"Da cintura para baixo, todos os
homens são irmãos. O homem nunca conheceu a solidão senão nas regiões
superiores, onde se é poeta ou louco - ou criminoso. (...) continuo a
preferir a vida anárquica; ao contrário de Paul Éluard, não posso dizer
que a palavra «fraternidade» me entusiasme. Nem me parece que a ideia de
fraternidade tenha origem numa concepção poética da vida. Não era a ela
que, de maneira alguma, Lautréament se referia, ao escrever que a
poesia deve ser feita por todos. A fraternidade humana é uma ilusão
permanentemente compartilhada pelos idealistas de todas as épocas e
lugares: é a redução do princípio da individuação ao mínimo denominador
comum de inteligibilidade. é o que leva as massas a identificarem-se com
as estrelas de cinema ou com os megalómanos como Hitler ou Mussolini. é
o que as impede de lerem e apreciarem , de receberem a influência e de
criarem por seu turno poesia (...)
Em
todas as épocas, bem como em todas as vidas dignas desse nome,
verifica-se um esforço por restabelecer esse equilíbrio que é perturbado
pelo poder e pela tirania que algumas grandes figuras exercem sobre
nós. Esta luta é essencialmente pessoal e religiosa. Nada tem a ver com a
liberdade e a justiça, que são palavras ociosas, querendo dizer ninguém
sabe ao certo o quê. Tem a ver com a poesia ou, se quiserem com fazer
da vida um poema. Tem a ver com a adopção de um atitude criadora perante
a vida. Uma das formas mais eficazes de manifestação desta luta
consiste em liquidar as influências tirânicas sobre nós exercidas pelos
que já morreram. Consiste não em negar os seus exemplos, mas em
absorvê-los, assimilá-los e, se for esse o caso, em ultrapassá-los. Cada
homem terá que fazer isto apenas por si próprio. Não há nenhum plano
praticável para a libertação universal. A tragédia que cerca a vida de
quase todas as grandes figuras é esquecida na admiração que consagramos
ao trabalho de tais homens. Esquecemos que os gloriosos gregos, que não
paramos de admirar, trataram os seus homens de génio de um modo talvez
mais vergonhoso e mais cruel do que qualquer outro povo conhecido.
Esquecemos que o mistério que rodeia a vida de Shakespeare só é mistério
porque os Ingleses não querem admitir que a estupidez, a incompreensão e
a intolerância dos seus contemporâneos levaram Shakespeare à loucura e
que este acabou os seus dias num manicómio.
A
vida é banquete ou fome, como diz o velho provérbio chinês. Hoje é mais
fome do que qualquer outra coisa. Sem precisarmos de recorrer aos
ensinamentos de um sábio como Freud, é evidente que, em épocas de fome,
os homens se comportam de maneira diferente do que na abundância. Em
tempos de fome, andamos a vaguear pelas ruas com um olhar voraz. Olhamos
para o nosso irmão, vemos nele um suculento naco e prontamente lhe
armamos uma cilada e o devoramos. Fazemo-lo em nome da revolução. A
verdade é que não tem muita importância aquilo em nome de que o fazemos.
Quando os homens se tornam irmãos tornam-se também ligeiramente
canibais. Na China, onde as fomes são mais frequentes e mais
devastadoras, já tem acontecido as pessoas ficarem tão histéricas (por
trás da famosa máscara oriental) que, quando vêem ser executado um
homem, se descontrolam e riem.
A fome em que vivemos tem a peculiaridade de se verificar no meio da abundância. Trata-se mais de uma fome espiritual, poderíamos dizê-lo, do que de uma fome física. Desta feita, as pessoas não lutam pelo pão, mas pelo direito
ao seu pedaço de pão, distinção que se reveste de alguma importância. O
pão, em sentido figurado, está em toda a parte, mas a maior parte de
nós tem fome. especialmente os poetas - poderei dizê-lo? Pergunto,
porque é tradição os poetas passarem fome. É, portanto, um pouco
estranho vê-los identificarem a sua fome física habitual com a fome
espiritual das massas. Ou será o contrário? Seja como for, estamos hoje
todos esfomeados, excepto, sem dúvida, os ricos e a burguesia
presunçosa, que nunca souberam o que é passar fome, nem espiritual nem
fisicamente.
Inicialmente,
os homens matavam-se uns aos outros na mira imediata da pilhagem -
alimentação, armas, utensílios, mulheres, etc. Tinha sentido, embora nem
caridade nem compaixão. Hoje somos compassivos, caridosos e fraternos,
mas continuamos a matar da mesma maneira, e matamos sem a mínima
esperança de atingirmos os nossos objectivos. Matamo-nos uns aos outros
em benefício dos vindouros, para que estes possam gozar de uma vida com
mais abundância (Grande treta!) "
Henry Miller, "carta aberta aos surrealistas de todo o mundo" (1959) in, O Mundo do sexo e outros textos, Dom quixote, 1987, pp. 149-151.
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