quarta-feira, 3 de outubro de 2012

o parvo da farsa

"A ideia e a prática comuns de olhar para outros lados que não para nós mesmos de muito nos tem valido! Somos para nós mesmos objecto de descontentamento: em nós não vemos senão miséria e vaidade. Para não nos desanimar, a natureza muito a propósito nos orientou a visão para o exterior. Avançamos facilmente ao sabor da corrente, mas inverter a nossa marcha contra a corrente, rumo a nós próprios, é um penoso movimento: assim o mar se turva e remoinha quando em refluxo é impelido contra si mesmo. Cada qual diz: «Olhai os movimentos do céu, olhai para o público, olhai para a querela deste homem, para o pulso daquele, para o testamento daqueloutro; em suma, olhai sempre para cima ou para baixo, ou para o lado, ou para a frente, ou para trás de vós.» O mandamento que na Antiguidade nos preceituava aquele deus de Delfos ia contra esta opinião comum. «Olhai para dentro de vós, conhecei-vos, atende-vos a vós mesmos, reconduzi a vós próprios o vosso espírito e a vossa vontade, que se consomem noutras partes; vós vos esvaziais e desperdiçais; concentrai-vos em vós mesmos, refreai-vos; atraiçoam-vos, dissipam-vos e roubam-vos a vós mesmos. Não vês que este mundo tem as miradas todas cravadas no interior e os olhos abertos para se contemplar? No teu caso, tudo é vaidade, dentro e fora, mas é menor vaidade se for menos extensa. Salvo tu ó Homem», dizia esse deus, «cada criatura primeiro se estuda a si própria e, de acordo com as suas necessidades, impõe limites aos seus trabalhos e desejos. Não há nenhuma criatura tão vã e tão necessitosa quanto tu, que abarcas o universo: és o escrutador sem conhecimento, o magistrado sem jurisdição e, no fim de contas, o parvo da farsa.»"
(Montaigne, "Da Vaidade", in Ensaios - Antologia, tr, RB Romão, Relógio D'Água, 1998, p.314)

1 comentário:

lupenes disse...

Que país o nosso; nestas condições, que tal sermos “Um Artista da Fome (…) Naquela altura, a cidade inteira dedicava-se ao artista da fome; de dia de jejum para dia de jejum, o público era cada vez maior; todos queriam ver o artista da fome pelo menos uma vez por dia; nos últimos dias, aqueles que tinham comprado uma assinatura passavam todo o dia sentados em frente à pequena jaula; mesmo já de noite havia ainda visitantes, à luz de tochas para aumentar o efeito; (…) aquele homem pálido, (…) que por vezes acenava coma cabeça num gesto de cortesia, respondia às perguntas esforçando-se por sorrir (…). Para além dos espectadores ocasionais, o público escolhia também três vigias permanentes, muitas vezes talhantes, facto curioso, que tinham por tarefa observar o artista da fome dia e noite para que ele não se alimentasse de alguma maneira secreta. (…) Tinha sempre gosto em passar a noite em branco com estes vigias; estava sempre pronto a rir com eles, a contar-lhes histórias da sua vida de viagens, a ouvir também as histórias deles, tudo apenas para os manter despertos, para mais uma vez mostrar que não tinha nada que se pudesse comer na jaula e que jejuava como nenhum deles era capaz. Mas nunca se sentia mais feliz do que quando chegava a manhã e aos vigias era trazido um pequeno-almoço sobreabundante, pago pela artista da fome, a que eles se lançavam com o apetite de homens sadios depois de uma noite passada a custo em vigília. (…) talvez não fosse a fome a causa daquela magreza que obrigava muitos, mesmo contrariados, a evitar as exibições por não suportarem olhá-lo, talvez a magreza se devesse antes a um descontentamento consigo mesmo. É que s+o ele sabia, nem sequer um iniciado o podia saber, com era fácil passa fome.”
Franz Kafka, Contos
Selecção e Prólogo, Jorge Luis Borges
Clássicos, Relógio D’ Água