sábado, 21 de abril de 2012

O Porto paralelo

"É em momentos como o de ontem vivido no Alto da Fontinha que Rui Rio revela o seu rosto de autarca e a sua aversão a tudo o que lhe cheire a diferença, particularmente a todas as formas de cultura e cidadania que escapem à Kultura, ao papel 'couché' e à rotina institucional. 
(...)
Uma ilha de iniciativa, de partilha, de democracia participativa? Era de mais para Rui Rio. Ateliés de leitura, de música, de teatro, de fotografia?, formação contínua?, apoio educativo?, aulas de línguas?, xadrez?, yoga?, debates?, assembleias? - Intolerável! "
(Manuel António Pina, daqui) 

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O Porto é a cidade portuguesa com mais prédios devolutos (em termos absolutos). Passar por exemplo por Campanhã (onde se encontra uma importante estação ferroviária) é profundamente deprimente, já que a massa de prédios degradados faz adivinhar a miséria que se esconde por detrás de cada uma daquelas fachadas [a este propósito, vale a pena clicar aqui].  
Mas isto não acontece só em Campanhã. Basta um ligeiro desvio aos circuitos turísticos para entrar neste Porto paralelo, lúgubre, abandonado pelos poderes públicos. Nunca estive no Alto da Fontinha, mas diz-me uma amiga que fica no cimo da Rua de Santa Catarina, principal rua comercial da baixa da cidade. "Parece outra cidade, outro mundo." A existência de um grupo de pessoas que por iniciativa própria e para benefício dos moradores resolve pôr mãos à obra para requalificar e dar uso a um dos inúmeros prédios deixados por todos - inclusive pela Câmara do Porto - ao abandono, parece-me um milagre. 
É claro que há a questão da propriedade, mas será esse o único elemento a considerar/valorizar nesta situação? Será que se compreende que, numa altura em que as relações de poder e condições de vida das pessoas vêm sendo  profundamente alteradas, ao ritmo dos noticiários, seja a existência deste projecto comunitário instalado num  prédio devoluto de uma zona pobre a suscitar este tipo de acção por parte da Câmara e da polícia de choque? 

Apenas uma nota sobre o gosto -- ou será obsessão? -- de Rui Rio pela 'ordem pública'; foi eleito tendo prometido "limpar as ruas do Porto", i.e., limpar os sítios públicos de prostitutas e arrumadores de carros (frequentemente sem-abrigos consumidores de heroína). Os seus métodos 'dissuasores' acabaram por vir a público: acordou com a polícia prender -- ilegalmente-- arrumadores durante a noite deixando-os a ressacar; no âmbito do projecto "Porto Feliz", eram levados em carrinhas para longe da cidade e abandonados por lá. Foi uma psicóloga, à época a trabalhar no projecto que, em profundo desacordo com estas práticas, falou a um cronista do jornal Público, que por sua vez escreveu sobre o assunto. Felizmente o Porto Feliz terminou. É que a legitimidade de uma acção política não advém apenas da vitória numas eleições. 

Relativamente à Es.Col.A, pouco poderei dizer porque não o conheço por dentro o projecto. No entanto, há coisas que devem ser ditas. Para além de me parecer uma iniciativa cívica louvável, uma vista de olhos pelos horários e actividades propostas, a reacção e o discurso dos habitantes da Fontinha face ao despejo parecem indicar que os princípios fundamentais e legitimadores de qualquer intervenção comunitária têm sido respeitados: o envolvimento da comunidade no que se chama em psicologia "avaliação das necessidades", "definição de objectivos" e de "avaliação dos resultados". Uma das necessidades atendidas  referida várias vezes pelas pessoas à comunicação social é a do apoio educativo a crianças sem possibilidade de pagar por ele.
A ideia de que apenas académicos/especialistas estão autorizados a definir os objectivos e os métodos de qualquer intervenção, para além de servir propósitos de protecção profissional (somos nós psicólogos e assistentes sociais que do alto do nosso saber científico decidimos o que é melhor para vocês e portanto o poder de planear e agir é nosso), é, segundo mostra a evidência na área, errada. Quanto mais espontâneas forem as iniciativas (de baixo para cima), maior a probabilidade de se reunirem os ingredientes necessários a mudanças positivas, i.e., o estabelecimento de relações de confiança  e a percepção de que se tem poder, de que a sua voz é ouvida (o chamado "locus de controlo interno" por oposição ao externo, onde as pessoas crêem que tudo lhes é alheio, pelo que não há nada que possam fazer para mudar). É mais ou menos a isto que se refere um modelo relativamente recente e muito popular chamado "Empowerment". 
Assim, a ideia da câmara aqui exposta de substituir este projecto por outro de sua iniciativa e autoria parece-me no mínimo contraproducente.
Qual a probabilidade de ser entendida pelas pessoas como um abuso de poder que não tem minimamente em conta as suas vontades e interesses? 

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