sexta-feira, 31 de agosto de 2012

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

O Artista, O filósofo e o Guerreiro

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«Não publicarei nem divulgarei tais coisas devido à natureza perversa dos homens.» Antes, Leonardo mostrara-se disposto a divulgar os planos de algumas das mais horripilantes máquinas de guerra, sem pensar aparentemente nas consequências. Mas agora a maneira como encarava o seu trabalho tivera uma alteração significativa. (...) A clareza absoluta de cada visão individual permaneceria, no entanto, o conjunto perdia-se na incoerência. A ciência da percepção - aquela filosofia unificadora da visão que o levara a ver e a investigar tanto - nunca seria alcançada no meio da desordem generalizada do seu trabalho.
Leonardo faria várias tentativas para superar essa desordem. Elaboraria listas e planos para organizar por temas os elementos separados dos seus cadernos de apontamentos, começando depois a dar-lhes uma sequência. Mas algo, «a natureza perversa dos homens», impedi-lo-ia de completar essa tarefa, para poder legar ao mundo. deve ter sido alguma coisa que ele viveu enquanto trabalhava para Bórgia. Durante o massacre em Fossombrone? No meio do caos em Siniogallia? Depois das atrocidades em Sam Quirico? Ou teria sido um acontecimento mais cerebral: talvez a compreensão aniquiladora de alguma coisa? Podemos imaginar Leonardo a desenhar aqueles esboços do retrato de Bórgia com este estendido junto à lareira na sua câmara. Talvez, ao tentar reconciliar a clareza absoluta em que via os traços fisionómicos de Bórgia com a aura mortal de caos, assassínio, incesto e traição que o envolvia, Leonardo tenha compreendido que essa clareza de percepção nunca poderia ser inocente, no final. Por isso, nunca haveria final - retirar-se-ia disso, deixando o horror último sem ser visto, a visão final inacabada, o esquema global incompleto. Em vez da ordem global, o caos global." (316)

Apesar de tão nobres sentimentos, Maquiavel estava fora das boas graças, fora do trabalho e num limbo político. E fez o que à primeira vista poderia parecer uma escolha surpreendente - voltou a escrever poesia. Maquiavel não tinha de facto abandonado a ideia de que alguma dia cumpriria o seu sonho de juventude de alcançar a fama literária. De facto, de muitas maneiras, o seu trabalho proporcionara-lhe numerosas oportunidades para praticar a sua arte e refinar o seu estilo. A clareza e a precisão dos despachos que escrevia durante as suas missões revelavam a sua originalidade, bem como a sua independência de espírito, enquanto as suas cartas mais informais lhe davam margem para a sua vivacidade de espírito e de imaginação (para já não falar de algum exagero). A consciência trocista que tem de si próprio, juntamente com a análise psicológica que faz das figuras que vai conhecendo, a sua visão dos acontecimentos históricos que se desenrolam à sua volta podem não ter sido literatura enquanto tal, mas podiam transformar-se nela, e parece que Maquiavel alimentava essa ideia havia já algum tempo. Tudo isto é inevitavelmente especulativo - mas acontecimentos como a cena do seu primeiro encontro arrepiante  à luz da vela com Bórgia, no palácio de Urbino, terão de certo despertado a sua imaginação poética. (324)

Bórgia morreu, neste obscuro campo de batalha, a 12 de março de 1507, com apenas 31 anos. Quando a notícia da sua morte chegou a Itália, todos os governantes - desde Nápoles a Milão - suspiraram de alívio. Só em Ferrara é que a sua morte foi chorada. Quando Lucrécia teve conhecimento da morte do irmão adorado, conta-se que terá gritado: «Quanto mais eu me viro para Deus, mais ele se afasta de mim.» Manteve a compostura até se retirar finalmente para o seu quarto, onde a ouviram gritar pelo nome de César, uma e outra vez, num agonia sem fim.
Alguns anos antes, o historiador contemporâneo Andrea Bernardi escreveu que, quando Bórgia cavalgava ao encontro dos seus inimigos, tinha gritado: «é melhor morrer em cima da cela do que na cama». Mas foi preciso a empatia de uma irmã para compreender  a verdade que havia por trás destas palavras. Conta-se que Lucrécia teria suspeitado de que, no seu desespero perante o fracasso final de todas as suas ambições, a temeridade de Bórgia terá sido uma forma de suicídio.
Bórgia estava morto, mas o seu nome perduraria como exemplo, de uma maneira que ele nunca podia ter previsto. O responsável por isso seria o seu amigo Maquiavel, que o vira em ação e compreendera como ele foi quase bem-sucedido na sua enorme ambição. Para Maquiavel apenas um homem assim podia salvar a Itália das guerras autodestruidoras, que ameaçavam despedaçá-la no meio do seu grande Renascimento cultural." (365-6)

Paul Strathern, O Artista, O filósofo e o Guerreiro - Da Vinci, Maquiavel e Bórgia e o mundo que eles criaram, Clube do Autor, (tr. AGL), 2012.

Aqui temos um livro que mistura muito bem o rigor da investigação histórica (587 notas, lista com caracterização de personagens, ilustrações e mapas), com o carácter ficcional da narrativa (não há propriamente ficção, o que há é uma imaginário tecido em torno dos prováveis encontros entre os três gigantes) que nos transporta para a Itália de 1500. Como leitura de verão, não poderia haver melhor.
Foi o primeiro livro que li com a leitura perturbada pela ausência legal de letras e outros erros acordados. A experiência não é agradável: "projeto de nada"; "suscetível ato"; "fações"; "exceção", "percetuais". E ainda o absurdo de os nomes dos meses estarem escritos com letra minúscula. Mas porquê?

quarta-feira, 22 de agosto de 2012


domingo, 19 de agosto de 2012

Albrecht Dürer (1471–1528), Melencolia I, 1514

Por sugestão de Thomas Mann, Doutor Fausto, D. quixote, 1987, p. 268. A respeito da ampulheta.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O K-mito

James Hawes  -  escritor e professor de Literatura alemã e um dos poucos que teve o privilégio de estudar cuidadosamente os manuscritos de Kafka e a sua arca (bookcase) fechada à chave - escreveu um livro para desmistificar o fenómeno Kafka (Quercus, 2008). Para que não haja equívocos, Hawes declara logo nas primeiras linhas do seu livro que Kafka é um monstro da literatura do século XX e que deve ser lido por todos.
Ele não está contra o escritor (quem estará?), mas contra a imagem que o público (nós? Não, eles, os ingleses!) tem de Kafka. Ele parece estar zangado com alguns dos seus colegas académicos - não germanófilos, certamente - que, na eterna busca de fundos para as suas investigações, "têm um grande interesse em apresentar Kafka como um homem e um escritor de um complexidade psicológica/literária insondável" (6).
 O que é facto é que o livro se lê muito bem e, como biografia, é, no mínimo, refrescante. À parte alguma repetição desnecessária dos diferentes aspectos do mito - o que deu para desconfiar que, se calhar, o mito era auto-criado - lê-se sem parar.
Eis uma pequena selecção das variantes do K-mito  (muitos outros aspectos são, é claro, discutidos no livro) seguida da desmistificação apresentada no livro:
i) Terá sido Kafka um desconhecido durante a sua vida (em parte, por ter vergonha de publicar) e ignorado pelos seus contemporâneos?
Não. Kafka, muito por influência do seu amigo Brod, mereceu a atenção do público mesmo antes de ter publicado o que quer que fosse. Kafka beneficiou, no início, de muitas ajudas literárias e aceitou-as todas de bom grado.

ii)  "Kafka ordenou que os seus livros fossem destruídos depois da sua morte"?
Sim. Mas não é bem verdade que Kafka quisesse que, depois da sua morte, os seus escritos fossem destruídos. Ao escrever o que escreveu "estava apenas a dramatizar como sempre fez em todos os aspectos da sua vida: estava a manobrar alguém para que tomasse as grandes decisões, tentando manter a ficção de que ele era um homem sem intenções, um mero brinquedo subjugado aos desejos dos outros" (121).

iii) "Em Praga, Kafka vivia aprisionado, como um judeu que falava alemão, num duplo gueto, uma minoria dentro de uma minoria, e no meio de um absurdo e colapsante Império-opereta".
 Não é verdade. Kafka sentiu-se sempre um alemão e um escritor na tradição da grande literatura alemã. Em 1915, tinha a primeira grande guerra começado, Kafka comprava "war bonds" emitidos pelo Império dos Habsburgos, como forma de ajudar os "alemães" a ganhar a guerra. Então como poderia Kafka sentir-se mal por ser um judeu checo que falava e escrevia em alemão?
Para lá disso, Kafka ajudou a criar e trabalhou num sanatório para pessoas com doenças mentais causadas pela guerra num local chamado Frankenstein! "Isso mostra que até à queda do império dos Habsburgos, Kafka identificava-se completamente com a comunidade de língua Alemã da Boémia (aquilo que se tornaria a Checoslováquia)." (92).
Mais informativo é que a proclamação publica escrita por Kafka para a criação do sanatório começa com a palavra "VOKSGENOSSEN" ("good fellow germans"), palavra que seria, dez anos mais tarde, usada pelos ultranacionalistas alemães (pelos nazis). Isso, segundo o autor, é bem revelador do K-mito que, demasiado focado no Kafka-icon de Praga, esquece ou ignora o Kafka alemão. No entanto, 'voksgenosssen' não é um termo nazi, mas sim um termo cunhado pelos socialistas em 1890.

