terça-feira, 24 de maio de 2011

O mal contemporâneo

"Se há algo de novo no mal contemporâneo, não é simplesmente uma questão de quantidade relativa, nem de relativa crueldade. As câmaras de gás foram inventadas para poupar as vítimas a formas dolorosas de morte - e para poupar os assassinos a uma visão que poderia perturbar  as suas consciências. Para muitos, é essa mistura perversa de industrialização com uma pretensa humanidade que torna os campos da morte horripilantes. As discussões sobre que tipos de morte são piores levam a formas macabras de competição. Um momento de reflexão sobre a história da tortura deixa claro que, antes e depois de Auschwitz, os seres humanos mostraram possuir competências para a crueldade que as palavras não conseguem captar. Só o facto de estarmos habituados à morte de Jesus como um ícone pode eclipsar a atrocidade da sua crucifixão. Se isto não fosse tão familiar, podia facilmente servir como paradigma do sofrimento inocente a que o cristianismo primitivo assistiu. Forçar um prisioneiro condenado a arrastar o instrumento que a seguir será usado para o torturar até à morte, pelo meio de uma multidão escarnecedora, é um refinamento de crueldade que nos devia cortar a respiração. Devia ser suficiente para deter à nascença o impulso da comparação entre sofrimentos. O que faz de Auschwitz um problema para o pensamento sobre o mal não deve ser uma questão de grau, porque a este nível não há escalas.
(...) Isolar um factor na rede das atrocidades que constituíram os campos da morte é provavelmente enganador. Em vez de perguntarmos porque produziu este acontecimento em particular uma sensação única de devastação, que anuncia o fim violento de uma era, devíamos olhar mais cautelosamente para as fontes conceptuais que foram destruídas."
(Neiman, Susan, O mal no pensamento moderno, Gradiva, pp.286-287)

1 comentário:

Porfirio Silva disse...

É um livro muito interessante.