segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

dois eus diferentes

"Achamos que uma dor de longa duração é pior do que uma dor de curta duração e que ter um nível médio de dor maior é pior do que ter um nível médio de dor menor. Mas não foi nada disso que os doentes disseram. As suas classificações finais ignoraram em grande parte a duração da dor. Em vez disso, as classificações regeram-se mais por um fenómeno a que Kahneman chamou « a regra do fico-fim»: a média da dor sentida em apenas dois momentos: o pior momento em toda a intervenção e o final. (...)
As pessoas parecem ter dois eus diferentes: um que passa pelas experiências e vivencia cada instante, e outro que recorda as experiências e atribui quase todo o peso do juízo de valor a dois meros pontos no tempo, o pior e o último. O eu que recorda parece ater-se à regra pico-fim, mesmo quando o final é uma anomalia. Bastou uns minutos  sem dor no fimda intervenção médica para reduzir drasticamente as classificações globais de dor dos doentes, inclusive tendo sentido mais de meia hora intensa de dor. «Não custou tanto», disseram depois. Um final penoso também fez disparar de maneira igualmente radical as classificações de dor. (...) A investigação demonstrou também que o fenómeno se aplica exatamente da mesma maneira à forma como as pessoas classificam as experiências agradáveis. Toda a gente conhece a experiência de ver uma prova desportiva em que uma equipa joga lindamente durante o jogo quase todo e depois, no fim, estraga tudo. Sentimos que o final dá cabo da experiência toda. Existe, todavia, uma contradição na origem desse valor. O eu que vive as coisas desfrutou de horas de prazer e de apenas um momento de desprazer, mas o eu que recorda não vê prazer nenhum.
 Se o eu que recorda e o eu que vive podem ter opiniões radicalmente diferentes sobre a mesma experiência, então a pergunta difícil que se levanta é a qual dos dois devemos dar ouvidos."
Atul Gawande, Ser Mortal, Lua de Papel, 2014, p.233

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