Quando reflectimos sobre o pensamento ecológico - quer seja nas políticas ou nas acções ambientalistas - encontramos contradições de diversa ordem. Gostamos de alguns animais e comemos outros, essa é a contradição mais óbvia. Mas há outras: somos todos ambientalistas/ecologistas mas não fazemos nada, ou fazemos muito pouco, para alterar a criação intensiva de animais (no mundo civilizado são 450 biliões de animais todos os anos, alimentados com rações geneticamente modificadas e com antibióticos à mistura, com mobilidade restrita e criados em ambientes doentios). Somos contra os transgénicos mas alimentamos os nossos animais com rações transgénicas (da próxima vez que comprar rações feitas nos Açores verifique o rótulo). Gostamos de gatos, mas quando são mortos nas estradas nada fazemos - nas estradas açorianas não há um único sinal de informação sobre o perigo de atropelamento de animais, domésticos ou não, que atravessam as estradas. Como ecologistas, defendemos os touros, mas comemos as vacas. Temos campanhas públicas anuais de protecção do cagarro, mas permitimos pacificamente a morte de ouriços-cacheiros nas estradas. Alguém sabe qual desses animais é o mais desprotegido e ameaçado? O ouriço não parece estar em extinção, mas está muito mais presente na nossa vida, enquanto animal morto, do que o cagarro. Olhemos um pouco para o caso do ouriço-cacheiro[1]. Apesar de, na Grã-Bretanha, estar entre os animais de jardim preferidos, a sua população está a cair abruptamente. Decresceu para metade nos últimos 15 anos e, a continuar assim, em 2030 não haverá ouriços-cacheiros ingleses. Apenas 1 em cada 100 chega aos cinco anos, e 15000 são esmagados todos os anos nas estradas britânicas. Mesmo os bem-intencionados podem contribuir para a morte dos ouriços se, quando encontram um no seu pátio, lhes dá pão e leite o que lhes pode provocar uma diarreia mortal. A melhor forma de ajudar um ouriço é soltá-lo na horta: um só ouriço consegue comer até 250 lesmas numa noite! O seu nome – cacheiro – sugere aquele que dissimula ou engana, mas que animal terá capacidade para enganar um automóvel? Não deveria este animal ser - pelo menos com tanto empenho quanto o cagarro - também defendido através de campanhas públicas?
Um exemplo mais geral. É a ciência quem deve dizer aos políticos o estado do ambiente. A nível mundial essa é uma tarefa do PIAC - painel intergovernamental para as alterações climáticas que, em 2007, conjuntamente com Al Gore, ganhou o Nobel da paz. Mas o que se viu no caso climategate - onde dados que falsificavam as conclusões e previsões catastrofistas do painel foram ignorados e afastados - foi a política a dizer à ciência como é que o ambiente deve estar. Isto não significa que o planeta esteja, ao contrário do que afirmam os cientistas (os mais e os menos éticos), bem. O planeta está mal e existem factos inegáveis. O número de espécies em vias de extinção ou já desaparecidas é assustador. Os tigres, por exemplo, estão em vias de extinção. E é custoso imaginar um mundo sem tigres. O problema é que alguns cientistas também estão mal e descredibilizam a ciência ao ponto de lançarem a dúvida sobre se a ecologia não será também uma farsa. Como mostrou o caso climategate, a ecologia tem sido aproveitada politicamente, o que significa uma prevalência da fantasia/aparência sobre a real motivação para mudar o mundo. Um das razões para explicar isso pode ser porque “há cada vez mais e mais cientistas a quererem ser políticos”[2].
Um terceiro e último caso, talvez o mais flagrante, é o da alimentação. Existem muitas razões para uma pessoa mudar os seus hábitos alimentares (éticas, religiosas, estéticas). Vejamos uma razão que tem sido pouco explorada que é a ecológica ou ambiental. Todos sabemos dos problemas ambientais do nosso planeta. Mas qual o contributo da alimentação carnívora para esses problemas? Que sentido é que faz ser ecológico e não ser vegetariano? Quando se questiona as pessoas sobre qual a causa do aquecimento global, todos referem a poluição, mas poucos falam na produção de carne[3]. Mas a verdade é que 18 % da poluição total é causada pelos efeitos da criação intensiva de animais (metano e tudo o resto: impacto na água e na biodiversidade; proliferação de vírus...) De todos os cereais produzidos, 40 a 50% são comidos por animais, 75 % no caso da soja. São precisos 7 quilos de grão (milho e soja) para fazer um quilo de carne. E para isso são precisos campos e para ter campos é preciso desflorestar. É por isso que a floresta da Amazónia está a desaparecer. Num ano uma vaca produz tantos gases com efeito de estufa quanto um carro que viaje 70.000 km – mais de uma volta e meia ao planeta terra. Para produzir carne são precisas 10 vezes mais terra do que para produzir vegetais. À medida que as populações aumentam, aumenta também o consumo de carne. Por consequência, aumentam também as emissões de gases com efeito de estufa. Um europeu come, em média, durante a sua vida, 1800 animais. Calcule-se o efeito, se todas as pessoas no mundo fizessem o mesmo. As florestas estão a desaparecer; a biodiversidade, a água, tudo isto é posto em causa pela produção animal. Um vegetariano num jipe produz menos emissões de carbono do que um carnívoro num carro híbrido (mais um sinal do politicamente correcto, mas ecologicamente ineficaz). Se tudo isso é verdade, porque não se fala mais da relação entre o aquecimento global do planeta e a produção intensiva de animais? Por que não é a criação intensiva de animais mencionada uma única vez no filme “uma verdade inconveniente” de Al Gore? Talvez porque ele é também um produtor de carne e estaria, de forma silenciosa, a proteger a poderosa indústria de produção de carne norte-americana. Outro interessante envolvimento entre política e ecologia.
Mas não precisam os seres humanos de comer carne e de beber leite? A resposta inequívoca é não[4]. A ideia de que precisamos de comer carne e leite todos os dias é gerada, em grande parte, pela propaganda. Reduzir o consumo de produtos animais não nos fará grande mal, pelo contrário, poderá até reduzir algumas doenças mortais. Quando é que vamos começar a fazer as contas aqui nos Açores, onde a produção de carne (aves, porcos e vacas) em ambientes fechados começa a ser significativa? E por que não há alimentação vegetariana nas eco-escolas? A resposta está em parte na desinformação. Comemos o que nos dão, sem nos preocuparmos muito com os efeitos desastrosos da alimentação. O pensamento ecológico dominante parece mais uma questão de ser politicamente correcto, de marcar a diferença seguindo a moda ecologista, do que a afirmação de uma real preocupação com o planeta em geral e com os animais em particular. Se queremos manifestar alguma coerência entre as nossas crenças ecológicas e as nossas atitudes então deveremos comer menos carne. Individualmente deveremos fazer um esforço para, pelo menos em algumas refeições semanais, encontrar uma alternativa vegetariana. Em termos colectivos, as instituições públicas têm uma grande responsabilidade e uma forma de se mostrarem empenhadas em apresentar soluções seria, por exemplo, instituir um dia por semana de comida vegetariana nas escolas, nos lares de idosos, nos hospitais, etc. Por último, uma boa dose de pensamento céptico e crítico talvez nos possa impedir de embarcar em euforias ecológicas não fundamentadas.
[1] As informações sobre o ouriço foram retiradas de Lloyd e Mitchinson, O Livro da Ignorância sobre o Mundo Animal, Casa das Letras, 2010, pp.145-146.
[3] Muitas das informações a seguir apresentadas foram retiradas do filme “MEAT THE TRUTH - Uma Verdade Mais Que Inconveniente.
[4] Sobre a mudança para uma dieta vegetariana vale a pena ler o livro de Jonathan Safran Foer, Comer Animais, Bertrand, 2011.
[Texto publicado no jornal da Gê Questa - Associação de defesa do ambiente, primavera de 2011. Edição on line aqui.]
LFB
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