É o fim: da noção de voluntariado, da racionalidade/cientificidade/qualidade dos projectos comunitários (sobretudo os que trabalham em áreas especialmente dadas a medos e preconceitos, como no caso dos consumidores de drogas de rua), do tratamento digno dos utentes (que têm tanto direito a serviços de qualidade como qualquer outro cidadão) e da possibilidade de profissionais com especial vocação para estas áreas (apesar de serem mal pagos, muitos ainda persistem) como psicólogos e assistentes sociais virem a contribuir de forma pensada (e não apenas com base em boas intenções) para a melhoria das condições de vida das suas populações-alvo.
Se o governo de repente propusesse: "a partir de hoje não são necessários médicos ou enfermeiros nos hospitais; os curandeiros podem fazer o mesmo trabalho (mesmo que não saibam/queiram)" ou "não precisamos de professores, apenas de pessoas com 'experiência de vida' e 'boa vontade' para dar aulas" o que diria o cidadão comum?! Claro que se manifestaria revoltadíssimo e com razão! O problema aqui é que as IPSS não tocam directamente os interesses e direitos do cidadão médio, razoavelmente esclarecido e reivindicativo (quanto mais não seja porque pode votar). Tocam em populações invisíveis e/ou menosprezadas em termos de cidadania: crianças, vítimas de crimes, pessoas com deficiência, prostitutos(as), consumidores de psicoactivos. O seu trabalho é na maior parte das vezes socialmente invisível (surge apenas em força na época do Natal, ligado a espectáculos televisivos, sendo apenas convocadas as organizações socialmente correctas, ou seja, que trabalhem com indivíduos considerados moralmente puros e, portanto, merecedores, como as crianças ou vítimas de cancro). Muitas IPSS estão na sombra, tal como os seus utentes. E com estas medidas, o governo vai atirá-los para a escuridão.
Podia esperar tudo, menos isto: um país que abdica de uma resposta social relativamente intencionalizada em nome da 'lógica de mercado' (porque é disto que se trata, sobretudo para o PSD; vide o linguajar do Secretário de Estado Marco António Costa) e da necessidade de dar 'lições de moral' aos beneficiários do RSI (o que Foucault chama de ortopedia moral, algo desde sempre explícito no projecto político do CDS-PP) nem que isso implique a total deturpação do significado do voluntariado (nomeadamente, do requisito 'livre iniciativa') e do trabalho (continuarão a ser chamados de beneficiários do RSI mesmo depois de os obrigarmos a trabalhar; resultado: mantém-se o estigma, anula-se a motivação). Esta é também uma forma engenhosa de atribuir a culpa do desemprego aos indivíduos (afinal não trabalham porque não querem, vêem?) quando sabemos que o desemprego é estrutural, endémico (é um correlato do capitalismo financeiro e, segundo alguns autores, andará sempre em torno dos 10%, independentemente dos ciclos económicos), pelo que irá persistir indiferente a este 'Programa de Emergência Social'; a começar pelo despedimento dos psicólogos e assistentes sociais que actualmente trabalham nas IPSS.
Talvez como futuros beneficiários do RSI possam (tenham de) voltar às IPSS com os seus saberes especializados e a menor custo…
(DO)
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