sexta-feira, 20 de janeiro de 2006

O que é a história?

Procurar responder à questão “O que é a história?” nem sempre foi, como é hoje, considerado algo necessário. Em época de conforto, onde a sociedade respira serenidade e confiança e é regida por uma economia de laissez-faire, tende a reinar uma visão auto-confiante, clarividente, positivista do mundo. Foi assim o século XIX.
As áreas do conhecimento sofriam a influência do empirismo:
- separação completa entre o sujeito (quem observa/ estuda) e o objecto (observado/estudado);
- “os factos - tal como as impressões sensoriais – embatem no observador e são independentes da sua consciência”, sendo, portanto objectivos;
- por fim, o processo de recepção é passivo: só após receber os dados, o observador age sobre os mesmos.
Esta é a base da produção cientifica da época, que se pretendia e acreditava experimental. Vivia-se a “paixão dos factos”, à qual não escapou a própria história, que buscava a ruptura com a história moralizante do século XVIII. Sir Gradgrind, em Tempos Difíceis: “O que eu quero são factos (…) só os factos contam na vida”. Assim, ao historiador competia “simplesmente mostrar como as coisas, na verdade, se tinham passado” – Wie es eigenlich gewesen (Rank). Por outras palavras, dado o carácter objectivo/neutro dos factos (dados da experiência, distintos de conclusões), ao historiador cabe obtê-los de modo exacto e só depois interpretá-los – “Os factos são sagrados, a opinião é livre”(C.S. Scott)).
Nesta concepção liberal da história (que tem em Acton a sua principal figura), a busca dos factos pretende-se ilimitada: todos os factos são históricos, visto terem o mesmo carácter objectivo perante quem tem deles conhecimento. Portanto, a história é a compilação de um número máximo de factos irrefutáveis – é factual, evidente e pormenorizada.
Onde encontra o historiador os seus factos? Em documentos: decretos, tratados, listas de arrendamento, livros azuis, cartas, diários, etc.; é a ditadura do documento: “se os documentos o dizem, então é porque é assim.”. Eles contêm os factos básicos, comuns a todos os historiadores, são a “espinha dorsal da história” (visão histórica do senso comum).
Ora, sendo a história uma “colecção de factos”, os factos infindáveis e o historiador um mero compilador que, pela sua recolha exaustiva, busca constituir a versão última e indiscutível da história, surge um problema: a impossibilidade de conhecer/lidar com todos os factos origina uma história povoada de lacunas. O próprio Acton evidencia este problema ao referir-se ao seu professor, Dollinger: “Ele não escreve jamais com matérias imperfeitos e para ele os materiais eram sempre imperfeitos”.
No entanto, a este problema sobrepunha-se a crença positivista (que mais tarde se verificou insustentável) de que, por falarem por si, “se ele [o historiador] se encarregasse dos factos, a divina providência encarregar-se-ia do significado da história”. (Rank).
Em suma, desde que o historiador cumpra o papel de recolha e compilação dos factos, por uma espécie de “mão providencial”, a “historia irá revelar por si o progresso benéfico e aparentemente infinito em direcção a estágios sempre mais elevados”. E foi este o pensamento que conduziu à crença de que colocar a questão “O que é a história?” é completamente despropositado. Foi a “Idade da Inocência”.


Mas serão todos os factos históricos? Se sim, serão todos tratados como tal? A morte de um qualquer indivíduo é tão relevante, historicamente falando, quanto a morte do Dr. Martin Luther King? Obviamente, não. Daqui decorre que o estabelecimento dos chamados factos básicos “não é fundamentado em alguma qualidade dos factos em si, mas numa decisão a priori do historiador”, ou seja, depende de uma selecção prévia. Quanto aos documentos, considerados a matéria-prima da história, a sua objectividade levanta sérias dúvidas: um documento pode não descrever fielmente o sucedido e sim o que o autor pensou ou quis que os demais pensassem que sucedera, entre outras possibilidades.
Por conseguinte, o historiador não se afigura como um elemento passivo na elaboração da história: os factos por si só não falam; carecem da selecção, contextualização e interpretação por parte do historiador. “O facto é como se fosse uma saca - cai para o lado até ao momento em que lhe ponham algo dentro.”(Pirandello).
O historiador não se interessa por todos os factos do passado: estes constituem o “material histórico bruto”, indiscutivelmente essencial ao historiador, mas não é a recolha do maior numero possível de factos a sua função essencial – “A exactidão é um dever e não uma virtude” (Houssman).
Ele é primeira e essencialmente selectivo: é dele que depende a recolha dos factos necessários à escrita da sua visão (a que ele pretende retratar de forma coerente) da história. A adopção e permanência de certos factos como históricos estão ligadas, sim, à intuição do historiador e à aceitação por parte da maioria (consoante os interesses e necessidades da sociedade no momento) dos mesmos como correctos. Portanto, o historiador visa a construção de sentidos com base factual, ao invés de uma recolha e compilação pormenorizada, excessiva e desadequada de factos.
São estas as questões tratadas pela filosofia da história (termo introduzido por Voltaire) que pretende levantar e responder a perguntas acerca da natureza da história, (às quais passou indiferente o século XIX.) e que evidencia a premência da questão “O que é a historia?” para uma melhor compreensão da mesma e do papel de quem a escreve.



