"A tua embriaguez é tão doce que me estonteia.Respiras suavemente. Estás vivo. Gostaria de passar para o teu lado do mundo, de ver nos teus sonhos. Será que sonhas com um amor branco, frágil, distante, tão longe? Com uma infância, com um palácio perdido? Sei que lá não tenho lugar. Que nenhum de nós lá terá lugar. Estás fechado como uma concha. E, no entanto, fácil te seria abrires-te, uma minúscula fenda por onde a vida se precipitaria. Adivinho o teu destino. Permanecerás na luz, serás celebrado, serás rico. O teu nome imenso como uma fortaleza irá esconder-nos da tua sombra. Irá esquecer-se o que aqui viste. Esses instantes irão desaparecer. Até tu esquecerás a minha voz, o corpo que desejaste, os teus tremores, as tuas hesitações. Como eu gostaria de que algo conservasses disso. Que levasses contigo uma parte de mim. Que se transmitisse o meu país distante. Não uma vaga recordação, uma imagem, mas a energia de uma estrela, a sua vibração no escuro. Uma verdade. Sei que os homens são crianças que expulsam o seu desespero com a cólera, e o seu medo para o amor; ao vazio respondem construindo castelos e templos. Agarram-se a historietas, levam-nas à sua frente como estandartes; cada um faz sua história para se ligar à multidão que partilha. São conquistados quando se lhes fala de batalhas, de reis, de elefantes e de seres maravilhosos; quando se lhes narra a felicidade que haverá para além da morte, a luz viva que presidiu ao seu nascimento, os anjos que giram à sua volta, os demónios que os ameaçam, e o amor, o amor, essa promessa de olvido e saciedade. Fala-lhes de tudo isso e hão de amar-te; far-te-ão igual a um deus. Mas, pois que estás aqui encostado a mim, tu saberás, tu, um franco malcheiroso que o acaso trouxe para te pôr ao alcance das minhas mãos, saberás que tudo isso não passa de um véu perfumado que esconde a eterna dor da noite."
Mathias Énard, Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes, (tradução de Pedro Tamen), D. Quixote, 2013, pp 64-65.
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