terça-feira, 30 de outubro de 2012

uma questão de respeito próprio ou não

"Se integrarmos os sentimentos humanos na questão colocada no início [devemos comer animais?], então esta toma a seguinte forma: é aceitável comer animais que não seríamos capazes de matar por mão própria? No estado presente da civilização ocidental, os nossos sentimentos tornam difícil à maioria das pessoas matar um porco ou uma vitelinha - mesmo se soubéssemos como fazê-lo. Quanto aos peixes, pelo contrário, acham-se muito mais pessoas capazes de os matar. E «matar» ovos de galinha representa para bem poucos uma dificuldade. Em tempos mais recuados, deve ter sido mais fácil para o homem matar animais, e aos povos tradicionais isso também provoca, em regra, menos problemas. Mas a moral também é sempre uma questão de sensibilização cultural. É menos dependente de uma definição abstracta do humano do que do estado de sensibilidade de uma sociedade. E é perfeitamente de admitir que este estado de sensibilidade na Europa ocidental dos nossos dias represente um cume provisório no desenvolvimento da humanidade. Exactamente por esse motivo, para a indústria da carne e hoje necessária a «ilusão» de dar a uma perna de vitela uma aparência que não nos lembre a vitela. A nossa intuição é aqui induzida em erro, o recalcamento é-nos facilitado. A maior parte das pessoas na nossa sociedade só não tem nojo nem pudor de comer carne, porque o sofrimento dos animais não lhes está imediatamente patente diante dos olhos. Os nossos neurónios-espelho reagem ao mugido de uma vitela no matadouro, mas permanecem inactivos perante um bife já empacotado.
A questão de até que ponto nos deixamos ou não levar, movidos por argumentos refinados, a não comer mais carne, é algo que cada um tem de decidir por si mesmo. Quando se pensa racionalmente sobre isso, há porventura que dizer que os argumentos contra o consumo de carne são provavelmente melhores e mais convincentes do que os argumentos em seu favor, quer se trate dos utilitaristas quer do recurso à intuição moral. Se agora decidimos prescindir totalmente do bife, do hambúrguer e do frango assado, ou se passamos apenas a comê-los com menor frequência do que até agora, depende largamente da medida em que nos sensibilizamos a nós mesmos ou deixamos sensibilizar para esta questão, por outras palavras: se fazemos dela uma questão de respeito próprio ou não. Um novo olhar sobre a imagem que temos de nós próprios, em face dos nossos parentes peludos, deverá conferir um impulso adicional a este processo."

Richard David Precht, Quem sou eu e se sou quantos? Uma viagem filosófica, D. Quixote, 2010 tr. nada cuidada de LC (a edição original é de 2007), pp.220-221.

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