domingo, 11 de maio de 2014

por fim não restava ninguém a não seres tu.

"Chegaras tão longe à tua própria custa, e por isso tinhas essa confiança sem limites nas tuas opiniões. Em criança não ficava tão fascinado com isso como quando comecei a entrar na adolescência. Tu governavas o mundo a partir da tua poltrona. A tua opinião era a única correcta, todas as outras eram absurdas, exageradas, bizarras, anormais. E a confiança que tinhas em ti era tão grande quem nem sequer precisavas de ser coerente, mas nunca deixavas de ter razão. Acontecia até não teres opinião sobre um assunto, e consequentemente considerares liminarmente falsas todas as opiniões possíveis sobre ele. Eras capaz de dizer mal dos Checos, depois dos Alemães e depois dos Judeus, não escolhendo este ou aquele aspecto, mas todos, de tal modo que por fim não restava ninguém a não seres tu. Vejo em ti o enigma próprio de todos os tiranos, cuja razão se fundamente na sua pessoa, e não no pensamento. Pelo menos, foi o que me pareceu."
                            Franz Kafka, Carta ao Pai, (tr. João Barrento), Quasi edições, 2008, p.17.