É na Alemanha, em 1880/1890 que se surgem os primeiros opositores à tirania dos factos na história. No entanto, só após 1920, Croce (filósofo francês) começou a ter alguma popularidade em França e Inglaterra. Porquê? Após a Primeira Guerra Mundial, os factos já não parecem sorrir, esfumando-se o seu prestígio junto das populações. Estão então instaladas as condições propicias à mudança de paradigma que se seguiu, pois na sociedade de então fervilhava intensamente essa vontade/necessidade.
Floresce em oposição à positvista, uma nova visão da história, cuja figura mais eminente é o filosofo britânico (influenciado por Croce), Collingwood: o entendimento do passado só é necessariamente possível através dos olhos do presente – “Toda a história é história contemporânea”(Croce). Aqui, o historiador encarna o papel de avaliador: como poderá saber o que é relevante se não proceder a uma avaliação prévia?



Como procede o historiador nessa selecção?
A fertilidade de um acontecimento passado é indissociável da sua integração na “reconstituição mental da história” que se pretende contar. Esta, apesar de depender de evidência empírica (factos), não é, em si, um processo empírico (não é uma mera narrativa de factos): a ela preside a selecção e interpretação dos factos – “Escrever história é a única maneira de a fazer” (G.M.Trevelyan).
O passado é dinâmico e não morto. As suas consequências ainda vivem, de algum modo, no presente e é, em grande medida, a necessidade de compreender este último, que leva o historiador a tentar compreender o primeiro.
Portanto, o que se conhece da história não é uma série pura e intacta de acontecimentos passados, mas sim o resultado do processamento dos factos seleccionados pelo historiador, pelo que compreender a relação historiador/facto é compreender a história.



Contudo, a ênfase extrema no papel do historiador pode conduzir à ideia falaciosa de que não existe qualquer objectividade na história. Em 1910, o historiador americano Carl Becker ilustra esse perigo: “Os factos da história não existem para nenhum historiador até ele os criar”. A história é, pois, uma mera criação com uma infinidade de sentidos, todos eles subjectivos, sem que haja um mais correcto que outro. Esta visão relativista conduz a outro grande perigo: à concepção finalista da história; o único critério do historiador seria o da conveniência em relação a um objectivo presente (por exemplo, satisfazer o poder politico vigente), onde o facto é desprezado e tudo é intenção: história igual a propaganda histórica.
É nesta situação escorregadia que podem cair historiador e leitor se não considerarem a impossibilidade de concluir que uma dada interpretação é tão boa quanto a outra porque a interpretação representa uma parte necessária e não exclusiva ao estabelecimento dos factos da história, ou porque nenhuma interpretação é completamente objectiva.


Exige-se, deste modo, ao historiador um compromisso em relação aos factos; deve assegurar-se de que os factos seleccionados para a construção da “intriga” pretendida estão correctos. Isto, todavia, não significa eliminar o elemento interpretativo, fulcral na história, mas sim impor-lhe correcção.
Assim, no processo de reconstituição mental, é necessária “compreensão imaginativa”: tentar alcançar um certo nível de contacto com a mentalidade das pessoas em estudo, de forma a compreender melhor as suas acções, o que, não implicando concordância, requer a não interposição dos valores do historiador na análise que efectua.
Embora seja impossível um distanciamento completo das relações sociais e de poder nas quais se insere, e surja também o problema da linguagem (os conceitos do passado não serão exactamente os utilizados pelo historiador), a procura do distanciamento deve ser uma atitude cultivada, não esquecendo, porém, que o passado só poderá ser compreendido através do presente.



Como trabalha o historiador quando escreve historia?
Dado o carácter dinâmico da historia, Carr defende que a escrita deve ocorrer em simultâneo com o processo de recolha e interpretação dos factos, emergindo, desta interacção, a perspectiva (não totalmente factual ou interpretativa) defendida pelo historiador. A selecção, tal como a interpretação dos factos, não é estática e poderá não ser a definitiva, sofrendo as alterações necessárias no decorrer da escrita.
O que é a história?
A resposta a esta pergunta, como a muitas outras, depende do momento e circunstâncias em que é colocada; daí a necessidade de uma constante reflexão acerca da sua natureza.
Não havendo resposta definitiva, história parece ser um processo interactivo e continuo entre o historiador e os seus factos, um constante diálogo entre o passado e o presente.


(escrito com base em Que é a História? Carr; E.H. ; cap. 1: O Historiador e os seus factos; pp. 7-25.)


(D.O.)

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