"A empresa, sozinha, não conseguirá, evidentemente, assegurar a preponderância do individualismo responsável sobre as tendências para a independência absoluta do eu. Como poderia consegui-lo, quando se conhecem os efeitos devastadores das políticas ultra-liberais na sociedade em geral: o fosso entre ricos e pobres aumenta [veja-se o
caso dos Estados Unidos], os sistemas de protecção social recuam, há toda uma parte da população que se marginaliza, os sistemas educativos degradam-se, a criminalidade aumenta, a focalização nos lucros imediatos intensifica-se, a economia especulativa leva a melhor sobre a industria. As medidas de desregulamentação, a desobrigação do Estado, o culto do '
laisser-faire' aceleram a promoção de um individualismo desenfreado, justificam, em nome da 'mão invisível', a redução das medidas sociais, o enriquecimento vergonhoso, a maximização do interesse individual, a especulação de horizontes ilimitados, o 'cada um por si', não apenas entre os privilegiados, mas também entre os mais desfavorecidos. (...) Como imaginar o reforço do individualismo responsável, quando a glorificação do mercado conduz à exclusão de estratos inteiros da população, quando os desempregados são considerados '
preguiçosos' e os dispositivos sociais desperdícios públicos? Se a legitimidade do Estado-providência se esfumou, a realidade social do liberalismo é luminosa mas pouco sedutora. O Estado não tem, é certo, vocação para ser produtor de bens materiais e não pode continuar a ser considerado como o único suporte dos progressos económicos e sociais; nenhuma economia dinâmica, hoje em dia, é concebível fora da lógica do mercado. Isso não justifica a demissão ou a perda de ambição do poder público. Da mesma forma que a concorrência económica não pode funcionar sem quadro político e jurídico, uma
sociedade democrática não pode permitir, sem se negar a si própria, o crescimento indefinido das desigualdades em matéria de nível de vida, de saúde, de educação, de urbanismo. A sagração do mercado não apela à reabilitação do Estado produtor, mas à necessidade do Estado regulador e antecipador
."
Lipovetsky, G. (2010). O Crepúsculo do Dever. A ética indolor dos novos tempos democráticos
(Tr. F. Gaspar & C. Gaspar). Lisboa: Publicações Dom Quixote, p. 219.
(sublinhados meus)
(D.O.)
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