 iv) Foi Kafka uma pessoa de saúde débil e, depois de ter sido diagnosticado com a tuberculose, não pôde escrever mais?
Não. Apesar de, após quatro anos de doença, ter morrido de tuberculose. Só na fase final ficou mais debilitado. Kafka foi, na maior parte da sua vida, uma pessoa bastante saudável. Tinha uma preocupação peculiar com a sua saúde (vegetariano, não fumador, não bebia café, nem chá, nem tocava em chocolate. Fazia ginástica nu todos os dias e mastigava muito a comida até ela ficar reduzida a "uma espécie de sopa auto-deglutida" (22).

v) "Kafka foi esmagado por um emprego burocrático e desmotivador"?
Não. O Kafka advogado tinha um emprego de seis horas diárias (saía às duas), num companhia de seguros semi - estatal, com um salário acima da média. Emprego esse que não só lhe permitia viver muito bem, como lhe serviu de desculpa para não ir para a guerra: era um trabalhador imprescindível! E era amigo do filho do presidente da empresa.

vi) "Kafka foi incrivelmente honesto com as mulheres da sua vida, talvez demasiado honesto"?
Não. Ele alimentou relações complexas e ambíguas com várias mulheres (sendo o caso mais bizarro o da sua relação com Felice com quem Kafka esteve para casar por várias vezes. O livro dedica dois capítulos às duas principais namoradas de Franz cujos títulos são significativos: "Kafka and Felice: Nothing to do with sex" e "kafka and Milena [que era casada]: all about sex").
Kafka frequentou, como todos os homens da época, bordéis e tinha amizades fugazes com todo o tipo de meninas ("shop girls, factory girls, typist, maids" (31). Um dos melhores exemplos do mito de que nos fala Hawes está presente na apresentação mais comum de uma das fotografias mais conhecidas de Kafka.



 E a foto, agora na totalidade, com a menina Falcon, ignorada por alguns biógrafos mais contidos.
 

A interpretação de Hawes da fotografia de estúdio (uma foto encenada) é reveladora: passando pelo significado dos dentes da menina - Kafka usa, em alguns dos seus contos, "imagens de dentes para indicar um vida impiedosamente interesseira" (82) -, pelo facto de Kafka querer parecer na foto mais pequeno do que era realmente - uma vez que seria muito mais alto do que ela - e pela presença do cão que revelaria o lado masoquista de Kafka: no conto de Sacher-Masoch a personagem permite-se ser tratada como um cão e a relação disto com as palavras finais de Josef K. n'O Processo: «Como um cão!».
Para além, disso, Kafka coleccionava pornografia (desenhos e revistas encontrados na bookcase). Coisa que Hawes não sabia pois "nunca ninguém o tinha discutido, muito menos publicado"(57). E: "o lado porno de kafka não é nenhum segredo. O mistério é que pareça um segredo" (58).
De novo, trata-se de uma querela entre académicos: "o facto parece ser que os estudiosos simplesmente não querem saber do Franz Kafka real: pornografia, prostitutas e tudo" (60). Mas será mesmo pornografia?  Eis dois exemplos:
 
 Vale a pena ler a resposta de Hawes, dada numa das muitas notas que, pelos pormenores que revelam sobre o que se passa nos corredores das academias, constituem outra das delícias do livro: "alguns comentadores alemães acusam-me de ser um britânico reprimido que não sabe a diferença entre erótica e pornografia. Claro que há uma diferença: erótica é aquilo que os pornógrafos chamam pornografia, como um rápido passeio pelo Soho pode facilmente mostrar." (8)

E para finalizar: vii) "Kafka previu, sinistramente, Auschwitz"?
Não. Kafka não poderia ter previsto o holocausto simplesmente porque ninguém - "nem mesmo em 1928, que fará em 1915" (90) - poderia ter previsto tal coisa. E insinuar tal antevisão é "um insulto à memória de milhões que, estando lá, não o «previram» nem mesmo quando ele lhes bateu à porta ..." (91)

Uma pequena, mas interessante, entrevista com o autor pode ser lida aqui.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012