Não cabe apresentar aqui uma
argumentação completa sobre a questão de saber se é correcto, ou não, o uso de
sementes transgénicas na agricultura dita convencional1.
Como ponto prévio gostava só de vincar que qualquer discussão séria sobre essa
questão deverá ter em conta os pontos de vista dos vários intervenientes: o
ponto de vista da biotecnologia e da sua ligação com as grandes empresas – da
investigação sobre novas sementes ao estudo de implementação de novas culturas
e à venda de sementes; o ponto de vista do agricultor que quer produzir muito,
bom e rápido; o ponto de vista do consumidor que quer comprar alimentos bons,
baratos e que ofereçam garantias de qualidade; e, por fim, o ponto de vista do
bem comum, ou do Estado, que é o regulador e o garante da protecção de todas as
partes envolvidas. As considerações que a seguir apresento dirigem-se sobretudo
àqueles que, como eu, discutem a questão do ponto de vista do consumidor. A
minha posição tende a ser moderada. Nem conservadora ao ponto de desejar
proibir todos os transgénicos. Nem liberal ao ponto de querer permitir todo o
tipo de cultivo sem qualquer tipo de controlo.
A grande razão contra o uso
dessas sementes parece derivar do medo de vir a contrair doenças ou de vir a
morrer por causa dos alimentos transgénicos. O raciocínio é indutivo (a sua
conclusão não é necessariamente verdadeira) e pode ser apresentado do seguinte
modo: já vimos, no passado, pessoas morrerem por causa da negligência da
indústria alimentar (veja-se o caso da doença das vacas loucas). Temos, pois,
receio de que erros semelhantes venham a acontecer no futuro e, por isso,
queremos uma agricultura livre de transgénicos. Defende-se assim uma postura
preventiva. Mas o raciocínio é pouco sólido. Pouco se descobriu sobre o
hipotético mal que os alimentos resultantes de sementes transgénicas poderá
causar à saúde humana; desconfia-se que poderão causar alergias. Contudo,
sabe-se muito mais acerca do carácter nocivo dos alimentos processados e da
carne produzida em regime industrial. Mas nem por isso muitas das pessoas que
são contra a introdução de transgénicos querem ou podem (não esquecer que o
estilo de vida das nossas sociedades é também factor a ponderar nesta
discussão) abdicar de uma alimentação processada, apesar de ela ser, a longo
prazo, altamente prejudicial2.
Muitos dos argumentos usados
pelos consumidores que lutam contra os transgénicos baseiam-se em premissas
egoístas do género: ‘sou contra porque isso me vai fazer mal à saúde’. O
único argumento que não contém uma certa dose de egoísmo é o argumento da
biodiversidade: isto é, que a introdução de uma agricultura transgénica
diminuirá a variedade biológica. Aqui a ideia é que devemos deixar a natureza
fazer o seu trabalho e que não se deve interferir de maneira nenhuma no
processo de selecção natural. Há aqui uma certa visão de que a vida é intocável
e de que o homem, ao violar os segredos da natureza, está a colocar em risco
toda a vida na Terra.
Mas mesmo que isso seja verdade é
preciso não demonizar excessivamente a engenharia genética, nem santificar em
demasia a vida natural. Não podemos esquecer que muitas dos benefícios que a
medicina actual oferece (e muitas das promessas que apresenta em relação ao
futuro da humanidade) – por exemplo na produção de vacinas e de insulina
transgénicas – resultam de progressos consideráveis na engenharia genética. Por
outro lado, é preciso cuidado ao pressupor a santificação da vida (a vida
natural deveria ser intocável), pois isso aproximaria a argumentação daqueles
que, pela mesma razão, acabam defendendo, por exemplo, a imoralidade do aborto
ou a proibição de investigação com células estaminais.
A luta importante a travar não é
contra a engenharia genética porque essa por si só não é boa nem má, e ninguém
poderá defender seriamente um mundo sem ciência e sem os benefícios que ele nos
oferece diariamente. A luta a travar é contra uma agricultura convencional sem
escrúpulos e contra a produção industrial de carne (nos Açores os animais são
alimentados com rações produzidas a partir de milho transgénico e ninguém
parece muito preocupado com isso) onde a saúde dos animais e das pessoas
constitui um atropelo ao lucro rápido. Sabe-se que esse tipo de produção de
alimentos é altamente poluidora e destrutiva do meio ambiente porque usa e
abusa de adubos químicos, herbicidas e pesticidas cuja conjunção e consumo
contínuo é altamente prejudicial para a saúde. E de nada valeria ter uma
agricultura sem transgénicos mas convencional no sentido apresentado. Só
defendendo uma agricultura orgânica contra uma agricultura destruidora do
planeta podemos ser ambientalistas sem desprezar o valor que a biotecnologia
nos dá.
[1] Para uma discussão ética detalhada ver o artigo de Ana Firmino, (2007) “A
Saga dos OGM´s: uma reflexão polémica”, disponível on line.
[2] Veja-se, sobre a ligação entre um ambiente poluído e as doenças mortais, o livro esclarecedor de Sandra Steingraber, Living Downstream – An Ecologist’s Personal investigation of Cancer and the Environment, Da Capo Press, 20102.
[2] Veja-se, sobre a ligação entre um ambiente poluído e as doenças mortais, o livro esclarecedor de Sandra Steingraber, Living Downstream – An Ecologist’s Personal investigation of Cancer and the Environment, Da Capo Press, 20102.
Texto publicado no jornal da Gê Questa - Associação de defesa do ambiente, Verão de 2011. Edição on line aqui.]
LFB
LFB
1 comentário:
A luta a travar não é nem deveria ser contra o novo conhecimento/ciência (mesmo nestes casos, nem todos os fins justificam os meios), mas sim contra a crueldade e crueza que o lucro acima de tudo fomenta.
E acerca disto, ou colaboras ou estás completamente excluído.
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