segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

pensamentos e preocupações

Morrer costumava fazer-se acompanhar por um conjunto predefinido de costumes. Guias sobre a ars moriendi, a arte de morrer, eram extraordinariamente populares; uma versão medieval publicada em latim, em 1415, foi reeditada em mais de uma centena de edições em toda a Europa. As pessoas achavam que a morte devia ser aceite estoicamente, sem medo ou autocompaixão ou esperança de algo mais que não o perdão de Deus. Refirmar a fé, arrepender-se dos seus pecados e desapegar-se dos seus bens materiais e desejos mundanos eram etapas cruciais, e os guias ofereciam às famílias preces e perguntas para fazerem aos moribundos, de modo a colocá-los no estado de espírito certo, nas suas derradeiras horas de vida. As últimas palavras revestiam-se de uma reverência especial.
Hoje em dia, uma doença catastrófica e rápida é que é a exceção. Para a maior parte das pessoas, a morte só chega depois de uma longa luta médica com uma doença que, no fim, é imbatível (...). Em todos os casos, a morte é certa, mas o momento em que vai chegar, não. Por isso, toda a gente se debate com esta incerteza: como, e quando, aceitar que a batalha está perdida? Quanto a últimas palavras, parece que praticamente já nem existe tal coisa. A tecnologia pode sustentar os nossos orgãos até estarmos muito para lá de um estado de consciência e coerência. Além disso, como é que podemos tratar dos pensamentos e preocupações dos mortos, quando a Medicina fez com que se tornasse quase impossível ter a certeza sobre quem é que está a morrer? Estará  uma pessoa com um cancro terminal, demência ou insuficência cardíaca incurável efetivamente à beira da morte?

Atul Gawande, Ser Mortal, Lua de Papel, 2014, p. 158

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