os confins da lei moral, é entrar no mundo ilimitável da insanidade e da morte.
(...) 11 de Setembro significa 11 de Setembro de 2001 - o dia em que as torres vieram abaixo. Foi também o dia em que algo nos foi revelado. Já sabemos agora o que era isso? Muita da nossa análise terá sido porventura inteiramente inapropriada, pois continuamos a tentar construir o islamismo nos termos do raciocinativo. Que aspeto tem ele quando o construímos nos termos das emoções? Estados emocionais familiares (dor, ódio, fúria, vergonha, desonra e, acima de tudo, humilhação), mas em intensidades nada familares - intensidade que a democracia secular, e as regras da lei e da sociedade civil, tenderão sempre a neutralizar. (...)
O islamismo tem andado connosco durante a parte de leão de um século. A irmandade Muçulmana foi fundada em 1928, e no espaço de uma década ramificou-se naquilo que dentro em pouco viria a ser o Paquistão. Mas o evento emocionalmente constitutivo, somos forçados a deduzir, foi o estabelecimento da Pátria Judaica. Na guerra que foi travada para concretizar isso, Israel, ocupando 0,6 por cento de territórios árabes e com uma população proporcional, derrotou os exércitos do Egito, da Síria e da Transjordânia, juntamente com as forças suplementares do Líbano, da Arábia Saudita e do Iraque.
Nos restantes 99,4 por cento dos territórios árabes, esse evento é conhecido como al-nakba: a catástrofe. E tal epíteto dificilmente exagera o caso. A "ímpia" União Soviética, após um revés comparável, poderia ter caído num perturbável autoescrutínio; mas que significa isso para os povos que acreditam sinceramente que uma divindade omnipotente está minuciosamente atenta aos seus desejos e desertos? Tendo suportado vários séculos de prosperidade, poder e alcance global, e eventual império por parte dos cristãos, as nações islâmicas foram vencidas por uma província que tem o tamanho de Nova Jérsia.(...)
O 11 de Setembro implicou uma quebra moral, em todo o planeta; também desprendeu o terreno entre a realidade e o delírio. Por isso, quando falamos dele, chamemo-lo pelo nome que lhe é próprio; façamos por não sugerir que a nossa experiência desse evento, desse desenvolvimento, foi absorvida sem fricções e arquivada. Não o foi. O 11 de Setembro continua, prossegue com todo o seu mistério, a sua instabilidade e o seu terrível dinamismo."
(Amis, Martin, O Segundo Avião, Quetzal, 2011, texto retirado do excerto publicado em exclusivo na revista Ler, nº 105, Setembro de 2011, pp. 43-45.)
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