"Apesar de tudo, dá a ideia de que consegue conciliar, preservar esse tempo lento, no meio de tantas coisas que vai fazendo.
Sim, consigo. São aquelas coisas que as pessoas nunca referem nas entrevistas: uma pessoa de bem consigo mesma, de mal com o mundo, sim, mas de bem consigo. Tenho a paz de espírito suficiente e a felicidade - é essa a palavra - suficiente para poder mobilizar os meus recursos para coisas muito diferentes da obsessão moderna pela autognose e pelos problemas da estima, pelos problemas subjectivos individuais que me são em grande parte alheios.
Digo às vezes na brincadeira que sou um bruto afetivo. Não tenho estado de alma. Isso significa que não perco tempo com aquela obsessão da interioridade psicológica, quase psicanalítica, que faz muito o mundo contemporâneo. É uma das pragas que caíram sobre o mundo desde o romantismo, em que as pessoas acham que só se movimentam por aquilo de que gostam ou desgostam, pelo amor, pelos afetos, pelos ódios, e isso tudo a um nível muito superficial e imediato. Naturalmente andam sempre meio deprimidas.
(...)
Conquistou o tempo para construir o seu trabalho?
Sim, com muitas defesas. Isso obriga-me a ser muito antissocial, num certo sentido. Não sinto a obrigação de responder aos e-mails, ao telemóvel. Não acho que se deva ceder a uma das maiores praga do mundo contemporâneo que é obrigar as pessoas, por vias tecnológicas, a estarem sempre presentes. Se eu quiser escrever ou ler, tenho que escapar dessa presença. Muitas vezes paga o justo pelo pecador.
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Se eu não ler ou escrever ou trabalhar um certo número de horas por dia começo a ficar danado com o mundo e comigo mesmo. Faz parte da minha maneira natural de fazer as coisas. Ando sempre com livros atrás e nunca me aborreço, never a dull moment, como dizem os ingleses, tenho sempre coisas que quero ver, que quero ler. Enquanto não acabarem os livros, os jornais, o mundo exterior, a curiosidade com as coisas, a enorme quantidade de coisas que a gente não sabe e que pode aprender, eu não tenho um momento aborrecido.
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Há uma certa hostilidade em relação ao saber, mesmo a este tipo de saber que é um saber de amador, no verdadeiro sentido do termo. Há mais defesa da ignorância, particularmente da parte daqueles que acham que sabem.
A ignorância é muito atrevida?
É das coisas mais insuportáveis que há e que mais me irritam, essa ignorância presumida que infelizmente se encontra por todo o lado, nos blogues, no espaço público, nos debates, no jornalismo, mesmo na academia. Muitas vezes são asneiras monumentais, ditas com muita prosápia. A prosápia tem uma proporção inversa com a sabedoria. "
Excerto da entrevista de Ana Sousa Dias a José Pacheco Pereira, Revista Ler, nº126, Julho/Agosto de 2013, pp.25-27