domingo, 1 de janeiro de 2006

CRÓNICA POÉTICA DE LISBOA (a duas mãos e fora do tempo)

Há qualquer coisa de profundo quando muitas pessoas e durante muito tempo - levamos mais de uma hora à espera das malas - se juntam em torno de uma passadeira de aeroporto. Há os olhares que se cruzam, os sopros desesperados que se adivinham e se sentem, os cigarros que se insiste em acender - apesar dos inúmeros sinais de proibição - como que num gesto de rebelião. Há as pessoas que conhecemos da ilha e que em breve se espalharão por Lisboa na esperança de não se encontrarem tão depressa numa qualquer esquina da capital.
O olhar lânguido e sexualmente convidativo daquele salô pede
mete nojo a forma como ele chupa o cigarro
e se aproxima na vã esperança de que pudéssemos sair
daqui os dois e já no taxi fossemos engolindo a língua um do outro.

...

Saí e sem saber bem como dou comigo a assistir à conversa 'Os livros em volta' na culturgest apresentada por Fernando Pinto do Amaral.

Primeira impressão: tenho
Saudades do Keeper.
("Keeper, Amici !!!"

Fala-se do novo livro de Joaquim Manuel Magalhães - um livro carregadamente pessimista e negro. O convidado, José Bento, que nas palavras do apresentador se revelou recentemente, não sem alguma surpresa, na sua dimensão de poeta, destaca o seguinte verso: "Fogo, feltro, felmatopeia".

Falando-se da colectânea de poesia espanhola de José Bento e do poema de autor algo incógnito intitulado "Soneto a Cristo crucificado", surgiu o tema muito atractivo dos poetas menores, que despertou no próprio o desejo de acrescentar um apêndice sobre essa condição.

Não deixa de ser muito bela essa condição de viver à sombra dos maiores mas da qual alguns por vezes, poucas certamente, conseguem sair para essa luz que entra pelos olhos dentro e abre o poema, fazendo-o funcionar. Nos Açores vive-se muito dessa condição de menoridade, por vezes escondida por detrás do conceito de uma literatura açoriana. Há demasiados poetas menores.

O Nuno Júdice (acompanhado como sempre de sua mulher)
Acaba de se sentar, mesmo à nossa frente.
Está quase careca o poeta.
Maldita próstata!

...

Apresentação, com alguma leitura pelo autor, do novo livro de António Franco Alexandre Uma Fábula, com estrutura quaternária tal como o o seu livro anterior Quatro Caprichos. O leitor, diz-se, é constantemente surpreendido pelas temáticas variadas do livro.

Segundo o poeta este livro é como que "um quinto capricho" sobre Narciso "personagem algo aborrecido" e a Ninfa Eco, sendo a fábula dada como supostamente conhecida e, por conseguinte, não mostrada. As partes I e II são discursos narcísicos e a primeira dever-se-ía chamar Narciso e não, como se pode ler no livro, 'poema simples'. A terceira parte pertence a Eco e a quarta é um "Epimítio".

A epígrafe dos Roling Stones:

"When I travel coast to coast
in the motels you are the goast"

"um corpo vivo feito de penumbra"

Apesar de toda esta novidade o público lisboeta não deixa de mostrar a sua imbecilidade - os telemóveis tocam regularmente e há uns que tocam mas ninguém os desliga, certamente ficaria mal dar ao dedo.

"vivos e completos
somos mortais"

Não deixa de haver alguma semelhança entro o silêncio da leitura poética - esse momento breve - e os silêncios das Igrejas - momento breve onde o público poderia ser o mesmo?

...

O tradutor de Mallarmé para a Relógio D'água, Armando Silva Carvalho, deu "provas de grande qualidade", apesar de o próprio já não se lembrar bem da tradução que já foi feita há mais de sete anos.

Continuo com saudades do
Keeper. Acho que vou
Regressar ainda hoje.
Maldito cão. Suo muito.


E o sapatinho luva do poeta careca?

"O que estará Keeper
A fazer neste momento?"
Este pensamento corroí-me
Até à exaustão. Keeper.
Keeper! I love you!
I love you very nice!


Todos reconhecem a importância do poema traduzido mas ninguém parece gostar muito dele.

...

A referência - algo encenada como se veio a descobrir - feita pelo apresentador aos poetas do establismenent: o do sapatinho luva Nuno Júdice "que chega de Paris e estará algures na sala " e o de direita Vasco Graça Moura "que está aqui à frente e que acaba de lançar O testamento de Vasco Graça Moura.

...

O último livro de Manuel Gusmão é apresentado também com comentários e leituras do autor. 'A via láctea' é dito ser um dos melhores poemas do livro.

A invocação da alegria e a referência à Ética de Espinoza.

"contra todas evidências a alegria"

Por fim, a chamada ao palco do poeta Nuno Júdice para ler com voz perfeita um poema invocativo dos amores de Camões retirado do seu livro Cartografia que é lançado ainda hoje no palácio de Felgueiras e para onde alguns passos já se dirigem.

(LFB)

Sem comentários: