segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

continuar a moldar

«Há momentos em que chego a pensar que chegou a hora, por exemplo num daqueles dias em que me sinto em baixo», disse ele. «Às vezes, uma pessoa está farta de tudo, percebe? Eu moía o juízo à minha Shelley. Dizia-lhe: "sabes que em África, quando uma pessoa envelhece e deixa de produzir, o grupo leva-a para a selva e deixa-a lá para ser consumida pelos animais selvagens." Ela achava que eu era doido. "Não", dizia eu. "Já não produzo nada, só estou a custar dinheiro ao governo." De vez em quando, dá-me para isso. Mas depois penso: Ei, a vida é o que é. Deixa-te ir. Se te querem por cá que mal tem?»
(...) Estávamos a falar sobre a história da vida dele há quase duas horas, quando me apercebi de que, pela primeira vez na vida, não tinha medo de chegar à fase em em que ele estava. O Lou tinha noventa e quatro anos e realmente não havia nada de cativante nisso. Os dentes pareciam pedra caídas. Doíam-lhe todas as articulações. Perdera um filho e a mulher já não conseguia andar sem o andarilho (...). Mas também era evidente que conseguia viver de uma maneira que o fazia sentir que ainda tinha um lugar no mundo. As pessoas ainda o queriam por perto. E isso levantava a possibilidade de o mesmo ser verdade, um dia, para qualquer um de nós.
O pavor da doença e da velhice não é só o pavor das perdas que nos vemos obrigados a suportar; é também o pavor do isolamento. À medida que as pessoas se vão apercebendo da finitude da sua vida, deixam de pedir muito. Não procuram mais riquezas. Não procuram mais poder. Pedem apenas que as deixem, dentro do possível, continuar a moldar a história da sua vida no mundo:  a fazer escolhas  e a manter relações com os outros segundo as suas próprias prioridades. Na sociedade moderna, temos vindo a partir do princípio de que a debilidade e a dependência excluem esse tipo de autonomia. O que aprendi com o Lou (...) é que, sim, é possível.
«Não me preocupo com o futuro», disse o Lou. «Os japoneses têm a palavra karma. Significa: se é para acontecer, não há nada que eu possa fazer para o impedir. Sei que o tempo é limitado e daí? Tive uma boa vida.»

Atul Gawande, Ser Mortal, Lua de Papel, 2014, p. 148-149

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